O bestiário político nacional regista poucas entradas desde o princípio do século. Houve a “vaca voadora”, materializada na forma de um brinquedo de plástico que António Costa entregou à Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa na apresentação do Simplex 2016. E foi já Carlos Moedas, o novo presidente da CML, a falar numa “fábrica de unicórnios”.

Estas duas criaturas mitológicas – a vaca alada e o unicórnio, entenda-se –  visam despertar em nós o desejo de “sonhar com o impossível”, que “é o primeiro passo para torná-lo possível”, e esta citação de Confúcio estará neste preciso momento a ser dita por algum orador motivacional ou outro profissional da área do life coaching e da psicologia positiva.

De certa forma, a um político também se pede algum talento na gestão da esperança e expectativas dos cidadãos. O problema é sempre o mesmo: encontrar a justa medida.

A expressão “fábrica de unicórnios” já se esgotou enquanto matéria-prima preciosa para a sátira. Ainda deixará alguns a imaginar uma linha de montagem de unicórnios de pelúcia coloridos, mas só os info-excluídos não saberão hoje que um unicórnio é uma startup avaliada em mais de mil milhões de dólares.

O termo foi criado em 2013, altura em que havia apenas 39 unicórnios no mundo inteiro, e frisava a improbabilidade de uma startup alguma vez atingir uma avaliação tão elevada. Entretanto, estratégias de investimento de capital de risco baseadas na engorda rápida para eliminar a concorrência, o crescimento das redes sociais e desenvolvimentos tecnológicos fizeram com que haja hoje mais de 900 unicórnios em todo o mundo, a vasta maioria na área do desenvolvimento de software (comércio digital, inteligência artificial e análise de dados, telecomunicações, cibersegurança, finanças e tecnologia, software de internet e serviços, e software para serviços de saúde).

Mas uma startup unicórnio continua a ser um bicho raríssimo. E um fundador de um unicórnio é quase sempre um extraordinário caso de perseverança, coragem, talento e alguma sorte. Dos actuais unicórnios, mais de metade nasceram nos EUA, a China conta já com 18% dos unicórnios e só uma cidade pode reclamar o título de “fábrica de unicórnios”: a icónica São Francisco (tem 133 destas startups). Para se ter uma ideia da singularidade de São Francisco, somados, os unicórnios de Londres, Paris e Berlim são apenas 64.

Como não se faz um Sillicon Valley da noite para o dia com o orçamento da CML, a expressão “fábrica de unicórnios” só pode ser lida como uma hipérbole de “incubadora de startups”.  

O engenheiro civil Carlos Moedas foi gestor de projectos, esteve ligado à área do investimento e das fusões e aquisições, e fundou uma empresa. Foi depois (2014-2019) Comissário Europeu para a Investigação, Ciência e Inovação. Não deve haver no país ninguém com experiência e sensibilidade tão relevantes para dinamizar a ciência e a tecnologia de uma capital. E as expectativas disparam quando comparamos o percurso de Moedas com o dos seus antecessores desde pelo menos os anos oitenta, pois Nuno Abecasis, Jorge Sampaio, João Soares, Santana Lopes, Carmona Rodrigues (apesar de um percurso académico ligado à engenharia do ambiente), António Costa e Fernando Medina nunca demonstraram qualquer especial interesse pela ciência e a tecnologia enquanto presidentes da CML.

Mas o mistério adensa-se: o que pretende Moedas fazer? A sua intervenção na última Websumit não foi esclarecedora.

Primeira inquietação:

Lisboa tem desde 2012 uma incubadora de startups, a Startup Lisboa, que em breve se instalará no Hub Criativo do Beato, espaço que contará também com a incubadora de startups alemã Factory Lisbon. A fábrica de Moedas será uma terceira incubadora?

Há momentos de passagem de testemunho na política em que as palavras contam. Mesmo quando se reconhece a necessidade de continuar a reforçar uma linha política, alguma inovação semântica é essencial para assegurar que o novo protagonista recolherá os louros quando assegura uma virtuosa mudança na continuidade. Afinal, nenhum rei ficou na história com o cognome “o continuador”, mesmo apesar do viés conservador dos monárquicos.

Daí a necessidade do rebaptismo. Moedas goza, por isso, do benefício da dúvida e do estado de graça de quem começa. Sabemos para já que contará com Nuno Sebastião, fundador da Feedzai (um dos unicórnios portugueses), que será o Alto Comissário do Município para a Inovação, Ciência e Tecnologia, o que aumenta ainda mais as expectativas. Mas pesquisando a imprensa não é possível saber se Moedas pretende construir algo de raiz ou dinamizar o que já existe.

Segunda inquietação:

A moda das incubadoras de startups já tem uns anos e a ideia de Moedas está longe de ser original. Há muitas outras cidades europeias que se estão a posicionar para atrair startups de elevado potencial.

Lisboa pode ser uma cidade simpática, com um custo de vida relativamente baixo para quadros superiores, segura, familiarizada com a língua inglesa e com bom tempo a maior parte do ano, mas estas características também existem em muitas outras cidades europeias. De resto, o custo de vida em Lisboa começa a ser menos apelativo por causa das rendas. Só será simpático viver em Lisboa com os ordenados de Barcelona ou Berlim, porque, considerando os salários locais, a taxa de esforço em Lisboa para arrendar um T2 quase duplica quando comparada com Barcelona e Berlim.

E não se pode confundir o fenómeno do nomadismo digital, em que freelancers se instalam para trabalhar a partir de Lisboa e recebem de clientes estrangeiros com a instalação de uma startup que pagará salários em Portugal aos seus empregados. Porque na hora de decidir onde instalar a empresa, são os incentivos fiscais e o custo da massa salarial que pesam, além de uma cultura de empreendedorismo e risco que Lisboa não possui e não se inventa por decreto.

O presidente da CML pode encontrar espaços charmosos em Lisboa e rodear-se das pessoas mais experientes, mas não controla o que realmente conta para tornar Portugal um país mais atrativo do que os países concorrentes, havendo já quem afirme que a Espanha nos ultrapassou na criação da necessária desburocratização, incentivos fiscais e redução da fatia que o Estado vai buscar aos salários. E a pujança que a França vem revelando,  em parte assente em dinheiro público, dificilmente será mimetizada em Portugal.

No nosso PRR surgem 125 milhões de euros destinados a apoios à contratação de recursos altamente qualificados, o que soa a medida pontual que não resolve a falta de atratividade de Portugal face a países com estratégias mais agressivas de captação de talento e investimento. Londres, Berlin, Estocolmo, Munique e Paris capturaram em 2021 mais de metade do capital investido em startups europeias, o que parece reforçar as assimetrias entre o norte e o sul da Europa.

Terceira inquietação:

Como incubadora de jogadores de futebol, Portugal não se saiu mal, tendo produzido dois unicórnios (Figo e Ronaldo). Mas o país era demasiado pequeno para estes talentos e o mesmo problema se coloca no caso das startups: como assegurar que nos raríssimos casos de sucesso estratosférico Lisboa não será apenas uma escala na inevitável migração para os EUA?

Este problema ultrapassa os limites da cidade e do país, pois é europeu. 2021 foi um ano bom para a Europa tanto na criação de unicórnios (três vezes mais do que a China) como na captação de fundos (mais do que qualquer outra região do planeta, incluindo os EUA), mas a tentação do sonho americano persiste.

Os seis unicórnios portugueses estão todos estabelecidos no estrangeiro (cinco nos EUA e um no Reino-Unido). É certo que foi recentemente criada a Europe Startup Nations Alliance (ESNA), que visa estimular este mercado e assegurar o crescimento das startups na Europa em todas as suas fases, mas ainda é cedo para se perceber se será uma iniciativa consequente.

Quarta inquietação:

Embora o cidadão comum seja incapaz de se lembrar do nome de um Nobel da Química, Física ou Medicina da última década, toda a gente sabe quem foi Steve Jobs e quem são Bill Gates, Jeff Bezos e Elon Musk. Criou-se a ideia de que a inovação só pode vir do digital, mas na Química, Física, Engenharia e Biomedicina as inovações são palpáveis, na forma de novos materiais, instrumentos e medicamentos.

As ferramentas digitais ajudaram-nos a combater a COViD-19, mas não foi uma app que nos salvou, antes os bioquímicos que desenvolveram as vacinas. E não serão os eurekas do digital a inventar soluções que mitiguem a ameaça existencial das alterações climáticas, antes pelo contrário: há mais de 60 unicórnios que lidam com criptomoeda e este mercado tem uma pegada de carbono considerável.

Mas estas evidências de pouco valem para desacelerar a corrida febril aos unicórnios. A aposta dos autarcas nas startups da área do digital reflete o apelo da slot machine: há um ganho potencial elevadíssimo para um investimento reduzido. No fundo, arranja-se um open space modernaço e uma mesa de snooker a um canto para estimular a criatividade de uns geeks com roupa juvenil, e depois aposta-se na entrada de investidores de capital de risco para dar um empurrão nas startups.

Porém, existem na grande área metropolitana de Lisboa universidades e instituições (declaração de interesses: trabalho numa) de vertente tecnológica e capacidade para produzir inovação que, embora não passando pelo digital, poderia também beneficiar da paixão de Moedas, nomeadamente na construção de pontes entre as instituições e no reforço dos laços com a indústria, sobretudo quando o investimento em ciência em Portugal continua muito abaixo do investimento médio na UE.

Reciclando uma frase idiomática norte-americana, quando hoje ouvimos o barulho de cascos a galope, devemos pensar que vem lá um cavalo, não uma zebra e seguramente não um unicórnio multicolorido. Que a miragem dos unicórnios não transforme em pilecas os cavalos que já aqui pastam.   


* Vasco M. Barreto é biólogo. Nasceu em Lisboa, cresceu nos Olivais Sul durante os anos 70 e 80, viveu uns anos no Lumiar e depois seguiu para Paris, onde se doutorou, e a seguir Nova Iorque. É casado e tem duas filhas. Árvores plantadas. Livro a caminho.

* Lia Ferreira nasceu em Lisboa em 1974 e ali cresceu e fez a sua formação artística. É pintora, ilustradora e retratista. Mãe de 4 filhas, leva a vida na Arte.

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3 Comentários

  1. Crónica de mui agradável leitura, gravuras sempre belas. Muito obrigado por esta pausa libertadora…
    Temo que nas ilusões de Moedas não caiba o mais-que-provável cenário futuro, a saber: tal como o dinheiro que os acompanha (que são, no fundo…) os “Unicórnios” não terão pátria. E os seus operadores também serão, com poucas excepções, nómadas digitais, de todo o lado e de nação nenhuma (nações que, a medio prazo verão também revelada a insignificância da sua existência e, não sendo pelo negócio dos “futebois” e da guerra, desaparecerão de vez).

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