Casa Fernando Pessoa, Museu Campo de Ourique, Clara Riso
Prédio de três andares numa pacata rua de Campo de Ourique, em Lisboa, guarda as memórias de Fernando Pessoa, o maior poeta português. Foto: Rita Ansone

A silenciosa funcionária desliza gentilmente a esfregona pelo soalho do terceiro piso. Na parede, os fios à mostra denunciam reparações em curso no sistema elétrico. Dois andares abaixo, as janelas, encerradas há tempos, queixam-se com um rangido pelo esforço de se abrirem para que a luz de um sol pálido ilumine a cómoda onde o antigo morador Fernando Pessoa costumava escrever, em pé, as linhas que encantam o mundo.

A Casa Fernando Pessoa é, acima de tudo, uma casa. Antes de ser museu, lugar de culto, Meca aonde os pessoanos de todos os cantos do mundo se veem obrigados a convergir pelo menos uma vez na vida, o prédio onde o maior poeta português viveu até o último suspiro, de 1920 a 1935, numa pacata rua de Campo de Ourique, é um lar.

Um lar com aquilo que se espera encontrar nos lares: os móveis, a cama, a citada cómoda, os livros, as fotografias na parede, uns óculos, a caneta e outros objetos pessoais – ou no caso, pessoanos – do antigo morador.

A diretora da Casa Pessoa, Clara Riso, desde 2014, responsável por zelar e divulgar um tesouro da cultura portuguesa. Foto: Rita Ansone

Mas também com os desafios que uma casa exige, as limpezas, as reparações, a segurança, a preocupação em receber bem as visitas. As dezenas de milhares de visitas – em 2018, antes de fechar para obras e de a pandemia ter chegado a Portugal, foram 38 mil.

Ser uma casa, um lar, antes de ser um museu, é o segredo por detrás da escolha da Casa Fernando Pessoa como o Museu do Ano de 2021, pela Associação Portuguesa de Museologia (APOM), uma láurea que se soma ao prémio Acesso Cultura 2021, pela promoção integrada da acessibilidade, não só física, mas também social e intelectual.

Um reconhecimento à dedicação da “dona da casa”, Clara Riso, desde 2014 a responsável por gerir o espaço. Especialista em Letras e Literatura, antes de Pessoa serviu outra instituição com apelido literário de peso, o Instituto Camões, em missões em Budapeste e Belgrado.

“O objetivo é que a Casa Fernando Pessoa seja uma casa de literatura, de todas as formas de literatura”, resume Clara Riso. Foto: Rita Ansone

Uma lisboeta do Lumiar de 42 anos que, apesar da familiaridade com as obras literárias, não se intimidou quando precisou de lidar com outro tipo de obras, no recente restauro do prédio, circulando por entre os tijolos e martelos com a leveza e segurança de quem caminha por entre os livros, ciente de que do betão também se constrói poesia.

A casa de Pessoa e da literatura

“A obra fez da Casa um espaço mais acessível, não só no seu lado físico, mas intelectual”, reforça Clara Riso, sobre a extensa reforma imposta ao imóvel, de abril de 2019 a janeiro de 2020, quando “paredes foram abaixo e depois erguidas” no prédio de três pisos e cerca de 1.198 metros quadrados.

A reforma física – ou a “obra civil”, como lhe chama Clara – foi seguida pelo redesenho museográfico, para só assim ser posto um ponto final no restauro, em agosto de 2020.

O resultado físico perceptível, como o circuito do museu delineado no chão pelas guias em relevo para orientar o percurso aos deficientes visuais e os dispositivos táteis e audiodescritivos, que tornam possível não apenas ler, mas também tocar e ouvir os textos de Fernando Pessoa.

“A intenção foi tornar a coleção mais acessível ao público em geral e não apenas aos já iniciados e aos pessoanos.”

Clara Riso

O que Clara Riso chama de o lado “intelectual” da reforma é um pouco mais subtil e está na forma como os textos informativos foram adaptados.

“A intenção foi tornar a coleção mais acessível ao público em geral e não apenas aos já iniciados e aos pessoanos, sempre com a preocupação, porém, de manter o interesse dos especialistas e pesquisadores da obra de Pessoa”, explica Clara Riso.

O esforço em atribuir um perfil holístico ao museu também se desdobra na curadoria das exposições e dos eventos regulares. Uma prova de que as portas da Casa estão sempre abertas está numa das salas, onde as marionetas criadas pelo escritor argentino Alberto Manguel retratam as personagens não de um dos textos de Pessoa, mas de outro portento literário, a Divina Comédia, de Dante.

As marionetas criadas pelo escritor argentino Alberto Manguel expostas na casa: diálogo travado com outros escritores. Foto: Rita Ansone.

A disponibilidade em travar um diálogo entre Pessoa e outros nomes da literatura continua nos cursos ministrados pelo museu, dedicados a textos de outros autores, a maioria escritores lidos pelo próprio Pessoa, como se pode perceber nas lombadas de parte da biblioteca, noutro espaço da Casa.

Há também uma disposição do museu em expandir esse diálogo para além da órbita do poeta português, em iniciativas a aparentes anos-luz do universo pessoano, como uma futura oficina de rap, destinada a adolescentes dos 14 aos 18 anos. “O objetivo é que a Casa Fernando Pessoa seja uma casa de literatura, de todas as formas de literatura”, resume Clara Riso.

Essa pretensão de contrariar uma certa tendência da poesia de olhar para o próprio umbigo levou o museu a tecer uma rede poética durante a pandemia, urdida pelas linhas telefónicas, diminuindo assim o isolamento do confinamento, com o perdão da rima pobre. O projeto Leituras ao Ouvido consistia em oferecer a leitura de um poema ou texto curto – e não necessariamente de Pessoa – a quem estivesse no outro lado do auscultador.

“Acabámos por construir uma comunidade em volta da literatura. O projeto continua mesmo com o fim do confinamento obrigatório e, a cada dia, um de nós do museu liga a alguém para ler um texto”, conta Clara. O Leituras ao Ouvido também não escapou ao prémio APOM e foi distinguido com uma menção honrosa.

“Acabámos por construir uma comunidade em volta da literatura.”

Clara Riso

A predisposição em estabelecer laços com a comunidade tendo a literatura como amálgama também está no ADN do simpático Poesia Estendida. Na sua segunda edição, a iniciativa distribui por entre os vizinhos da Casa, em Campo de Ourique, cerca 300 bandeiras com versos de Pessoas e seus heterónimos, e também de outros poetas, como Camões e Sophia de Mello Breyner.

Ao todo, são 11 textos, escolhidos a partir de sugestões enviadas por mais de uma centena de fregueses, após uma call realizada pelo museu. A intenção é que as bandeiras sejam desfraldadas em janelas e varandas, usando a poesia para fazer uma boa política de vizinhança. “Será uma maneira de os vizinhos, muitos que não conhecem o rosto da porta à frente, conversarem entre si”, explica Clara Riso.

Salteadora da arca perdida

As portas da Casa Fernando Pessoa estão abertas quase todos os dias – a exceção são as segundas-feiras, quando se dão as grandes limpezas e as pequenas reparações – justamente o dia em que a Mensagem visitou o espaço. O que justifica a presença das esfregonas e os fios expostos por entre o mobiliário museológico.

A réplica da “arca perdida” de Fernando Pessoa: o móvel original foi arrematado em um leilão. Foto: José Frade/Casa Fernando Pessoa

“Qualquer museu nunca está pronto”, reconhece a diretora, enquanto posa para a sessão fotográfica diante da cómoda onde Pessoa escrevia em pé os textos, ambos banhados pela tímida luz do Sol.

Essa consciência da limitação ao estar diante de algo bem maior não deixa de ser uma vantagem para quem tem a missão de gerir não apenas a memória de um escritor, mas a rica obra de um património de Portugal.

“Pessoa foi importante para me fazer perceber o outro. “

Clara Riso

Uma obra com que Clara Riso se deparou, como a maioria dos estudantes portugueses, na adolescência, no liceu, na Escola Secundária do Lumiar. Pessoa, um nome que Clara voltou a reencontrar na licenciatura em Línguas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. “Pessoa foi importante para me fazer perceber o outro, ao perceber o quão vasta era a suar arca”, diz.

A menção à arca de Pessoa parece não ser por acaso.

O museu conta com uma réplica do móvel na qual poeta trancava os seus escritos, pousada ao pé da também cenográfica cama de solteiro. A localização da arca original é um mistério digno de um Indiana Jones. Não que esteja perdida: foi arrematada num leilão por um colecionador anónimo e no anonimato se mantém.

O móvel é o objeto de desejo da diretora e encabeça a lista da memorabilia pessoana que gostaria de recuperar para decorar a Casa. “Na reabertura do museu após a reforma, tentei contactar o colecionador, através de um intermediário, na expetativa de que arca fosse exposta , mas não tive sucesso”, lamenta.

A espantosa realidade das coisas

Em compensação, o conteúdo da arca perdida de Fernando Pessoa está salvaguardado, na Biblioteca Nacional, com o estatuto de tesouro nacional. Textos que não haviam sido publicados em vida pelo poeta e que foram reunidos e ganharam unidade nas mãos de editores e especialistas, e publicados postumamente, já que o único livro que Pessoa publicou em vida foi Mensagem, que empresta o título ao nome deste jornal.

Os escritos de Pessoas estavam guardados numa arca. Mensagem foi o único livro publicado pelo autor ainda em vida. Foto: Rita Ansone

Uma das várias obras póstumas é o Livro do Desassossego, que em 2022 completa 40 anos da sua primeira edição, uma efeméride que terá a devida atenção na programação cultural da Casa Fernando Pessoa. Um de entre tantos textos que Clara, por prazer e por força da função, conhece bem – embora confesse não ter lido “tudo” o que foi escrito por Pessoa.

“É claro que sou uma grande conhecedora da obra dele, certamente não tanto como os investigadores, mas nem mesmo esses ousariam dizer que leram tudo”, suspeita a diretora, que eventualmente se permite substituir Pessoa por outros autores na sua mesa de cabeceira. “Costumo não perder um livro da Anne Carson”, revela. “Porém, o último que li e adorei foi As Pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg.”

Conhecedora da obra de Pessoa, Clara Riso reserva um canto da mesa de cabeceira também a outros autores. Foto: Rita Ansone

O último livro não-pessoano lido curiosamente rima com o verso preferido do poeta, a primeira estrofe de A Espantosa Realidade das Coisas, que Clara Riso costuma sacar da memória enquanto circula pelo espaço ou quando se depara com uma tarefa pela frente, ciente de que viver é reconhecer as pequenas virtudes (e também os pequenos pecados) das coisas, conforme via Alberto Caeiro:

A espantosa realidade das coisas

É a minha descoberta de todos os dias.

Cada coisa é o que é,

E é difícil explicar a alguém o quanto isso me alegra,

E quanto isso me basta.

Basta existir para ser completo.

A Espantosa Realidade das Coisas, de Alberto Caeiro

Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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