Depois de mais de um ano de pandemia e de vida em modo sobrevivência, com dois confinamentos rigorosos, distanciamento físico, contactos reduzidos e máscaras quase como segunda pele, que desafios coloca o regresso à relativa normalidade que a segunda fase do desconfinamento abrirá? A psicóloga e psicoterapeuta Ana Moniz, autora de “Este Livro Não É Para Fracos”, ajuda a perceber.
Lisboa, que antes da pandemia era uma cidade fervilhante, está vazia. Um maior desconfinamento trará uma maior sensação de normalidade ou ainda existe muito medo?
Imagino que numa cidade como Lisboa a noção do risco seja maior, por causa dos transportes e das aglomerações de pessoas. A mudança foi mais radical e notou-se mais no centro de Lisboa porque fecharam uma série de espaços, lojas, restaurantes, cafés, teatros, cinemas, museus, serviços, etc., que noutros lugares nem sequer existiam. Como é que se volta? Devagarinho e ao ritmo de cada um. O que me parece é que é preciso manter os cuidados, mas começar o mais cedo possível a voltar e a abrir e cada um participa se e quando quiser.
Será mais difícil para quem?
Para quem tem estado mais isolado. E é verdade que há mais pessoas a viver sozinhas nas cidades. Muitas que, por exemplo, dependem mais das deslocações ao trabalho para socializar. Uma coisa em que fui reparando na experiência clínica é que no início o confinamento custava mais aos mais extrovertidos, que precisavam mais de sair e estar com outros, mas os que acabam por ficar mais desestruturados são os que, estando aparentemente confortáveis com o isolamento, dependem mais do trabalho para socializar e sair e relacionar-se, porque a rede social é menor. É mais provável numa grande cidade passar um dia inteiro sem falar com ninguém do que numa terra mais pequena, onde as pessoas se conhecem todas.
Sim, as redes de socialização são diferentes numa aldeia, onde, mesmo que as pessoas vivam sozinhas, têm a vizinhança e vivem mais em comunidade.
Mas esse foi um fenómeno curioso que a pandemia criou em Lisboa: a descoberta dos vizinhos e a criação de redes de vizinhança. Se uns tiveram a vida feita num inferno por causa dos vizinhos, outros descobriram-nos e criaram laços engraçados, porque precisaram mais uns dos outros e houve uma noção maior de entreajuda.

Depois de um ano de confinamento, desconfinamento, novo confinamento, com os primeiros meses do ano particularmente traumáticos, devido ao descontrolo do número de novos casos e de mortes, é normal as pessoas terem medo de voltar à vida?
Há sempre algum desconforto que é normal e convém que a dessensibilização e exposição sejam graduais. Mas já existe uma certa habituação e adaptação. Repare que mesmo quando os números estavam mais altos, o medo estava mais baixo do que no início da pandemia, exatamente porque nos adaptámos. Porque já é uma ameaça conhecida e as ameaças conhecidas trazem alguma naturalidade e a noção de que é um risco com o qual vamos ter que aprender a viver, porque não sabemos quando é que acaba ou mesmo se acaba. Por isso, penso que este desconfinamento será mais fácil do que o primeiro. Aliás, nota-se que as pessoas quebram mais as regras, viu-se mais gente na rua neste segundo confinamento do que no primeiro.
Há mais risco, então?
Não necessariamente, porque também já integrámos as formas de prevenir o contágio. Se calhar há uma certa distância social que vai começar a fazer parte do nosso dia a dia. Se calhar os beijinhos sociais vão desaparecer e vamos dar beijos apenas em situações de afeto e não de cumprimento social. A máscara vai demorar mais a sair da nossa vida, há coisas que provavelmente vão transformar-se, mas é preciso criar condições para voltar à vida normal, a bem da saúde mental e da economia do país.
Aumentaram os problemas de saúde mental, com a pandemia?
Aumentou imenso o número de pessoas a procurar terapia e fala-se mais de saúde mental, o que, paradoxalmente é positivo, porque é sinal de que as pessoas estão mais atentas e o estigma está a diminuir. Quando estamos isolados, sobretudo se estamos sozinhos, estamos muito mais dentro da nossa cabeça, o que é mau para a saúde mental. Há muita coisa que não se resolve só a pensar, resolve-se a fazer, a ocuparmo-nos, a conversar com pessoas, distraindo-nos, focando-nos noutras coisas. E há pessoas que passam dias sem falar com ninguém em voz alta. Isto é muito violento e vai notar-se mais tarde. Há pessoas, e essas é que me preocupam mais, que estão a perder músculo e vai ser preciso um esforço adicional para voltar à vida, ao trabalho, à exposição pública, à relação com os outros.
Ver artigo sobre saúde mental dos lisboetas aqui.

Os anglo-saxónicos já criaram várias siglas para os medos relacionados com a pandemia, entre os quais o f.o.d.a. – fear of dating again, medo de voltar a namorar ou ter sexo. Como é que se lida com isto, para poder ir reconquistando a normalidade?
Passando a ser um tema, quando as pessoas estão a conhecer-se, se tomam cuidado, como é que lidam com a pandemia, falando durante mais algum tempo online, antes de se conhecerem, se se tratar de apps de encontros, sendo mais seletivos em relação a quem deixam entrar na sua bolha ou não. Parece-me que houve muita falta de empatia na comunicação sobre o confinamento, que é muito dirigida a famílias. Houve um esquecimento de quem vive sozinho, para quem isto foi e é duríssimo, sobretudo se cumprirem as regras à letra. Outro dia, estava a ler um artigo do The Guardian em que o autor dizia que a maior intimidade física que teve com alguém durante um ano tinha sido com a senhora do supermercado que lhe dá o troco para a mão e isto é de uma violência enorme.
A ideia é que se possa deixar entrar outras pessoas na bolha, com algumas precauções?
Sim, com medição de risco. Por exemplo, mostrando disponibilidade para fazer teste antes de se conhecerem. São rituais que podem passar a fazer parte do início das relações. No fundo, o que temos agora que fazer todos, não só neste aspeto, é pesar os riscos, que é outra coisa interessante, porque parece que é a primeira vez que este desafio é tão claro. Na verdade, nós não vivemos sem risco e por isso é preciso pesá-lo e lidar com as ameaças – da doença, da morte, do desemprego, da crise financeira – de forma madura.
E como é que se faz isso?
Aceitando a incerteza e assumindo a responsabilidade de gerir o risco.
Falta essa responsabilização individual, de cuidar de si próprio e dos outros?
Sim, essa noção de cuidar de si próprio e dos outros dentro de alguma gestão do risco, tendo consciência de que não é possível evitar o risco em absoluto. Quando trabalhei em cuidados paliativos, dizia-se uma frase que me marcou muito: as pessoas morrem como vivem. Aquela ideia de que o processo da morte é sempre de redenção e valorização apenas do que é essencial não corresponde à realidade, se não consegue fazer em vida, não o conseguirá fazer na fase de aproximação da morte. Nas dificuldades maiores, as pessoas vivem com os recursos de coping (lidar com) que têm na vida. O mesmo se passa com a pandemia, por isso é que há pessoas que se vão mais abaixo do que outras. Mas a capacidade de adaptação do ser humano é enorme.
Faz muita falta a empatia, nos tempos que correm?
Muita. Mais empatia e menos juízo de valor. A capacidade de as pessoas não serem empáticos é de uma criatividade enorme. Há 40 respostas para dar e nenhuma delas é empática e isso nota-se muito, particularmente neste período, em que se passa mais tempo a controlar o comportamento dos outros do que a tentar compreendê-lo. É aflitivo. Numa perspetiva de sociedade, seria tudo muito mais fácil e funcionaria tudo muito melhor se nos puséssemos no lugar uns dos outros. Evitar-se-ia o extremar de posições e divisão tribal a que estamos a assistir, em que o conflito, a raiva e a frustração dominam, quando a empatia seria muito mais produtiva. Quem é que passou por isto melhor? As pessoas altruístas, com sentido de missão e de entreajuda. A empatia permite esta compaixão e ligação aos outros e é uma fonte de bem-estar, porque fazer coisas pelos outros gera gratidão e é das coisas que dá mais bem-estar. Parece lamechas, mas é verdade. A empatia é a atitude e nós não somos educados para a empatia.

Grande parte das pessoas, mesmo aquelas que tiveram que continuar a trabalhar presencialmente, fecharam-se na sua bolha, encontraram novas rotinas, diminuíram os contactos presenciais, de alguma forma estabeleceram prioridades e restringiram-se ao essencial. Como se sai destas bolhas que nos pediram que criássemos?
Não estamos reduzidos ao essencial, estamos reduzidos ao que dá para sobreviver durante algum tempo, mas falta muito para o essencial. Sair, estar em grupo, conhecer novas pessoas, dançar com gente à volta, isso também é essencial e por enquanto não é possível. Estamos nos mínimos e não se aguenta muito tempo nos mínimos sem perder coisas. Há pessoas que estão a perder mais. Tenho ideia de que os adolescentes e jovens adultos são os mais penalizados.
Estão a perder fases e experiências fundamentais para o desenvolvimento, não é?
Na melhor das hipóteses, estão a perder experiências, que podem ser adiadas, mas estão sobretudo expostos a uma visão da realidade dominada pelo medo, a perigosidade, a tristeza, com muito pouca prioridade ao lúdico, à curiosidade e à exploração. Temos que ir percebendo que danos é que isto pode ter e procurar ajuda, se for preciso.
Quem também perdeu muito, e isso faz-me sempre impressão, são os mais velhos. Outro dia no Facebook alguém pedia recomendações para sítios seguros onde, quando o confinamento acabar, festejar os 90 anos da avó em segurança, com a família. Cinco em cada seis comentários eram a dizer para ficar em casa e não pôr a avó em risco. Isto é de uma falta de empatia atroz. Alguém que festeja os 90 anos não tem que ter alguém de fora a dizer que tem que ficar fechada em casa sozinha até aos 91.
Até porque, com ou sem pandemia, pode não chegar aos 91. Aos 90, cada dia é ganho e devia ser vivido o melhor possível, não é?
Exato. Mas é muito fácil opinar logo que é melhor ficar em casa quietinha. A maneira como as pessoas nos lares têm vivido tudo isto, com a ausência de visitas, devia ser repensada, porque é uma violência e uma crueldade. E temos todos muito medo de dizer isto porque ainda nos chamam negacionistas, quando é apenas uma questão de bom senso e empatia. É possível continuar a viver, ainda que tendo que tomar as precauções necessárias.
Há pouco falou em dançar. É estranho pensar em voltar a dançar numa discoteca cheia de gente. O medo é uma reação adaptativa. A partir do momento em que se regressa a alguma normalidade porque o risco é menor e o permite, o medo vai desaparecendo ou alguns ficarão numa espécie de stress pós-traumático?

Ninguém se vai esquecer da pandemia, fará sempre parte de nós, mas temos uma capacidade de adaptação extraordinária. Cada um levará o seu tempo, mas voltará à vida normal. O lazer, o prazer, o convívio, fazem parte das necessidades básicas das pessoas. O regresso à normalidade nesta dimensão pode, em alguns aspetos, ter que ser regulado, mas tem que estar previsto. Houve agora um concerto em Barcelona, sem distanciamento, mas com máscaras eficazes e testagem, que foi uma experiência para se perceber qual o grau de segurança e preparar o regresso à vida normal. Temos que perceber como se vai fazer, mas as pessoas vão precisar de dançar, estar juntas e conhecer gente novas, fora da bolha. Nas cidades ainda se sente mais isso, por uma questão de hábito, de estarmos mais expostos a outras pessoas, a novas pessoas, a pessoas diferentes, talvez se sinta ainda mais a falta da diversidade.
Preparamo-nos para uma repetição dos loucos anos vinte ou não?
Vai depender das pessoas, mas o que noto nos adolescentes e jovens adultos é uma excessiva adaptação a esta vida de confinamento, o que me preocupa. Parece que perderam alguma vitalidade e adaptaram-se muito rapidamente a não sair de casa. Portanto, respondendo à sua pergunta, não sei.

Catarina Pires
É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.
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