Neste período pós-pandemia, espera-se que a 25.ª edição daquele que acrescenta ao pioneirismo de uma programação toda ela alicerçada no conceito de cinema queer o apelido de mais antigo festival de cinema de Lisboa não faça cenas, antes levante questões.

Diria que à partida eles também pensaram assim, num conceito queer enquanto espaço de interseção, onde se cruzam problemáticas de territórios de múltiplas margens, tanto que entre 17 e 25 de setembro, no Cinema São Jorge e na Cinemateca Portuguesa, numa parceria com a BoCa Bienal, trazem a Lisboa o cineasta norte-americano Gus Van Sant em três momentos.

O primeiro momento, na senda das incursões do cineasta pelo universo das encenações, um musical de palco Andy que contará com a participação de músicos e performers portugueses, inspirado no mundo do ícone de moda Andy Warhol e no seu universo criativo.

As incursões pela moda são, aliás, entradas em horizontes que outras edições do Queer Lisboa já têm experimentado, mostrando o indissociável que há nestes dois territórios, não só no cinema enquanto arte e na moda enquanto criação, mas no cinema queer em particular por ser uma arte em criação. Prepare-se, portanto, para um Gus Van Sant não só em palco, mas também em retrospetiva.

Gus Van Sant terá várias obras em exibição na edição deste ano do Queer Lisboa. D.R.

É o que lhe reserva o segundo momento de uma programação mão-cheia, onde pode ver ou rever o clássico Mala Noche (1985), como também pode, entre as várias obras do cineasta disposta para degustação, perder-se, quiçá como eu pela primeira vez, por sete episódios de Ouverture of Something That Never Ended, uma encomenda ao autor pela casa italiana Gucci, corealizada com o diretor artístico Allessandro Michele que ao que apurámos terá perguntado Sant: Que novos horizontes surgem quando a moda sai da sua zona de conforto? Um roteiro a aguardar numeração, interpretado pelo corpo andrógino de Silvia Calderoni a homenagear uma mão cheia de artistas do universo queer.

O terceiro momento é um desafio em modo Carte Blanche feito ao realizador Gus Van Sant pelo festival internacional de cinema Queer Lisboa, que o deixa decidir sobre a programação de uma sala só sua, a da Cinemateca de Lisboa, onde, fazendo agora de spoiler, o filme experimental The Chelsea Girls (1966), de Andy Warhol e Paul Morriset, e o Gerry, assinado por Gus Van Sant trarão como cereja no topo do bolo uma conversa final com o Stant, agendada para o final das duas exibições por carta branca.  

De facto, o festival internacional de cinema queer, ainda espelhando os efeitos da pandemia, prova, em mais um ano, o respeito pelos valores de diversidade e inclusão, métrica tão em voga para tirar a temperatura às boas práticas das multinacionais, de que este festival, que sendo internacional é também nacional, local e comunitário, faz uso ao deixar que as suas propostas se envolvam em temáticas ligadas às migrações, refugiados, direitos humanos, acesso aos tratamentos de saúde e percursos de ativismos LGBTQI+ que impactam a hodiernidade da ciência às mentalidades, da política à sociedade.

Após dois anos sem ver sair pela avenina, quer em Lisboa quer no Porto, a tradicional Marcha do Orgulho Gay cuja tradição remonta a 1969 nos Estados Unidos da América, onde a história nos devolve vários eventos e manifestações, como a Rebelião Stonewall, que marcaram o início do movimento pela luta pelos direitos das comunidades LGBTQI+, haverá quem, em tempos de pandemia, se veja ainda mais obrigado ao armário?

Como sobrevive uma comunidade em que muitos respiram à noite um oxigénio interdito de dia?

A exemplo da Hungria, onde sobre a mesa se colocou a penalização, sob forma proibitiva, da manutenção de conversas sobre o tema homossexualidade junto de menores, como se a sexualidade na adolescência – seja hetero, homo ou bi – e juventude pudesse ser encarada como um tabu ao invés de se afirmar positivamente como um processo de educação social, quantas novas portas se poderão ter fechado quando o lock down pandémico serviu de uniforme aos que, na primeira brecha de possibilidades, atentam contra os direitos humanos?

De 17 a 25 de setembro pode não encontrar todas as respostas, mas é garantido que o cinema mostra mais do que revela e se continuarmos a fazer perguntas talvez um dia nem precisaremos de levar a cabo grandes reflexões. A sociedade por si só criará modelos de resposta.

Inquiete-se, que o Camané também às tantas cantou: «E eu disse Maria vai dizer que eu não estou».


* Ulika da Paixão Franco é mulher, negra, filha de Angola e irmã de Portugal. Na infância lia alto as palavras que saltavam dos manuais de português e na adolescência trocava as matinés no Crazy Nights, em Lisboa, pelo sofá onde lia O Independente. Um dia, quando o Arco-Íris marchar, diz que será repórter para noticiar com o título: «Homem Pisa Planeta onde as Pessoas são todas Iguais».

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