“A menina sabe quem é que viveu neste quarto?” O mês é Dezembro de 1989, o segundo Natal do Chiado transformado em estaleiro de obras após o grande incêndio do ano anterior, e, ali bem perto, no sótão do número 44 da Rua Luz Soriano, onde esta pergunta foi feita, nada sugeria que alguma vez tivesse existido cama, mesa de cabeceira ou sequer os parcos haveres de um hóspede de passagem.

No seu lugar estavam há muito os pesados móveis arquivadores onde se guardava o país e o mundo, tal como o vinham registado os fotógrafos do Diário de Lisboa desde 1921. Ao meio, duas secretárias, prestes a desabar de fotografias por classificar, fichas, telefones, ainda fixos com o fio invariavelmente embaraçado, sentavam-se os arquivistas do jornal, que eram também secretários, confidentes, memória viva não apenas daquela casa, mas também de todo o Bairro Alto: Lurdes e Francisco Calixto, o autor da pergunta.
A menina, a quem nada recomendava a não ser a vontade de aprender tudo o que conseguisse, não sabia.
Como podia a estagiária de 21 anos imaginar sequer que naquela divisão, onde todas as manhãs ia buscar fotografias para a secção de Cultura e Espetáculos, tivesse pernoitado, em época de maior aperto financeiro, Fernando Pessoa?
“Sim, sim”, esclarecia Calixto, na casa dos 60, o lenço de pescoço impecável sob a camisa, a voz a evidenciar quase meio século de tabaco, “era muito amigo do Joaquim Manso e, quando as coisas davam para o torto, ele deixava-o ficar aqui.” De uma penada, a miúda, que não era outra senão a autora deste texto, tomava conhecimento desta petite histoire da grande Literatura, e ficava a saber que Joaquim Manso (1877-1956) fora o fundador e diretor daquele jornal nos primeiros 35 anos de publicação.
Mas se as dificuldades de orçamento tinham levado Pessoa ao sótão da Luz Soriano, não menos próximos de Manso e do próprio jornal foram alguns dos seus companheiros de geração como Stuart de Carvalhaes (autor dos azulejos que cobriam a escadaria do edifício, todos com motivos alusivos à imprensa e hoje depositados no Museu da Imprensa, no Porto), Almada Negreiros ou António Ferro, uma dupla que, logo no primeiro número, a 7 de Abril de 1921, assinou uma página dedicada às tentações da Rua do Ouro (ou do oiro, como se lê no jornal).
“Rua do Oiro rua de metais/ Mazantini de luz, o sol ao alto/Bailes russos deslizam no asfalto../Cantam em coro os vidros e os cristais”, escreve Ferro e Almada ilustra com desenhos de eléctricos e namorados enleados.

“A menina sabe que…?” Não, a menina não sabia sequer que o colega (aliás, camarada, colegas nunca) sentado à sua frente é Ernesto Sampaio, um dos nomes grandes do movimento surrealista, ou que o homem de língua afiada que vem à redacção vender as suas plaquetes não é outro senão o escritor Luiz Pacheco. Mas quer saber rápida e tão profundamente quanto lhe permita aquele ritmo louco de jornal da tarde, dez anos antes da Internet mudar irreversivelmente o mundo e o modo de o noticiar.
Chegara ao DL a meio da licenciatura em História, por causa de uns textos sobre Cinema que tivera o desplante de enviar para lá. Chamaram-na à redacção, para “tratar de assunto do seu interesse”, e perguntaram-lhe se queria escrever mais. E, de repente, aquele ambiente, saturado de um cheiro nada saudável a tabaco e papel de jornal, tomou-a com uma força inesperada.
“Então é a isto que se chama paixão”. Deram-lhe um maço de laudas de 25 linhas cada, em cujo cabeçalho se podia ler “Diário de Lisboa” e a miúda, parva com que o lhe estava a acontecer, emocionava-se de cada vez que metia a folha na máquina de escrever.
“Diário de Lisboa, eu sou jornalista do Diário de Lisboa” e sentia qualquer coisa que devia parecer-se, salvo seja, com a vertigem de Napoleão no Egito: Do alto destas pirâmides 40 séculos vos contemplam.
Não eram 40 séculos, eram, até ali, 68 anos de páginas em que tinham escrito, entre tantos outros, Manuel de Azevedo, José Cardoso Pires, Luís Sttau Monteiro, Fernando Assis Pacheco, Fernando Piteira Santos, Joaquim Letria, Mário Castrim, Alice Vieira, Mário Zambujal…
Leia a crónica de Mário Zambujal aqui.
Em 1936, em plena Guerra Civil de Espanha, Mário Neves a relatar para o DL a carnificina do cerco de Badajoz ou, em 1967, Pedro Alvim a contar os mortos das cheias no Ribatejo, à luz dos fósforos que se acabavam antes que ele chegasse ao fim da lista. Tudo sob a apertada vigilância da Comissão de Censura, que sempre suspeitou que o DL não era da situação. “A menina sabe que era eu que ia todos os dias buscar às provas à Censura?” perguntava-me um dos porteiros. “Um dia, os cortes eram tanto que eu barafustei, disse que não havia direito. Fui logo detido. O Dr. Ruella Ramos, que já era o dono do jornal, é que me foi buscar.”
Mas os tempos mudavam. O feudo masculino, que ainda eram os jornais, adaptava-se com dificuldade à chegada de mulheres que queriam não ser secretárias ou telefonistas (sim, ainda as havia, e com cabine de PBX) mas jornalistas, imagine-se. A redacção, talvez “picada” por uma direção que via mais longe, abria-se mas resistia na mentalidade arraigada a um tipo de boémia em vias de extinção. Punha-as à prova todos os dias com um palavreado tão desabrido como os modos, sem suspeitar que a determinação delas acabaria por vencer o eventual choque.

Em pouco tempo, eram as miúdas que os convenciam a eles que estava na hora de trocar as máquinas de escrever e os seus teclados AZERT pelos computadores bem mais silenciosos e limpos na hora de “pentear” a prosa. O DL, que fora o primeiro jornal português a ter offset e a prescindir da tipografia, não podia ficar para trás em mais esta etapa de transformação tecnológica.
Às 9 da manhã, Acácio Barradas, o chefe de redação, chama-me, entrega-me o serviço do dia e diz: “Vais, falas com os tipos e vês o que dá. Às 11, o texto tem de estar pronto para compor.” E eu ia, o coração a bater descompassadamente, mas, dia a dia, cada vez mais segura de que sou capaz de fazer as perguntas certas, de recolher as informações que importam, de que consigo cumprir o deadline e que sou surda aos gritos que tomam a redacção à medida que os minutos se esgotam. Ao meio-dia, impreterivelmente, o prédio começa a abanar ao ritmo da rotativa, instalada na cave.
Está na máquina, seja o que São Francisco de Sales, que é padroeiro dos jornalistas, quiser.
À medida que ia dando conta do recado, os textos sobre Cinema foram sendo complementados por reportagens, entrevistas e, claro, notícias, muitas notícias. A responsabilidade ia crescendo. “Vais entrevistar o Luís Miguel Cintra e o Manoel de Oliveira, vais fazer a cobertura da Feira do Livro (Achas que consegue arranjar um assunto de reportagem na Feira todos os dias? Tens uma página.)
Na madrugada em que fiquei acordada a escrever sobre o concerto da Madonna, transmitido em direto pela RTP, hei-de aprender também que o mundo pode alterar sem aviso as prioridades de um jornal. Saddam Hussein invade o Koweit e os Estados Unidos ameaçam retaliar. Os Telexes (sim, ainda funcionavam nestes tempos sem internet) não param. A France Press, a Lusa, a Reuters informam. “Ainda bem que já trouxeste o texto escrito. Vai entrar mas tens que ajudar aqui no Internacional.”
Hoje sei que poderia ter ficado ali, assim, a vida toda. A conversar com as vizinhas do Bairro Alto, que tinham com os jornais que ali moravam (à época ainda o Diário Popular, mais acima na mesma rua, A Capital e A Bola), uma relação de família, a almoçar na Pastelaria , mesmo em frente. Mas foi “engano de alma ledo e cego” que a fortuna não deixou durar muito.
O acesso cada vez mais fácil à informação, numa época em que se falava com insistência da abertura de canais privados de televisão, há muito que punha em causa a razão de existir dos jornais da tarde. Uma manhã, estando fora em reportagem há vários dias, telefono ao chefe de redacção para lhe dar conta do que fazia, mas ele nem me deixou falar:

“Já sabes? O jornal vai fechar.”
O mundo desabou. Houve um abismo que se abriu à minha frente, onde antes via um caminho. A rotativa do DL pararia menos de dez dias depois, a 30 de Novembro de 1990. No dia em que se assinalava o 55º aniversário da morte de Fernando Pessoa, bem perto dali, no Hospital de São Luís dos Franceses.
Leia a crónica de Ferreira Fernandes sobre o centenário do Diário de Lisboa
Leia a recordação de Mário Zambujal

Maria João Martins
Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.
Foi o jornal em que trabalhei anos .Comecei no Diário de Lisboa Juvenil com Mário Castrim .Depois de um tempo no Jornal do Ribatejo (fechado pela censura ) , de uma passagem pela Vida Mundial depois de um Curso de Jornalismo no Sindicato de Jornalistas ( feito com Mário Cardoso ,Diana Adringa e outros ) ,iniciei uma colaboração no Comércio do Funchal e Jornal do Fundão. Convidado por Antónia de Sousa iniciei colaboração com o pseudónimo de João de Matos Madeira e pseudónimos femininos no Diário de Eva ,coordenado por Antónia de Sousa. Na Vida Mundial fui espancado pela polícia em 1 de Maio de 1969 . Tomamos então a iniciativa de protestar junto do Sindicato e bem depressa nos demitimos da Vida Mundial. Participo na altura no Secretariado do MOD que reúne no escritório do dr.Vareda ,em representação do distrito de Santarém. É Mário Castrim que me traz para o Diário de Lisboa no início de 1970 , onde começo a colaborar na Mesa Redonda do DL , no Suplemento Feminino e na ” Mosca ” . Antes escrevia os chamados Postais do Zé que enviava de Santarém. Faço na Mesa Redonda imensas reportagens em 1970 e 1971 .Depois das prisões políticas de 1971 sou afastado do DL com Helena Neves. Fiz imensas reportagens de primeira página ,principalmente de assembleias sindicais. Depois de sair do DL passo a colaborar no NA e Seara Nova até que Bessa Múrias me vai buscar para A Capital onde estou até Abril de 1974. José João Louro
Foi o jornal que me acompanhou diariamente de meio da década de 60 até fechar. Chegava a Covilhã pelas onze da noite.
Mais tarde, colocado Centro de Instrução de Operações Especiais em Lamego a coisa piorou: em dias de sorte aparecia em Lamego pelas 13 horas ou pelas 19 horas do dia seguinte.
Saudades um
Quando o DL acabou eu teria 14 anos. Já gostava de ler jornais, mas era mais ligada ao Se7e. A descrição que faz da redacção é o que está no meu imaginário do jornalismo. O “jornalismo romântico”, como gosto de chamar. A boémia, as conversas infinitas e as penas de fino recorte como a de Assis Pacheco.
Era muito menina ainda, mas ia com o meu”Tio”, Luís da Cunha.
Teria os meus sete anos, mais ou menos.
Ainda me lembro do cheiro da tinta, do alinhamento dos logotipos, da impressão…
Ir com meio mundopara a Trindade. Seria o quê, 65/66…
Não me lembro realmente. Só sei que gostava muito!
Nasci, por acaso, em Lisboa, mas vivi infância e adolescência em Algés. Ao fim da tarde os combóios chegavam e toda a gente procurava os ardinas, carregados de jornais vespertinos. O meu pai só comprava e lia o Diário de Lisboa. Quando já não o encontrava, não havia jornal em casa. Cresci a ler o Diário de Lisboa, as redacções da Guidinha, do Sttau Monteiro. Fiquei para sempre com os nomes de todos os que lá escreviam (e com que qualidade!), o Assis Pacheco foi uma figura marcante, prematuramente desaparecido. Quando o meu pai morreu, em 1981, o jornal continuou a ser o Diário de Lisboa, claro. No dia em que o jornal “desapareceu” fiquei com uma tristeza enorme. E agora, onde vou arranjar um jornal assim? Felizmente, nasceu o Público, o meu jornal, onde se escreve em Português!
Trabalhei no Diário de Lisboa durante três anos, os mais mais marcantes da minha vida como jornalista. Nunca mais voltei a ter um sentimento de pertença tão forte nem um orgulho tão grande quando me apresentava. Saí no último dia. Tal como acontece com a Maria João, com quem trabalhei, um pouco de mim ficou lá para sempre.
O Diário de Lisboa foi a realização do sonho de ser Jornalista. Desde o início cumpri o acordo que fiz com aquele jornal: eu dava-lhe tudo de mim e ele construia-me e enriquecia-me como pessoa e profissional. Todos os dias foram marcantes. Mas há uma sexta-feira que jamais vou esquecer: “hoje, às 22.00 horas, embarcado num C-130 para a Jordânia. Vais ficar na fronteira com o Iraque e fazes a cobertura da invasão do Koweit pelo Saddam Hussein….”. Às palavras foram proferidas pela direção do jornal. Eram 17.00 horas…. tive cinco horas para tratar do passaporte, do visto, do dinheiro, das roupas… seria apenas por três dias… mas fiquei lá num mês…