O meu pai – que em solteiro nem gostava muito de sair – tornou-se boémio com a idade. Penso que gostava sobretudo de conviver, mas, como também lhe dava para versejar, fez das casas de fado um dos seus destinos de eleição e das fadistas as fiéis depositárias dos seus poemas.
Podia ir jantar à Parreirinha de Alfama, onde Argentina Santos cozinhava umas enguias fritas antes de se transformar na grande diva do fado castiço; ou então passar a noite n’O Faia, a casa que Lucília do Carmo fundara e onde eu ouvi fado ao vivo pela primeira vez.
Os meus pais foram, de resto, padrinhos de casamento de Carlos do Carmo; e, decerto por causa da amizade que os unia, desde muito pequenos que os meus irmãos e eu pudemos ir jantar ao Faia e voltar para casa à hora dos crescidos.
Eram as nossas primeiras noitadas, e recordo-me perfeitamente de uma empregada me levar às escondidas para a cozinha e me dar um doce de uma tigelinha de barro; mas também de ficar sentada e quieta a ouvir os fadistas com toda a atenção e de, já nessa altura, acompanhar o refrão de muitos fados e até saber de cor algumas letras de fio a pavio (Ai, Mouraria e Lisboa Antiga, por exemplo, que eram verdadeiras pérolas na voz da Lucília).
A adolescência, que normalmente representa um rasgão, não me afastou do fado; e um dia destes, andava eu à procura de uma fotografia quando descobri umas chapas tiradas n’O Faia em que estou com um namorado do tempo da faculdade.
Não quer dizer que não fôssemos também a bares e discotecas, mas muitas vezes acabávamos a noite ali a comer chouriço assado e a trautear um fadinho, porque nessa época se cantava enquanto houvesse público – e isso podia querer dizer até de manhã.
Porém, de há uns bons anos para cá, tornou-se quase impossível ouvir fado ao vivo depois da meia-noite.
Em primeiro lugar, porque passou a ser programa para turistas (que vão em grupo, fazem barulho com os talheres enquanto os fadistas cantam, ofuscam-nos com os flashes dos seus smartphones e vão-se embora mal acabam o pastel de nata).
Em segundo lugar, porque as horas extraordinárias são caras, pelo que, depois de cada fadista cantar três fados (começando pelo mais inexperiente e culminando com a estrela da companhia), os empregados começam a levantar a mesa e, para que ninguém se lembre de pedir mais nada, trazem a conta e acendem as luzes.
Por último, porque já não se consegue ir apenas beber um copo e comer um petisco a uma casa de fados: é obrigatório jantar e, se o preço é proibitivo, a comida é geralmente má.
A circunstância levou naturalmente a que um boémio como o meu pai tivesse de trocar as Parreirinhas e as fadistas por uns piano-bares duvidosos e umas companhias que não levantavam quaisquer dúvidas. E, para poder beber o que lhe apetecesse, deslocava-se sempre de táxi e até tinha um cartão de cliente que lhe permitia ligar para um número que nunca estava ocupado e pagar a conta ao fim do mês. Saía quase todas as noites e voltava de madrugada. Ora, que corpo aguenta esta vida aos setenta e muitos?
Dois ou três meses depois da sua morte, apanhei um táxi para ir lá a casa buscar umas coisas. O motorista, no momento em que parou à porta para me deixar, disse-me, em tom de confidência, que costumava levar um senhor já de certa idade àquele prédio, mas que não sabia dele havia tempo e estava preocupado. Expliquei-lhe que se tratava provavelmente do meu pai, que infelizmente morrera com um AVC, mas que, se me contasse para onde eram as idas, seria mais fácil confirmar.
Os seus olhos brilharam de repente, entre a surpresa e a comoção. Depois, como quem se lembra de qualquer coisa divertida, sorriu e comentou apenas:
– Mas, se acabou de me dizer que é filha dele, como é que eu ia contar-lhe donde o trazia?…

Maria do Rosário Pedreira
Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.
Adorei a crónica.
No início, pensei logo que a condução seria empreendida por um tratado da nostalgia lusa que cruza o escuro ao fim da rua ao som das últimas quadras de um Fado, repentinamente dou de caras com a cumplicidade dos homens a resistir a tudo.
Até à morte.
Fossemos nós, mulheres, capazes de lhes imitar e o mundo seria, provavelmente, muito mais diverso, igualitário e inclusivo.
Não tendo os homens os nossos segredos a acompanhar o chá de fim-de-tarde, sabem sempre quando é chegada a hora de fazer soar o silêncio da cumplicidade.
A cumplicidade dos homens é o que lhes dá poder e nos retira (a nós, mulheres) força, habituadas que estamos a tomar a dianteira para disparar furtivamente sobre as outras mulheres, sempre em defesa dos homens, sejam ou não eles os nossos. Basta-nos a certeza de que não é o homem da fulana que se nos atravessa julgando-se mulher para bang bang bang.
Felicidades nessas viagens de táxi, de cá para lá, em buscas das coisas que lhe fazem faltam e que estão na casa do seu pai. Ainda fará essa rota muitas mais vezes.
De uma cúmplice na cidade, às voltas de taxi, sem arma e sem inveja.
Ulika da Paixão Franco
Gostava muito do seu pai.
E fui com ele a esses sítios, ouvi o dizer muitos versos.
Gostava tanto dele.
Um texto delicioso…..!!!!