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O que está em causa nestas eleições legislativas? Como funciona o sistema eleitoral português? Motes importantes, sobretudo para quem não é um nativo do português, não podendo por isso acompanhar os debates, e não vive em Lisboa assim há tanto tempo. Para esclarecer dúvidas, em inglês, com a comunidade de estrangeiros em Lisboa esteve n’A Brasileira do Chiado Marina Costa Lobo, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), num Perguntas e Respostas moderado por Geert Linebank, jornalista, ex-diretor da Reuters, a viver em Lisboa.
As dúvidas de quem adotou Lisboa como sua cidade, mesmo que nestas eleições não possa votar, eram muitas. Os participantes, de mais de dez nacionalidades – com outras geografias e contextos. E o debate correu rápido e envolvente durante quase uma hora e meia. Aqui, a síntese – interessante até para portugueses.
Confira abaixo os principais temas discutidos:

Para que serve o voto nestas eleições
“Estas eleições são legislativas, o que significa que estamos a eleger o Parlamento. Em Portugal, temos um sistema semipresidencial, em que o chefe executivo não é o Presidente, mas sim o Primeiro-Ministro, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos ou no Brasil. Aqui, o Presidente é eleito diretamente, mas não é a cabeça do governo: é um mediador. Estamos a escolher os membros do Parlamento, mas é também do Parlamento que o governo emerge. Aliás, os principais partidos dizem que esta são eleições para escolher o governo enquanto os partidos mais pequenos dizem que servem para eleger os membros do Parlamento.
Há muita incerteza em relação a estas eleições porque não estavam planeadas, supostamente só aconteceriam em 2023. Mas a ala à esquerda – ligada ao governo PS – votou contra o orçamento de Estado de 2022 ao lado dos partidos da direita, e o Presidente, enquanto mediador, anunciou eleições. O PS tem mais intenções de voto, mas não é claro que se possa formar uma coligação com BE, PCP e PEV por ter havido o chumbo do orçamento.”
O sistema proporcional
“Em Portugal, não há votos desperdiçados, que é o que acontece no Reino Unido, em que se vota num candidato e, ao vencer, os outros votos são desperdiçados. Mas temos distritos com tamanhos muito diferentes, e, portanto, cada um elege um número diferente de deputados. Lisboa, que é a maior cidade do país, elege 48 deputados.
Todos os novos partidos que conseguem representatividade, conseguem-na através de Lisboa e por isso mesmo os cidadãos lisboetas são fundamentais. Lisboa, Porto, Setúbal, Coimbra e Aveiro contrastam com os distritos mais pequenos, como Portalegre e Beja. Aí temos um sistema quase como no Reino Unido. Um cidadão de Beja ou de Portalegre não tem grande escolha, tem de votar estrategicamente.”
As maiorias absolutas à esquerda e à direita
“Por termos um sistema de representação proporcional, não costumamos ter maiorias absolutas. Mas visto que na verdade o nosso sistema é desproporcional (tendo em conta a questão dos distritos e a fórmula usada, o método de Hondt), temos oscilado entre as coligações e as maiorias absolutas. As maiorias absolutas têm sido raras, desde 1976 tivemos quatro à direita e uma à esquerda. Na direita, há mais proximidade entre os partidos do que na esquerda, e por isso a esquerda não é tão entusiasta quanto a direita a maiorias absolutas.
Se bem que esta perspetiva mudou um pouco desde 2015, com a formação da geringonça que uniu a esquerda para derrubar o governo de centro-direita. A geringonça mudou a distância entre os socialistas e os outros partidos porque estavam a trabalhar juntos. Na direita, começou a haver mais fragmentação com a entrada do Chega e da IL. O PSD está mais distante destes do que do CDS.”
A tradição de derrubar governos
“As pessoas dizem isso sobre Portugal. Não é a oposição que ganha, é o governo que perde porque o governo acumula uma sucessão de erros. Neste caso, quando olhamos para as sondagens, a pandemia levou a uma erosão da popularidade de Costa, que foi o que aconteceu noutros países com os seus primeiros-ministros. Há perda de popularidade, mas não é dramática. O que vemos de 2019 é que ele é menos popular do que era e que as expectativas em relação à economia são piores, mas depois quando comparamos as competências de Costa e Rio, as pessoas são mais a favor de Costa do que do que de Rio.”

O papel do Chega
“Este partido, que é um partido de extrema-direita, é um partido oportunista. O líder é a chave: André Ventura vem do PSD, esteve nas eleições locais de Loures e aí começou propaganda anti-cigana, o que se tornou desconfortável para o partido, e por isso saiu e criou o Chega.
Portugal chegou tarde ao populismo de extrema-direita, mas não porque os portugueses sejam moderados. Os níveis de racismo são grandes em Portugal, aquilo que realmente faltava era um líder. André Ventura fala sobretudo sobre a dependência dos subsídios e liga-a às minorias. Com a eleição deste deputado, muito mudou. De repente, tornou-se legítimo dar atenção ao seu discurso, e isto intersecta com a crise dos media.
Os jornalistas estão preocupados com os cliques, e líderes como ele dão títulos dramáticos. Os media tornaram-se muito vulneráveis à presença do Chega. Claro que os media são muito diversos e há bons jornalistas que expuseram o partido e até investigaram relações dos seus membros com a extrema-direita.
Tem havido tentativas de levar André Ventura a tribunal por demonizar alguns grupos, e isso tem funcionado porque nesta campanha continua a falar da subsidiodependência, mas já não fala de ciganos. Os tribunais foram eficazes e ele tem estado a modelar o discurso. O programa de 2019 incluía o fim da educação pública e do sistema nacional de saúde, mas agora parece ter uma posição mais central: por exemplo, o Chega é a favor de manter a TAP, o que é contraditório quando se vê a quantidade de dinheiro que lá é investida face ao dinheiro que se gasta com os subsídios.
Mas onde André Ventura é muito eficaz é a debater. Ele participava em debates televisivos de futebol, e os debates de futebol são agressivos, tática que usa agora nos debates políticos. É bem-sucedido no ataque à política mainstream no que diz respeito à corrupção, e a corrupção é um grande problema com o qual os políticos não lidam.”
Corrupção
“A corrupção é um tema complexo, e só pode ser medido através de perceções. Eu diria que as perceções são sempre tendenciosas em relação a países do Sul. É difícil medir, mas diria que em Portugal as pessoas estão convencidas de que há muita corrupção e há provas disso. Um ex-primeiro ministro corrupto marca um antes e um depois do sistema político. Ricardo Salgado, presidente de um grande banco português, foi também acusado de corrupção e nunca foi julgado. Temos empreendedores envolvidos em negócios duvidosos e fica a ideia de que, se estamos na política ou no mundo empresarial, podemos ser corruptos e nada acontece.
Os estrangeiros dizem “um país tão pequeno! quão difícil será gerir?”. Mas se olharmos para a História, Portugal sempre foi um país difícil de governar. É um país muito periférico, numa Europa enriquecida, mas estamos nas margens e isto sempre trouxe problemas. Mas se olharmos para os países que são periféricos, não somos assim tão diferentes.”
O Sistema Nacional de Saúde (SNS)
“A saúde é uma grande questão, que se tornou ainda mais importante com a covid. É um tópico que divide a direita e a esquerda, e tem que ver com a importância que se dá ao setor privado.
O PSD e os partidos à direita são a favor das privatizações. A esquerda não está a favor disso mas há diferentes posições. O BE e o PCP não querem qualquer envolvimento do privado na saúde, mas o PS é mais pragmático. O discurso dos socialistas é bastante coerente: são a favor do sistema nacional de saúde, mas um dos motivos pelos quais a coligação do governo falhou foi porque o governo não queria investir mais no SNS porque queria controlar o défice. O BE e o PCP defendem que mais investimento no SNS significa mais emprego.
À direita, o PSD tem um documento em que diz que o SNS devia ser gratuito para quem não pode pagar, por isso seriam a favor de cobrar àqueles que podem pagar. Depois temos a IL e o CDS, que são partidos que querem que haja liberdade de escolha em relação a ir a um hospital público ou privado e que o Estado deve pagar.
A Ministra da Saúde, Marta Temido, é contra a intervenção do privado no SNS, e por isso o privado não foi envolvido durante a pandemia. O que foi conseguido na pandemia foi graças ao SNS, não ao setor privado.”
É a economia que divide os partidos
“A economia divide a direita e a esquerda. A direita quer pôr a economia na agenda, sugerindo a redução de impostos, um incentivo ao setor privado para que cresça. Há um grande debate sobre por que é que Portugal não cresceu tanto quanto podia, é um debate que é trazido pela IL mas também pelo PSD, que nos compara à Europa de Leste, que está a convergir com a média europeia, enquanto estamos a ficar para trás.
O PS diz que Portugal cresceu até à pandemia. Mas Portugal tem sido um país de crescimento lento. Para a esquerda, a solução é aumentar salários – o salário mínimo nacional – de forma a estimular o consumo. O orçamento foi chumbado porque a esquerda queria aumentar o salário mínimo, mas os socialistas disseram que já o tinham aumentado em 40 euros.”
O que faltou nos debates
“A Europa. Não surgiu nenhum tópico internacional, ficámos confinados aos debates sobre a economia, o crescimento, os salários, a saúde. Mas também a bazuca, a educação, a cultura e a ciência. Com Costa e Rio, o debate durou uma hora, e eles só falaram de economia, saúde, impostos. A imigração foi uma questão trazida por Ventura e Francisco Rodrigues dos Santos mas que acabou por não ser discutida.
O ambiente também não surgiu. Esta questão não foi politizada, mas devia ser, até porque Portugal sofre muito com as alterações climáticas. Temos o PAN mas também o LIVRE, de Rui Tavares, que começou a campanha a dizer que era um partido ecossocialista, mas estas questões não foram levantadas. São questões de nicho, mas que não foram discutidas. Também duvido que os partidos se conseguissem diferenciar nestes pontos.”
A ecogeringonça
“É algo que Costa introduziu no final de um debate. Se o PS não vai fazer uma coligação com o BE, poderia tentar fazer uma coligação com LIVRE e o PAN. O PAN tem cinco deputados, e podiam juntos ter uma maioria absoluta. É improvável, mas possível. Estes partidos e Costa tinham de se sair muito bem.”
O que dizem e não dizem as sondagens
“As sondagens são muito diversas nas suas metodologias: há sondagens online, o que é um problema porque a nossa população envelhecida não usa a Internet. Temos sondagens por telefone, mas também há muitas pessoas que não respondem, e temos as cara a cara, que são mais fiáveis.
As eleições locais em Lisboa foram uma surpresa. De acordo com as sondagens, Medina ia ganhar, e por muito. Toda a gente se lembra destas eleições e há a perceção de que algo parecido pode acontecer. Claro que as situações são diferentes. As sondagens no passado foram bastante credíveis em eleições legislativas, mas agora as sondagens estão a multiplicar-se por causa da competição entre televisões, por isso é preciso encará-las com algum ceticismo.”
Os cenários prováveis destas eleições
“As sondagens não dão cenários, são fotografias do tempo em que se fazem os inquéritos. O que vai acontecer no dia 30 de janeiro não é comparável. Não anteciparia cenários porque há muitas incertezas e escolhas. Tem havido muito interesse nestas eleições, as pessoas percebem que o seu voto importa.”

A abstenção é tão grande como parece?
“Temos de perceber que há muita abstenção técnica. O número de pessoas que têm mais de 18 anos e que podem votar é menos um milhão do que os cidadãos que estão registados para voto. Pode ter que ver com os que faleceram, mas o sistema tem os cartões de cidadão, por isso não sei será isso. Podem ser as pessoas que já não vivem em Portugal, ou seja, já não estão nos censos mas ainda estão nos registos. Isso faz diferença.
Talvez a abstenção não seja tão má quanto parece. Isto devia ser esclarecido urgentemente. A questão é que, se reorganizarmos, teríamos de alterar a distribuição de deputados, o que é politicamente sensível, poderia haver menos deputados no Interior.
Mas há muita abstenção jovem. São os mais velhos que estão mais motivados e que são mais constantes na votação.”
Como ganhar a confiança dos eleitores
“A confiança no governo melhorou muito a partir de 2015. Foi o período pós-troika, sentiu-se um momento de alívio com um governo mais inclusivo. Mas há um problema de confiança estrutural em Portugal, que não se foi embora, que tem que ver com a dificuldade de produção de qualidade de vida. Tem que ver com a política: como o sistema funciona, como são orientados os partidos, não podemos escolher um deputado, as pessoas não podem votar em quem querem, há uma certa distância, e essa é uma das razões pelas quais não há confiança.
Falamos de uma reforma de eleições desde os anos 80. A única forma seria através de uma revisão da Constituição — a fórmula está na Constituição, e acho que é improvável, mas não é impossível. Se houvesse um acordo entre PS-PSD, eles poderiam fazer isso — são precisos 2/3 dos votos do parlamento para tal. E acho que tentariam reduzir o número de deputados e resolver a questão dos distritos.”
Mulheres no sistema político
“Tivemos uma primeira-ministra, Maria de Lourdes Pintasilgo, antes de Margaret Thatcher. Não ficou primeira-ministra depois de eleições, foi nomeada para tratar das eleições. Foi muito ativa, passou muita legislação e foi criticada porque era suposto estar a cuidar do governo. Para haver mais mulheres, os partidos políticos teriam de escolher uma mulher líder: tivemos a Manuela Ferreira Leite do PSD, mas perdeu contra o PS. Os partidos são os gatekeepers e os partidos mudaram. Hoje há mais mulheres (há uma quota de 40% para a política), o que foi positivo, mas ainda tempos um longo caminho para percorrer.”

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
Ao ler o vosso artigo fico na dúvida se Marina Lobo se enganou ou se a vossa tradução está mal feita…2 maiorias absolutas de esquerda??
“Em Portugal não há votos desperdiçados”…é o próprio ICS que publica estudos a confirmar que em cada eleição existem milhares de votos desperdiçados por não elegerem um único deputado.
Quanto à primeira questão, creio que terá sido um erro, está corrigido. Quanto aos votos desperdiçados, foi uma comparação com a situação no Reino Unido – em Portugal há de facto menos votos desperdiçados pelo sistema em vigor.