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No número 69 do Regueirão dos Anjos, viela por onde passava o curso de água com o mesmo nome, escondida entre a Avenida Almirante Reis e a Rua de Arroios, entra-se por uma porta de garagem. Lá dentro não há carros. Há cadeiras, livros, pratos, talheres e, sobretudo, pessoas. Há 11 anos que umas chegam e outras vão. Todas fazem daquele lugar espaço de reunião e de construção de formas de organização coletiva alternativas às tradicionais.

Arrendado em 2010, quando um grupo de pessoas procurava dar início a um projeto associativo inspirado em centros sociais e culturais existentes em vários países europeus, o espaço passou a albergar o RDA, a Associação Recreativa dos Anjos. “Alguns vinham de uma cena mais anarquista, autónoma, situacionista, outros de uma tradição mais ecologista radical e outros ainda eram pessoas que tinham feito a sua militância nos partidos de esquerda e, por uma razão ou por outra, tinham decidido fazer outro tipo de militância”, explica Luhuna Carvalho. É a partir da vontade de parte dos frequentadores e associados do RDA que, uma década depois, nasce a Arroios BASE.

Luhuna Carvalho, com 41 anos, e Nuno Rodrigues, com 31, integram a lista que se candidata à assembleia de freguesia de Arroios.

BASE é sigla: Bairro, Autonomia, Solidariedade, Ecologia. Explicam como o tempo de pandemia potenciou a ação e a reflexão e pode ter sido a acendalha para a discussão daquilo que viria a tornar-se, para muitos, na primeira incursão eleitoral de um grupo de pessoas que, muitas vezes, não se revê na política tradicional e nas estruturas hierarquizadas de poder.

25 mil refeições servidas e o nascer de uma candidatura

“A pandemia funcionou como momento em que o próprio RDA agiu politicamente”, conta Nuno Rodrigues. A associação já servia refeições baratas, mas o momento exigia mais da cantina e das pessoas que ali desenvolviam trabalho associativo. Entre março e setembro de 2020, a partir da cozinha instalada na garagem, o barato passou a gratuito e os donativos que foram chegando, bem como o trabalho voluntário, permitiram a distribuição de mais de 25 mil refeições.

Luhuna Carvalho, à esquerda, e Nuno Rodrigues, à direita. Foto: Orlando Almeida

“Quando se fala que cozinhar ou fazer uma cantina é algo político, é no sentido de que é algo que constrói uma força política”, diz Luhuna. Durante sete meses e em plena pandemia, a cantina do RDA chegou a servir 200 refeições por dia. Este pode muito bem ter sido o ponto de partida para a candidatura à Junta de Freguesia de Arroios (JFA).

A população que frequentava o espaço mudou em consequência do trabalho desenvolvido nestes meses. Chegaram pessoas em situação de sem abrigo, população imigrante, “precária a vários níveis” e algumas pessoas começaram até a ajudar na preparação das refeições. “Vimos um conjunto de falências do Estado”, diz Nuno.

“Quando se fala que cozinhar ou fazer uma cantina é algo político, é no sentido de que é algo que constrói uma força política”

Luhuna Carvalho

Com “parcos recursos” – pouco dinheiro e sem gente empregada -, Luhuna considera que a entrega de refeições organizada foi “um serviço de emergência comparativamente mais capaz” em relação àquelas que foram as respostas da junta de freguesia durante a pandemia, com um orçamento anual “na ordem dos milhões”, refere Nuno.

Mural pintado pela candidatura, na Avenida Almirante Reis, em Arroios. Foto: Arroios BASE

A ideia germinou. E, assim, a entrada no poder local começou a ser debatida, mesmo entre quem, por norma, recusa as formas de organização política tradicionais. A ideia seria “utilizar as infraestruturas, o poder e os recursos da junta de freguesia para que este nós, que se organiza de maneira horizontal, fluida, consiga organizar as coisas tão bem como tem feito, mas com outros recursos”, explica Luhuna.

Eleições para garantir a “constante organizativa” e expandir a ação

A decisão de se avançar para uma candidatura partiu de uma assembleia do RDA, “mas não foi unânime”. Assim, entre dezembro de 2020 e janeiro deste ano, constituiu-se uma outra assembleia, com autonomia relativamente à associação. Nasceu a Arroios BASE.

“Pode ensaiar-se, a nível local, uma interação com as infraestruturas de governo, com a junta de freguesia, que seja mais de utilizar os seus recursos do que propriamente exercer o poder através dela”

Luhuna Carvalho

Luhuna explica que a sustentação da candidatura está na “ideia de que, de facto, se pode ensaiar, a nível local, uma interação com as infraestruturas de governo, com a junta de freguesia, que seja mais de utilizar os seus recursos do que propriamente exercer o poder através dela”. Há uma tentativa de estabilizar os níveis de ação social e cultural levados a cabo pelo RDA e por projetos que nasceram a partir da associação.

Foto: Orlando Almeida

A associação foi fundada a partir de “uma espécie de esquerda extra-parlamentar ou de uma esquerda autónoma [e] está muito ao sabor das flutuações sociais. Em alturas de maior conflituosidade, como os movimentos anti-austeridade ou as lutas contra a gentrificação, cresce muito e explode. Noutros momentos, em que não há, acaba por reduzir imenso”, diz Luhuna. “Por isso é que os partidos acabam por surgir, por necessidade de manter uma constante organizativa, quer haja as condições propícias à luta [ou não]”.

Para além de procurar assegurar uma ação que seja constante, os recursos de que uma junta de freguesia dispõe permitiriam o aumento da própria capacidade de ação. “Para a próxima, em vez de termos capacidade para cozinhar para 200 pessoas, temos capacidade para duas mil”.

Uma lista “tirada à sorte” e um programa que promove a autonomia e as “alianças invisíveis”

A autonomia é uma das “linhas mestras” da candidatura. “Não no sentido de sermos todos muito autónomos”, sublinha Luhuna. “Na verdade não somos”. E explica: “em qualquer cidade, há sempre uma série de relações que se estabelecem entre as pessoas e que são, de certa maneira, invisíveis”. Nas ruas de Arroios, entre a população em situação de sem abrigo, as populações migrantes ou a população jovem, “bastante politizada, implicada em lutas anti racistas, LGBT, questões da gentrificação”, formam-se várias “solidariedades e alianças invisíveis”. Com a candidatura, o objetivo é “transformá-las numa força política”.

Querem contrariar a ideia de que “se não existe o Estado, existe a selvajaria. É precisamente o contrário disso”, diz Luhuna, apontando para “expressões de solidariedade espontâneas” motivadas pela pandemia.

Foto: Orlando Almeida

Na lista apresentada pela Arroios BASE, a ordem foi “tirada à sorte”. Em Portugal, a apresentação de uma candidatura às eleições autárquicas exige uma hierarquia, com a apresentação de um cabeça de lista e dos restantes candidatos, por ordem. Esta é uma ideia que não colhe simpatia entre as cerca de 25 pessoas que integram a candidatura. Rejeitam a lógica de pessoalização subjacente à realização das campanhas e querem “combater a ideia de que a política é feita do carisma pessoal dos candidatos, por serem muito revolucionários, muito simpáticos, muito sorridentes. É politicamente mais pobre quando uma proposta política é o carisma de uma pessoa e não uma força política”, considera.

“Se houver uma pessoa eleita – existe uma lógica de pessoalização aí – teremos que assumir uma certa autonomia. Essa pessoa terá a decisão, até por uma questão prática, mas será sempre uma relação com o coletivo”

Nuno Rodrigues

Nuno Rodrigues assegura que a primeira figura da lista terá “o mesmo poder que a pessoa que está em último lugar na lista”. “Se houver uma pessoa eleita – existe uma lógica de pessoalização aí – teremos que assumir uma certa autonomia. Essa pessoa terá a decisão, até por uma questão prática, mas será sempre uma relação com o coletivo”.

Embora Luhuna admita que esta campanha “foi uma maneira de experimentar”, assume o objetivo de eleger à assembleia de freguesia nas autárquicas do próximo domingo. Nuno considera que a apresentação de uma lista a eleições é apenas “mais um instrumento, entre tantos outros, a partir do qual queremos criar essa autonomia e essas forças políticas e essas formas de responder àquilo que são as necessidades e desafios que identificamos atualmente”, mas dá conta de uma intenção “de continuar a ganhar força, talvez também nas próximas eleições”.

Uma Clínica Popular, refeições gratuitas e apoio a estrangeiros

O programa apresentado pela Arroios BASE propõe a criação de vários gabinetes de apoio na freguesia. Um deles destinado a apoiar juridicamente cidadãos estrangeiros, “em matérias relacionadas com a entrada e permanência no território português”, no caso, por exemplo, de cidadãos que ainda não tenham visto aprovada a sua autorização de residência no país. Recorde-se que, em 2011, 30% da população de Arroios era estrangeira – mais de nove mil pessoas. Há dez anos, residiam, dentro dos limites da freguesia, mais de 45% do total de estrangeiros residentes em Lisboa.

A candidatura pretende, ainda, oferecer apoio jurídico nas áreas da habitação e trabalho, promover a organização de feiras que privilegiem a “produção local e orgânica a preços acessíveis” e disponibilizar refeições diárias “a todos os que as procurem”, confeccionadas a partir da cooperação entre voluntários e “com autonomia organizacional relativamente à JFA”, que disponibilizará alimentos e espaços para a produção e distribuição.

A intervenção da junta de freguesia deverá estender-se, também, à disponibilização de espaços de trabalho para o estabelecimento de oficinas comunitárias para, entre outros, “a realização de carpintaria, serralharia, restauro, cerâmica e serigrafia”.

É ainda proposta a constituição do Grémio Proletário, um espaço de “formação contínua, material, técnica, intelectual e criativa de todas as pessoas”, e de uma Clínica Popular, que deverá disponibilizar gratuitamente apoio ginecológico e obstétrico, “para lá do reforço dos serviços públicos já existentes [e que] permita um acompanhamento seguro, não invasivo, livre de preconceitos e de essencialismos”, bem como apoio psicológico gratuito, “fomentando a criação de espaços dedicados à saúde mental, auto-organizados e não-psiquiátricos, com grupos de apoio para pessoas em situações traumáticas, como o aborto, a transição de género, as adições, o luto, o esgotamento, a situação de sem-abrigo, a doença ou estado terminal”.

*Atualização 27.09.2021 17h04
Nas eleições autárquicas de 26 de setembro de 2021, a candidatura Arroios BASE não elegeu por pouco. Alcançou 3,57% da votação na freguesia de Arroios, com 439 votos válidos, a 80 votos da candidatura apresentada pelo partido Chega, que elege um representante à assembleia de freguesia.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt

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