Acompanhe a leitura do texto com os sons imaginado do antigo Bairro do Mocambo e da Madragoa de hoje.

Estamos no dia 17 de setembro de 1882. A percussão dos tambores, o tilintar das pandeiretas e as cordas vibrantes da lira ecoam pelas ruas da cidade de Lisboa. Celebra-se a coroação da nova Rainha do Congo, Maria Amália I, que visita a cidade para prestar vassalagem ao Rei de Portugal.

O jornal António Maria descrevia na época uma “grande festa da corte do Congo” aberta a todos os portugueses e aos que não o eram, numa casa localizada na Travessa do Outeiro, junto à Rua da Bela Vista à Lapa. Estava lá estabelecido o antigo Bairro do Mocambo, descrito em 1893 por Júlio Castilho como “um dos bairros mais frequentados e populosos da Capital”. Mas hoje, pouco se conhece sobre a história deste bairro.

Nascida na Madragoa há 46 anos, a curiosidade de Mafalda Nunes levou-a a procurar mais sobre a história do local onde cresceu. Sem conseguir desgrudar das histórias da Lisboa antiga, descobriu, entre as páginas dos livros que folheava na biblioteca, que um bairro chamado Mocambo tinha sido criado por alvará régio em 1593.

Há cinco anos, Mafalda Nunes abriu a Casa Mocambo, para criar um espaço da lusofonia e homenagear o bairro africano que existiu na Madragoa onde nasceu. Foto: Rita Ansone

De mochila às costas, viajou por todos os cantos de África. Nesses sete anos e, mais tarde, em Angola, Mafalda apaixonou-se pelos costumes africanos.

Foi em 2015, depois de contrair malária cerebral e acordar de um coma de dois meses, que a alfacinha de gema decidiu voltar para Lisboa e abrir um espaço que promovesse a cultura associada à lusofonia. Apercebeu-se assim de uma oportunidade de negócio que aliava as suas duas paixões: a gastronomia e a cultura lusófona. Um restaurante com uma componente artística.

Na colina íngreme da Rua do Vale de Santo António, criou o espaço para celebrar e evocar esta Lisboa criola e esquecida. Com os aromas e sabores da lusofonia, a proprietária pretende homenagear o bairro africano no estabelecimento que inaugurou há cinco anos. Chama-se, por isso mesmo, Casa Mocambo, que para além de restaurante, é também uma Galeria de Arte que difunde a diversidade cultural, uma parte integrante da identidade lisboeta.

Na Casa Mocambo juntam-se “mocambeiros” de todas as cores e evoca-se o primeiro bairro africano de Lisboa, e da Europa

Trata-se de um caso único na Europa. Um bairro no centro da cidade com um nome africano. O significado: “local de refúgio” em umbundo. Sinónimo dos quilombos, do Brasil, que consistiam em locais de refúgio de africanos escravizados e afrodescentes, que fugiam dos “senhores” e conquistavam a sua liberdade.

O Bairro do Mocambo corresponde hoje à Madragoa. Lugar que, para os africanos forros e livres, foi um local de abrigo a partir do final do século XVI. Ali encontraram um lar que lhes permitia acolher escravos e praticar os rituais religiosos e sociais da cultura africana.

Trabalhavam na manutenção dos espaços públicos de Lisboa: eram varredores, distribuidores de água, caiadores – preservavam as casas, os monumentos e as calçadas das ruas. Tinham um papel importante na atividade comercial, sobretudo as mulheres negras, que percorriam Lisboa a pé a vender os diversos produtos aos fregueses.

Hoje, são os “afrolisboetas” que percorrem as ruas da cidade à descoberta da sua herança cultural.

Ao entrar na Casa Mocambo, o cheiro da muamba e da cachupa acabadas de preparar alastra pela sala de jantar. Ouve-se a batida dos batuques e o som harmonioso da guitarra. As cores fortes compõem a arte e os trajes típicos africanos.

A lusofonia está em todo lado neste estabelecimento, construída com fragmentos de outras casas a partir da memória dos vários países da língua portuguesa ou feitos à mão pela proprietária. Sente-se a atmosfera que Mafalda pretende evocar, um refúgio com sabores, aromas e ritmos reminiscentes dos tempos do antigo bairro. É a pensar nessa época que organiza exposições, concertos, workshops e leituras de poesia.

O restaurante tem dois pisos, num a sala de jantar e noutro a sala de eventos que, antes da pandemia, funcionava regularmente para lançamentos de livros, festas e ciclos de cinema, como a AFROTELA – um projeto da Afrolis que analisa e discute as representações da comunidade negra.

Todos os projetos estão, de certa forma, ligados às questões da afrodescendência. Mas a Casa está aberta a todos, desde que sejam livres de preconceito e apelem à união.

Apesar do vírus, Mafalda quer aproximar os mocambeiros – como chama aos clientes do seu espaço – através dos eventos musicais que acontecem de quinta a domingo na Galeria Sonoro-Visual, que conta a presença de artistas que pertencem ao mundo lusófono.

No bairro da Madragoa, já não se vê e não se sente o Mocambo. Com o passar do tempo, o local de abrigo para a prática dos rituais religiosos e sociais da população negra foi-se lentamente dissipando no espaço e na memória. Sobrou apenas a Rua das Trinas do Mocambo que mais tarde ocultou da toponímia a identidade africana, encontrando-se a única menção ao bairro no Museu da Marioneta, antigo Convento das Bernardas.

Mas é nesta colina de São Vicente, que a Casa Mocambo pretende reconstruir a história da Lisboa antiga e ser um espaço de união e divulgação das culturas que se cruzam na cidade. História essa que é representada através das diversas manifestações culturais que o espaço apresenta.


Nascida em Braga, Júlia Mariana Tavares fez de Lisboa casa, com vontade de contar histórias desta cidade cosmopolita e multicultural. Finalista de Ciências da Comunicação da Faculade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica Portuguesa, está a estagiar na Mensagem de Lisboa. Texto editado por Catarina Pires.

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12 Comentários

  1. Não conhecia a história e não conheço o restaurante “Casa Mocambo” mas felizmente que uma amiga moçambicana se lembrou de mim e me encaminhou toda a informação que vou encaminhar para outros amigos e vou ter o prazer de lá almoçar ou jantar.
    Obrigada Fátima!

  2. Um bom texto que nos motiva para o conhecimento deste espaço.
    .

  3. As culturas africanas são traços marcantes do retrato a (re)fazer da nossa identidade mediterrânica. Um retrato fora da tela bonita do nosso pensamento ocidental; pois é composto por vivências, cores, cheiros e sabores que compõem Vida – e esta, por natureza, tem tendência a Reinventar-se!! Bem Haja!! E o meu Obrigado 😜✨

  4. Curiosissima de conhecer a Casa e sentir o ambiente, descrito, que tanta falta me faz.

  5. Muito bom, é importante haver espaços como este para celebrar a diversidade cultural da Lusófonia, para unir e reforçar os laços entre os povos Lusófonos, que são muito profundos , antigos e em alguns casos de consanguinidade. Logo que possível vou visitar o espaço.

  6. Sê um mocambeiro! Eu sou e adoro. Espaço agradável e cheio de vida, essa que é a casa mocambo! Cachupa, muamba, caril, bife à mocambo…1 mundo numa casa.

  7. Pingback: Mocambo
  8. Muitissimo obrigado por esta initiativa que réalça a multicuridade dos paises da europa conquistadora do mundo e que se encontra com as sequelas dos seus imperios. Estas sequelas constituam raises d’um novo mundo à seguir à dos obscurantistas que ainda se evertuem à negar à diversidade do mundo. O mundo é mestiço. Djibril BÂ

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