A arca do enxoval, em casa da família, guardava vários mistérios. Ou, pelo menos, assim parecia aos olhos de uma miúda sem irmãos, no tempo em que a programação televisiva tinha horários precisos de abertura e fecho, como um estabelecimento comercial.

Mãe, o que é isto?
Fotografias do casamento da prima.
E isto?
Um corte de cetim para uma blusa. Sai daí, que te cai a tampa da arca em cima.

Os pãezinhos são conservados durante um ano inteiro. E nunca apodrecem.

Mas a demanda prosseguia até chegar aos pequenos embrulhos em forma de rebuçado, em que se lia “Obra da Imaculada Conceição e Santo António “. Mais do que qualquer outra coisa, como tudo o que carece de respostas, era isto que mais atraía a miúda.

Que pão era este que não se podia comer durante um ano inteiro e, ainda mais intrigante, porque é que não apodrecia como o outro, por mais tempo que se guardasse?

Talvez porque lhe faltasse a justificação científica, a mãe opunha à curiosidade infantil o escudo da Fé:

Porque é santo.

Nascida e criada na Rua da Madalena, a dois passos da Igreja de Santo António, Leonilde habituara-se, desde a infância, com a mãe dela, ao ritual de celebrar esta festa, a rigor. Não era uma católica cumpridora, ou sequer a-crítica, mas, como tantos “alfacinhas”, tinha um fraquinho por aquela figura sempre representada com doçura, com o menino Jesus ao colo.

A 12 de Junho, Leonilde comprava o pão, que devia ser guardado pelo menos até ao ano seguinte; a 13, acompanhava a procissão Alfama acima. Santo António ao centro, ladeado por São Miguel Arcanjo e Santo Estêvão, por mais abafada que fosse a tarde de junho.

Fê-lo até ao último ano de vida, quando, na cama de hospital, ainda dedicava quadras ao santo, pedindo-lhe pela felicidade da filha e pela proteção de Lisboa, que era de ambos.
Como Leonilde, que foi minha mãe, muitos outros, antes e depois dela, sentiram, ano após ano, o impulso de cumprir este ritual, cuja origem se perde em tempos e histórias muito antigas, em Portugal, mas também em Itália, França, no Brasil e um pouco por todo o lado onde o franciscano português se tornou um dos santos mais populares do cristianismo.

Diz-se que, de Lisboa a Pádua, pelos muitos lugares que percorreu, António se comovia tanto com a pobreza do povo, que, certa vez, distribuiu aos pobres todos os pães do convento em que vivia. O frade padeiro ficou em apuros, quando, na hora da refeição, percebeu que os frades não tinham que comer. Mas quando António lhe pediu que verificasse melhor o lugar em que deixara os pães, de coração aliviado, o frade padeiro constatou que os cestos transbordavam de tal maneira que os frades trataram de partilhar a refeição com os vizinhos.

Histórias como esta, repetidas geração após geração (e representadas por pintores como Willem van Herp, o Velho, em pintura que está na National Gallery, em Londres) alimentaram o culto do pão de Santo António, que, em Braga, se iniciou no final do século XIX e, em Lisboa, na igreja de invocação do santo, na década de 1920.

Eu, como as mulheres da minha família

Há um ano, com a cidade quebrada pela primeira vaga da pandemia e os festejos dos santos populares suspensos, a Igreja abriu-se aos devotos do santo e, como as mulheres da minha família antes de mim, fui, uma vez mais (como nunca deixei de fazer depois da morte de minha mãe, há 20 anos) comprar os pães de Santo António.

Eu, que não sou uma fiel dedicada e muito menos a-crítica. Mas as ruas vazias, num dia e noite que deveriam ser de festa, pesavam tanto quanto a entrada quase deserta da igreja. “Veio muito pouca gente”, lamentavam os voluntários da Obra da Imaculada Conceição e de Santo António a olharem os pães benzidos, mas claramente excedentários, talvez pela primeira vez na História.

Um ano depois, reencontro no mesmo lugar estes mesmos voluntários, Maria do Céu e José Alves, mas eles mal encontram tempo para falar comigo. Forma-se uma fila de visitantes que querem pães, velas, medalhas, pagelas.

Os estrangeiros perguntam pela história dos pães ou das moedas atiradas à estátua (embora a Câmara Municipal de Lisboa procure desencorajar a prática) e José encaminha-os para o vizinho Museu de Santo António, onde podem saber tudo sobre a sua vida e culto.

Agora que já nos tirou o retrato, quantos pães quer, menina? pergunta-me José.
Uma dúzia.
Tantos?
Levo também para as minhas amigas.

Olho para a talega cheia. A Dona Leonilde haveria de gostar.

Maria João Martins

Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.

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3 Comentários

  1. Obrigada Maria João gostei imenso , fale nos mais das tradições da velha Lisboa ….

  2. Belo texto sobre uma das tradições da nossa mística Lisboa.

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