Na subida íngreme da Calçada Santana, perto do Martim Moniz, o sol de verão queima os caminhantes mais impreparados. Os pés já vêm de arrasto, até que a música lhes dá vida: ao cimo da ladeira, batidas potentes, de um afro-beat pesado, o volume bem alto, invadem a rua quieta.
O som parece fora de contexto, às quatro da tarde na Lisboa velha. Qual é a fonte?
Nº 169. Porta envidraçada, suja. Atrás dela, o estúdio da Rádio Quântica, um espaço partilhado com o pequeno café Manta, onde o espírito de rave toma forma de luta. A rádio é difundida via streaming, online, com emissão 24 horas por dia. O foco é a música, mas há mais aqui.
Começa na música, sobretudo a marginalizada ou relegada a um lugar periférico, na cidade e na sociedade. Mas reduzir a Quântica a rádio apenas seria desonesto. É também comunidade, coletivo e movimento político.
Nas colunas de som da noite lisboeta
Entre um balcão minúsculo e um cabideiro com T-shirts para venda ao público, o DJ da hora percorre a mesa de mistura. Hoje, o programa, que passa em direto no site da Quântica, é acompanhado de transmissão ao vivo.
É difícil ficar parado, mas há quem atinja a proeza: na sala contígua, os membros da equipa trabalham nos respetivos portáteis, em poltronas velhas e fofas. Toda a história que contam tem direito a banda sonora.
A jornada começa em 2015, quando Inês Coutinho (Violet) e Marco Rodrigues (Photonz), ambos ligados à música independente, têm a ideia de criar uma rádio online inteiramente nova em Lisboa — uma alternativa à rádio pública mainstream —, onde novos artistas e DJs pudessem encontrar o seu espaço e a sua comunidade.

A semente caía em solo bravio, mas fértil. No estrangeiro, o conceito DIY [Do It Yourself ou Faça você mesmo] já conquistara terreno, com rádios online locais, geridas por voluntários, a ganhar tração e uma massa de fãs nos grandes centros urbanos. Em Lisboa, faltava dar o pontapé de saída.
Mas o que é, afinal, uma rádio online? Tal como uma rádio FM, que ouvimos no carro ou em casa através da telefonia, uma rádio online, ou webradio, emite conteúdos e música com uma programação própria diária. Só que esta transmite-se por streaming, em vez de ondas hertzianas, e ouve-se em qualquer telemóvel ou computador com ligação à internet.
Quando Inês e Marco iniciaram o projeto, ainda eram poucas as rádios em Portugal com transmissão exclusivamente online, mas, desde então, o género floresceu.
Inspiração londrina para uma rádio DIY
O projeto português partilha as linhas mestras da rádio NTS, em Londres, onde Violet morava em 2015, e de outras pioneiras da cultura suburbana (como foi a Red Light Radio, em Amsterdão, ou ainda é a Dublab, em Los Angeles).
Mas não é, nem nunca poderia ser, uma mera cópia. A razão anteprimeira: porque isto aqui é Lisboa.
“A cultura raver em Lisboa não é igual à londrina, nem tem de ser. Lá, o pessoal chega às dez, onze da noite, já quer estar num sítio a dar tudo, a consumir música nova, tudo intensamente e logo de seguida. Aqui, é mais tranquilo. Passa-se umas horas em conjunto, a beber uns copos, a conversar, e só depois é que se vai ao clube, sentir a festa, ouvir novos sons. Não há tanta sede de intensidade. É outra cultura, outro estilo. Eu, pessoalmente, gosto dos dois”, diz Inês Coutinho.
Enquanto Violet, segunda pele e nome artístico de Inês Coutinho, a cofundadora da Quântica mantém um projeto musical a solo, a par de múltiplas colaborações como DJ e produtora (sem esquecer a participação na dupla A.M.O.R., que divide com Honey). Acaba de lançar um novo EP, Sickle and Hammer, da editora Alphabet Street, gerida pelo parceiro Photonz e por Yen Sung.

Ouça o novo EP de Violet, aqui
Os dados estavam lançados: o público do underground clamava por uma estação própria; novos artistas das margens, por um lugar que lhes amplificasse a voz. Na comunidade DIY [Do It Yourself], são um e o mesmo, ouvintes e radialistas, a passar música própria ou de outros artistas, que nos últimos seis anos jogaram ao jogo das cadeiras com a programação da Quântica. Ora dentro, ora fora.
Quântica? Porquê este nome?
É desta ideia de troca que surge o nome da rádio: uma referência à física quântica, em que o chamado “efeito do observador” dita que a simples observação de um fenómeno pode produzir, sobre ele, um efeito de mudança.
“É engraçado que, quando pensam na Quântica, as pessoas a associem imediatamente a música eletrónica – daquela clássica que desponta nos anos 1990 e é exportada para cá. Talvez porque tínhamos DJ’s que passavam sons no Lux também nessa onda, mas sempre tivemos e continuamos a ter um pouco de tudo”, reflete Inês Coutinho.
O repertório varia, à vontade do freguês e do autor do programa: eletrónica, ambient, afrobeat, techno — no limite, até heavy metal ou música erudita podem caber no molde. Inês faz um gesto ondulado: “é uma montanha-russa!”, onde o único critério de admissão é ser bom (e diferente).

Até a Quântica chegar, era preciso abrir portas a vozes novas, “locais” e “divergentes”, uma abertura que o online permite. Quem o diz é Bruno Gonçalves, artista, DJ e responsável pela produção da Rádio Quântica. É ele quem organiza, com a restante equipa, os novos programas e eventos da estação. Como o festival online Quantum Leap 3.0, a decorrer a 14 de agosto, ou a 2ª edição do festival Ano Zero, em setembro, desta vez, com apoio da DGArtes.
“Há uma necessidade de mostrar a cultura que não passa [pela rádio FM]”, e vive alimentando-se de si própria e da noite, destaca Bruno. O jeito tímido aguça-se na hora de passar o recado: como pode uma comunidade tão efervescente passar entre os pingos da chuva nos media tradicionais? Talvez a resposta esteja na música.
Nos últimos seis anos, a Quântica foi megafone para uma panóplia de jovens artistas que ali criaram nome e raízes, como Odete, Maria Amor, Herlander, BLEID e muitos mais — incluindo o próprio Bruno, que na pista assina como Phoebe.
O quartel-general da rádio está salpicado de vestígios deste percurso: cartazes de concertos antigos forram as paredes, CDs e vinis preenchem as estantes. Os de pequenas editoras de amigos têm direito a lugar de honra, na prateleira mais alta.
“A nossa mera existência já é política”
Mais que a música, têm em comum um ideal. E quanto à missão que tem em mãos, Bruno não tem dúvidas de qual é nem ao que vem. “A música alternativa nasce nos subúrbios, nas periferias. A partir do momento em que puxas [por ela], também são as comunidades ditas underground ou marginalizadas que a vão trazer”, diz. Por isso, e porque o objetivo sempre foi criar um espaço de inclusão, a Rádio Quântica afirma-se feminista, queer friendly e antirracista.
“A nossa mera existência já é política”, afirma Bruno.
“Apesar de ser uma escolha consciente, é também uma necessidade de quem sente isso na pele. Fazemos questão de nos dirigir a comunidades marginalizadas e o nosso plantel são pessoas racializadas, LGBT, etc”. Uma ideia que se concretiza, além da Quântica, no seu coletivo parceiro: a Mina Suspension, de que Inês Coutinho também é cofundadora.
Quanto ao rótulo underground, não há estigma nem misticismo: é mesmo para ser diferente, assumidamente. Ele é, aliás, parte do conceito. “Eu, pessoalmente, adoro o rótulo”, diz Bruno, entre risos. “Prefiro viver num mundo meio obscuro do que num pop mainstream colorido. Acho que assim tem mais piada”.
Coletivo Mina, onde a festa é outra
Junto à mesa de trabalho, uma estante baixa segura os postais de outros tempos: na frente, exibem imagens delicadas, de traço fino, cada uma com o seu desenho e o nome de uma droga — CBD, MDMA, cocaína, entre outros. No verso, uma lista de perigos, formas seguras de consumo, misturas a nunca fazer, como proceder em caso de problemas, cautelas a tomar.

Antes, acompanhavam todas as festas do coletivo Mina Suspension, mas, com a pandemia, ficaram a ganhar pó na prateleira.
“O objetivo [dos postais] não é incentivar o consumo, mas que quem já consome o faça da forma mais segura possível”, explica Mariana Freitas (BLEID), parceira de Inês Coutinho na organização dos eventos. Os cartões, uma parceria com a Kosmicare, encerram em si a função principal da Mina: tornar os espaços de rave mais seguros, com tudo o que isso implica.
“Somos a face de uma comunidade que se entreajuda e que liga várias artes e artistas da cena underground”, explica Inês. “Antes de sermos uma rádio, somos uma família que se apoia, que atua em rede, e a Mina foi uma extensão dessa comunidade.”
Para compreender a origem da Mina, é preciso recuar no tempo — algo que a física quântica admite ser possível.

A ideia surgiu já a Rádio era ativa há dois anos: Inês estava num concerto do DJ Varela, em que o seu amigo, Pedro Marum, era o DJ convidado. Dividido entre Berlim e Lisboa, Pedro tinha acabado de formar o coletivo queer Rabbit Hole na capital portuguesa, um projeto artístico de vídeo e performance, para onde Inês (Violet) queria muito tocar. Conversa puxa conversa, e daí surgiu a faísca: estavam fartos do mesmo circuito noturno lisboeta, onde problemas e desavenças já haviam surgido.
Porque não unir forças para criarem o próprio?
“No fundo, a Mina é uma festa onde as pessoas se sentem seguras. Depois o nome é essa amálgama de coisas, mina de subterrâneo, de underground, de estar minado…”, explica Mariana. Tornava-se assim possível fazer uma filtragem própria dos espaços para as festas, das condições em que estas ocorriam — e mesmo das pessoas que as frequentavam.
Do ponto prévio, passava-se à ordem de trabalhos: politizar a festa. Se quando os artistas da Quântica e amigos faziam DJ-sets ou organizavam festas no circuito típico chegaram a ocorrer situações “chatas” ou “de discriminação”, com a Mina, “isso não acontece”, frisa Inês. Quem vai, sabe ao que vem, e não basta ser raver ou gostar de techno. Tem de ser amigo da comunidade LGBT.

O objetivo, diz Inês, é fazer uma festa com propósito. “Envolver ao máximo a comunidade da Mina e artistas locais ou menos mainstream, que convidamos para tocar”, e dar-lhes visibilidade. O que inclui, é claro, o plantel de artistas da Quântica.
A pandemia traz reminiscências de um passado pouco distante, em que a recente abertura, em moldes bastante restritos, das discotecas, não permite grandes devaneios. Nas festas, quando ainda as havia, o espírito era de uma rave: locais remotos, luzes coloridas, música alta, confusão, os artistas a passar sons recém-criados.
As casas de banho, sem divisão por género. E uma multidão a dançar, até o sol nascer — isto quando ainda se podia dançar.
Nos bastidores, a animação passa ao lado. “Às vezes nem sabemos bem o que se passa do outro lado, porque estamos tão embrenhadas na organização”, diz Mariana. “Depois as pessoas dizem que gostaram, que foi brutal e nós [respiramos de alívio], ficamos contentes”.
Para unir todas estas pessoas, experiências e identidades, só mesmo a música consegue. E esta passa na Rádio Quântica.
Rádios (online) há muitas
Não é fácil traçar o registo das rádios online que foram existindo em Portugal. Projetos voluntários de grupos de amigos e conhecidos, fãs de música, tanto surgiram como desapareceram, deixando pouco rasto atrás de si. Mas a tendência parece estar a mudar.
E dentro do género da rádio online virada para a música e cultura urbana, a Rádio Quântica serviu de inspiração para muitos dos novos projetos que agora surgem pelo país afora, como a East Side Radio, em Lisboa, e a Rádio Yé-Yé, no Porto.
Numa era de podcasts e conteúdo auditivo prêt-à-porter, ainda faz sentido haver rádios online com curadoria própria?
À primeira vista, parece um contrassenso. António Ideias Moura, ex-radialista da Quântica e licenciado em Tecnologias da Música pela Escola Superior de Música de Lisboa, discorda da premissa. Afinal, esta é a sua paixão.
“A rádio online está a ganhar cada vez mais expressão — não que eu pense que vá ultrapassar em algum momento a rádio FM —, mas que te permite ter alguma oferta alternativa”, afirma o estudante. Na pista, transforma-se em Savant Fair, DJ e produtor de música eletrónica. O que não o impede de viver fascinado pelo mundo da rádio e pelas possibilidades do online.
“Já se vaticinou a morte da rádio milhares de vezes, mas o que eu sinto, observo e estudo, é que cada vez há mais alternativas.” Com o passar dos anos, a telefonia foi sendo empurrada para um papel secundário. Mas onde os outros aparelhos não estão disponíveis, como no carro, são as ondas que nos ligam ao mundo.

Nos últimos 30 anos, a internet veio mudar as regras do jogo, e fazer do online o palco por excelência de novas propostas do underground. “O facto de teres hoje acesso à internet a partir do telefone e em qualquer lugar, [faz com que] não estejas preso à programação moldada pelo FM”, diz António. “Com os dados móveis, pode-se fazer uma viagem a ouvir a NTS de Londres, de Los Angeles, a Berlin Community Radio, a Seoul Community Radio.”
A moda pegou e as rádios DIY [Do It Yourself] chegaram para ficar. De pequenos projetos locais, as estações comunitárias de cidades como Londres ou Los Angeles ganharam projeção internacional, com radialistas reconhecidos e ouvintes fixos.
O programa das manhãs do Charlie Bones [The Do!! You!!! Breakfast w/ Charlie Bones], da NTS, dura há mais de uma década e não deixa de ter audiência, destaca António. “Quando se fala do underground ou da rádio online estritamente musical, ele é quase como o Nuno Markl ou o Vasco Palmeirim. São pessoas que já estão lá há tantos anos e com personalidades tão excêntricas que fazem três horas de manhã todos os dias!”
No campo nacional, o panorama é outro. Uma história não linear da rádio online em Portugal seria mais ou menos contada assim: primeiro, rádios universitárias, nascidas no online, mas em tudo semelhantes aos moldes do FM, para prática dos estudantes (como a RUC, Rádio Universitária de Coimbra, ou a RUM, Rádio Universitária do Minho); depois, projetos individuais, de natureza efémera, criados em redor de um conceito e com forte inclinação musical — como o já extinto Cotonete ou a ainda ativa Hip Hop Radio.
Do boom das rádios pirata no final dos anos 1970, princípio de 1980, conserva-se o espírito desbravador nos modelos que começam a despontar na web no final da década seguinte. As rádios FM tradicionais começam também a ter a opção online como complemento de escuta (de que é exemplo a Rock e a Dance, da Antena 3, em 2011, com um fôlego que já chega esgotado). Mas ainda estávamos longe de uma NTS portuguesa — e da atual leve agitação que se lhe segue.

Em 2015, a Quântica foi a pedrada no charco. “Não acho que a Quântica seja pioneira, acho que é embrionária. Ela lança a semente, autocultiva-se e floresce, quando aqui pouco ou nada existia deste género, e luta por esse lugar”, diz o ex-radialista António Ideias Moura. “O facto de ser feita de pessoas para pessoas, e entre elas tão distintas, faz com que esteja sempre a reinventar-se. Mais do que resiliente, é um sistema antifrágil.”
A Quântica de há seis anos não é igual à de hoje, nem será idêntica à de amanhã. Resta aguardar pelo que o futuro lhe reserva. Ou o que os ouvintes farão dela.
* Luzia Lambuça é vilafranquense de coração e lisboeta por opção. É estudante de Ciências da Comunicação na FCSH-UL e está a estagiar na Mensagem de Lisboa. Este texto foi editado por Catarina Carvalho.
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