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Neste 30 de março de 2022, foi de assinalar a pequenez de calendário sem alma. Foi um março qualquer, não um 30 de Março como deve ser, igual a um 25 de Abril, soberbo e altivo como cabe a um dia em que Portugal se cumpriu.
Às 7 da manhã e, ao lado da Torre de Belém, nem charanga nem povo. E nem isso se pedia – bastava o deambular de um e de outro cidadão, de outro e mais um, dos gratos e orgulhosos, sentindo o rio e erguendo lento o olhar maravilhado. É que, afinal, 30 de março não era um dia comum, era um dia de Tejo e tudo.
A 30 de Março de 1922, às 7 da amanhã, há um século exato, partia das águas do Tejo e subia lento, mas fisgado, um aparelho monomotor Fairey F IIID MkII. Era só um hidroavião, mas era mais do que ele. Batizado “Lusitânia”, levava a bordo Gago Coutinho e Sacadura Cabral e tinha por roteiro um destino: por ares nunca antes navegados…
Este ano, em janeiro, iniciou-se a comemoração do centenário dessa viagem, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, Lisboa-Rio de Janeiro. Uma comissão da Marinha e da Força Aérea apresentou o programa da viagem no pavilhão das Galeotas, no Museu da Marinha, Jerónimos. Foi a moldura certa, está lá o hidroavião “Santa Cruz”, terceiro e último dos aparelhos usados na travessia.
A comemoração pretende-se pedagógica. Organizou-se uma exposição, por agora no Museu da Marinha, mas será itinerante, passeando por todos os distritos do país e ilhas. A exposição detém-se com minúcia na experiência de navegação aérea dos dois heróis e nos aparelhos inventados por Gago Coutinho, o “sextante de horizonte artificial” e o “corretor de rumos”, que demonstram o papel pioneiro daquela viagem.
Foram essas invenções que permitiram a primeira travessia aérea de um oceano efetuada com rigor científico.
Sublinhando o intuito de divulgação, anunciou-se também o lançamento do livro-jogo “A Enigmática Travessia do Atlântico, 1922”. O autor, Marco Pitt – que se apresentou conterrâneo de Artur Sacadura Cabral (Celorico da Beira) – definiu o livro, muito ilustrado, como 55 enigmas que “acompanham passo a passo os heróis nesta viagem.”
Ver do minuto 1 ao 5:47 e dos 30:45 ao minuto 32:25:
Também nesse primeiro ato das comemorações do centenário, Marcelo Rebelo de Sousa convidou-nos a olhar para a vontade dos aviadores, que passaram por vários acidentes durante a viagem: “Não foi insucesso porque persistiram.”
Eles (Sacadura e Gago Coutinho) eram sábios no que faziam. Em todas as escalas, amararam sempre nos programados pontos minúsculos e perdidos no meio do Atlântico – a ciência deles ficou demonstrada. Mas quando problemas mecânicos e o mau tempo lhes afundaram os dois primeiros hidroaviões, Gago Coutinho e Sacadura Cabral não desistiram e completaram a viagem – o caráter salvou-os.
Ao valor emblemático dos dois heróis, Marcelo acrescentou outro simbolismo à travessia aérea de há 100 anos: ela transformou-se numa identificação luso-brasileira que nunca mais se repetiu. Desde o ano anterior, 1921, quando testaram no raid Lisboa-Funchal os instrumentos que eles haviam criado, os dois aviadores estavam preparados para a travessia intercontinental. Mas preferiram adiar para 1922, de forma a homenagear, com o seu ato, o primeiro centenário da independência do Brasil.

Um costume português que veio de longe, num país em que a independência foi conquistada pelo primogénito e herdeiro do rei colonizador.
O lado, mais do que político, histórico entre os dois povos, levou Marcelo a relacionar o centenário da travessia aérea portuguesa, que agora começou, com o bicentenário da Independência brasileira, que em setembro se celebra: “Não podemos permitir que vicissitudes conjunturais de qualquer ordem afetem um momento que deve ser simbólico e significativo de duas nações irmãs.”
O simbolismo evocado por Marcelo explica o que fazer, para já, com esta comemoração da primeira travessia aérea de um oceano feita só com meios de bordo. A comissão organizadora, da Marinha e da Força Aérea portuguesas, fez um programa divulgador e pedagógico em que o essencial está feito: ensina-nos a pescar.
Parece pouco, e é. Deixará de o ser se nós, ensinados, praticarmos o que devemos: fazer cidadania de homens gratos, de instituições cívicas e de câmaras com sentido de servir.
Às 7 da manhã do 30 de Março de 2022, bastava um gesto igual àquele velho que, no 25 de Abril de 2020, cercado pela covid, desceu solitário e de farda de trabalho, calças negras e casaco branco de empregado de mesa, com a bandeira nacional ao ombro pela Avenida da Liberdade.
Junto à margem do Tejo, de onde partiu o “Lusitânia” há 100 anos, esta semana ninguém simbolizou o orgulho e a gratidão.
Mais atento, esteve o Velho do Restelo, há um século. Quer dizer, não esteve ali, fez uma ausência sábia, ao contrário da ausência desmazelada de nós todos, esta semana. Muito antes, nos tempo das caravelas, da praia de onde as via partir para os feitos, “um velho de aspeto venerando” tirava do peito a acusação: “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça/ Desta vaidade, a quem chamamos Fama!”
Ao contrário, no levantar do hidroavião, em 1922, o Velho do Restelo não esteve lá, ninguém lhe recolheu maldições. Talvez ele soubesse como era demasiado injusto acusar Sacadura e Gago Coutinho do anátema histórico, pois mandar não queriam eles. Em vez da glória e da vã cobiça, os navegantes modernos levaram o abraço de irmãos.
Como irmãos foram recebidos num alvoroço, na maior manifestação de encontro entre iguais que, até lá, houve entre os dois povos – a receção brasileira aos aviadores portugueses, no Rio de Janeiro, e não só, foi grandiosa e comovedora. E, desde esse encontro, as relações entre os dois povos não cessaram de diminuir, ou, pior, a indiferença mútua, de aumentar. Daí, o dramático apelo de Marcelo: “Não deixem morrer as comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil.”
Se o leitor quiser saber de forma simples e provocadora, em português ligeiro e fluente, brincalhão, sem gravata, mas com bravata, porém informado, se quiser não perder 20 minutos, não perder, apesar de “cheios de generalizações e simplificações”, como o próprio autor previne, se quiser atravessar o Atlântico Sul com um sorriso, com Gago Coutinho e Sacadura ao leme, se quiser este Redescobrimento do Brasil cometido pelo jornalista brasileiro Eduardo Bueno, e nos intervalos breves em que o vídeo gagueja aproveitar para agradecer todo este falar caloroso e fraterno, veja e oiça este vídeo:
Dito isto pelo jornalista Eduardo Bueno (já viu mesmo o vídeo?, se não, volte atrás, por favor, nada do que se segue é melhor…), a Mensagem vai continuar a falar da viagem extraordinária dos nossos heróis de 1922.
Não é a primeira vez que escrevemos sobre ela e voltaremos a ela, é a nossa forma de sermos cidadãos agradecidos pela Avenida fora.
Enquadremos, então, o grande feito português nessa invenção que mudou o mundo. O avião nasceu com o séc. XX, o primeiro voo controlado mais pesado do que o ar, dos irmãos Wright, foi em 1903. Logo na década seguinte a gloriosa máquina voadora foi apadrinhada pela Grande Guerra (1914-1918). A guerra, que fora inventada para dominar a terra e os mares, deparou-se com uma terceira dimensão, os ares. E o avião descobriu a sua primeira utilidade: fazer o reconhecimento do que se passava no território do inimigo.
Levezinho e rápido como nada tinha existido antes, em poucos minutos o avião subia, olhava e voltava com informações sobre as manobras adversárias. Ainda rapazola, o avião já tinha mandado para os caixotes de lixo da História, seja a antiquíssima cavalaria de reconhecimento, que já Alexandre usara, seja a novidade efémera dos balões cativos, amarrados ao solo, frágeis zepelins perante caçadores velozes e ágeis.
A seguir, já senhor único dos ares, barão vermelho dos dois lados das trincheiras, o avião dedicou-se a papéis mais ativos: duelar entre si, metralhar e bombardear tropas.
Em tão só quatro anos de guerra, um aparelho incipiente tornara-se uma máquina eficaz. Em 1915, a metralhadora de um piloto francês já sincronizava as balas entre as pás da sua hélice. O francês chamou-se Roland Garros e deu, justamente, o nome a um torneio de ténis, onde as balas, perdão, as bolas têm de ser certeiras.
O relógio já muito afinado que era a aviação chegou ao fim da Grande Guerra com fome de muito mais. O conflito, então, era sobre como conquistar em paz. Os aviões eram cada vez mais velozes e iam cada vez mais longe, mas, por enquanto, só nos ares continentais. Aí, com terra à vista, onde se tinham treinado durante a guerra, a navegação – ir de um ponto para ou outro – era segura, porque balizada e cartografada.
Já sobre o mar, sobretudo nos oceanos, o avião tinha problemas por resolver. Como saber a exatidão dos desvios a que os ventos obrigavam? Como medir a deriva da altitude do avião? Como recalcular a rota, quando o horizonte do mar, tanta vez, lá de cima, era invisível e não permitia o cálculo astronómico? Perigosas perguntas sem resposta, quando a ambição já era planetária. Quer dizer urgia ser transoceânico – e, sobretudo, transatlântico. Mas não se sabia como.
É que os negócios acenavam – sonhavam transportar passageiros e correio – mas pô-los em prática era o diabo.
A contradição começou por se resolver com truques. Em maio de 1919, os americanos fizeram partir quatro aviões de Nova Iorque até Lisboa, unindo a América à Europa – e o avião Curtiss NC-4 foi o primeiro.

Com este senão: sobrevoaram o Atlântico e chegaram aos Açores e depois Lisboa, seguindo um fio de navios da Marinha americana – como um colar com uma pérola, em cada 60 milhas – que lançava foguetes, durante o dia, e acendia holofotes, à noite. Uma travessia com coleira.
Em junho, também de 1919, os ingleses Alcock e Brown partiram de St. John, na Terra Nova, apontaram para Leste e atingiram um qualquer lugar, na Irlanda. Tão corajoso quanto o dia de um solitário pescador de bacalhau num dóri, mas certamente menos difícil do que para este era, em dia de nevoeiro, atingir o barco-mãe.

Os bravos ingleses, vindos da Terra Nova, com o avião suficientemente potente que tinham, mas cego, se não esbarrassem na Irlanda, seria na Inglaterra… Aterrar, haveria sempre onde. A navegação, chegar a um ponto previsto, é que não ficara resolvida. O que se continuava a não saber, depois de atravessar uma longa distância de mar e com os desvios inevitáveis de rota, era onde exatamente se chegaria.
Era esse o problema da aviação mundial, cada vez mais rápida e mais longe, mas, quando sobre oceanos, continuando sem saber como chegar a um determinado ponto.
Era, aí, que se estava quando no Tejo, às 7 da manhã, a 30 de março de 1922… os marinheiros Gago Coutinho, geógrafo, e Sacadura Cabral, piloto, entraram no hidroavião Lusitânia e partiram para o Brasil.
Como voar com precisão em alto mar? – eles julgavam ter encontrado respostas. Um ano antes, tinham apresentado, no Primeiro Congresso de Navegação Aérea, em Paris, o “Corretor de Rumos”. Este resolvia alguns dos problemas já referidos nesta crónica, sobre como sobrevoar os oceanos com ciência do destino. Também sobre a questão da invisibilidade da linha do horizonte do mar, Gago Coutinho adaptou um sextante para ser usado em aviões.


A adaptação fora feita nas oficinas do Instituto Superior Técnico, custou 400$00 e não foi cara: no voo experimental Lisboa-Funchal, passou-se sobre Porto Santo, como estava previsto. Sem rádio, e sem apoio lá de baixo.
Voltou-se a Lisboa e preparou-se a aventura de atravessar o Atlântico pela via mais longa e sentimental, em diagonal: Lisboa-Rio de Janeiro.
Então, foi assim. Lisboa-Las Palmas, na programada ilha da Grã Canária: feito! Arquipélago das Canárias-Cabo Verde: chegada a São Vicente, ilha mais próxima, para poupar gasolina e descolar em Santiago, para encurtar a escala seguinte, tudo como o programado! Viagem seguinte, a mais especial, longa e escondida: atingir o penedo de São Pedro, território brasileiro, mas uma pedrinha no meio do oceano. Com nada à volta, a quase mil quilómetros.

Vejam o tamanho: o ilhéu de São Pedro é mais curto e tem um quarto da altura de um desses navios cruzeiros que atracam em Lisboa. Pois foi lá que exatamente se chegou! Gago Coutinho, depois de bater nas costas do piloto Sacadura Cabral, entregava-lhe os bilhetinhos que iam levando o hidroavião até esse ponto minúsculo do oceano.
Depois, houve peripécias várias, mais outra ilha, Fernando Noronha, descida da costa brasileira, até à alegria imensa do encontro com o Rio de Janeiro. Não foi a enorme comunidade que os recebeu, foi a cidade inteira, então capital. Talvez o último abraço apertado entre dois povos. Tudo muito político, comovedor, heroico e histórico.


O feito, já foi dito, deveu-se ao caráter teso dos dois homens. Não foi dito, mas vai do próprio feito, deveu-se também à coragem deles. E, finalmente, deveu-se também ao saber científico, inovador na época, que Portugal ofertou ao mundo sem saber recolher dividendos. Pergunta-se: como foi isso possível?!
Não sabe, o leitor? Olhe que sabe: como foi possível, no passado dia 30 de março (assim, março), 2022, às 7 da manhã, ao lado da Torre de Belém, nem povo, nem festa, e nem isso se pedia, bastava uma semente de gratidão e orgulho.
*Parte deste texto foi publicado no jornal Faraday News, do Museu Faraday, do Instituto Superior Técnico

Que a mensagem certeira de Ferreira Fernandes possa ecoar pelas nossas consciências e pelo espaço digital, compensando (embora de forma insuficiente) a nossa falta de orgulho e de memória que estes dois notáveis portugueses, não mereciam.