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As esplanadas abriram esta semana, mas lá dentro os restaurantes e cafés continuam interditos aos clientes. Tempos estranhos, estes. Ainda ontem (enfim, em 1939), eram alguns clientes, sobretudo elas, que, fartos do interior dos cafés e das pastelarias do Rossio, chamavam o empregado, apontavam para a cadeira e, depois, para o passeio luminoso.
Podiam…? O empregado, abanava a cabeça. Que não. Foi preciso alguma insistência até os cafés lisboetas entenderem a boa ideia que seria uma cidade de sol abrir-se para fora de portas: as esplanadas!
Diz a lenda que foi a Pastelaria Suíça a primeira a acatar a sugestão dos refugiados. Eram estes, fugidos da guerra – que seria a II Mundial e alastrava por toda a Europa – a alertar contra o desperdício. Lisboa tinha luz e calor mas os cafés encafuavam-se em salas e salões.
Os cafés e os restaurantes, habituados a contas tacanhas, não tinham patrões com rasgo para adivinhar que a subfacturação, inevitável quando chovia e fazia frio, seria compensada com o agrado do cliente pela oferta suplementar de consumirem sob dias gloriosos. (Só para comparação: já pensaram quanto tempo os tasqueiros portugueses resistiram até passar a vender a cerveja gelada, e que escorrega o dobro, pela goela e na caixa registadora?)
Para desculpa dos donos dos cafés, há que dizer, o seu cliente tradicional era o cliente português. Pois, não era o mais indicado para propor mudanças. Também ele, o cliente, tinha o gosto atávico pelo fechado, lá dentro até o fumar passivo parecia saber melhor. Não sem razão, ele habitava na arquitetura nacional, janelinhas nos prédios, varandas fechadas e até nas vivendas à beira-mar havia paredes inteiras cegas ao por-do-sol. Como podia dali vir ânsia pela luz do passeio, para sentar e ver passar? Portugal tacanho.
Quando a Europa se reinventava nos cafés
As palavras agora tão citadas do filósofo George Steiner (1929-2020), a “Europa é feita de cafetarias, de cafés” (A Ideia de Europa, Gradiva) ainda não tinham sido produzidas. Mas, mesmo quando a Europa se desfazia, já ela se reinventava nos cafés. Os tempos anómalos são férteis para as mudanças.
Naqueles tempos, Portugal tinha uma polícia política muito atenta e castigadora das mudanças. Em 1939, fugido do fim da guerra civil espanhola porque tinha combatido do lado derrotado, o poeta Miguel Hernández entrou pela fronteira de Huelva. Julgou poder acolher-se na aldeia raiana de Santo Aleixo da Restauração, em Moura, mas foi denunciado à GNR e esta entregou-o à Guardia Civil. O poeta seria condenado à morte, esta seria comutada, mas ele morreu na prisão, aos 31 anos, em 1942.
Na prisão de Alicante, Miguel Hernández recebeu uma carta da sua mulher, queixando-se da fome. Lá em casa só havia “pão e cebola”, para ela e para o filho. Hernández escreveu então uma nana, canção de embalar, de la cebolla: “No berço da fome/ Estava o meu menino/ Com sangue de cebola/ Se amamentava…” E trinta anos depois o cantor catalão Joan Manuel Serrat irá explicar-nos, com o poema de Hernández, como a Europa se fazia até com um bolbo
Disso, de política trivial, a PIDE estava atenta, combatia e até julgava resolver radicalmente (se calhar não, se o poeta não tivesse sido devolvido aos tiranos talvez não tivesse inspiração para a canção de embalar). Entretanto, a polícia ainda conseguia ocupar-se de outras infrações menores.
Decoro… ou não
Em 1936, um descapotável, um automóvel alemão da marca Adler, entrou em Portugal, também pelo Alentejo. Atrás iam duas irmãs, Ruth e Ellen, garotas, e no banco da frente, os pais. Parecia uma viagem de gente feliz, mas era a fuga a uma tragédia anunciada, de que ninguém ainda calculava a dimensão. A família Arons era rica, tinha até um nome de rua em Berlim, mas o dr. Albert Arons, advogado judeu, soubera ler os avisos da chegada de Hitler ao poder.
Muito mais tarde, Ruth Arons contou-me que se assustou à entrada de Portugal. Um GNR mandou parar o carro e, educadamente, como era devido a dono de carro tão imponente, explicou como era desapropriado ele conduzir em mangas de camisa. Portugal e os seus pequenos absurdos.
Em 1934, Ilse Lieblich era outra judia alemã precursora. Porque tinha um irmão no Porto, ela desembarcou no cais da Ribeira e subiu o empedrado até ao centro da cidade. Ficou impressionada com a quantidade de pés nus, “não só dos miúdos, mas de adultos, homens e mulheres”, contou-me para uma reportagem no Público, em 1991.
Sobre o calçado ela não tentou grandes revoluções, mas sobre outro hábito, sim. Frequentou os cafés, figura estranha, porque feminina. Arrastou outra amiga, esta portuguesa, e o escândalo ia alastrando, ao ponto de até fumarem. Casou-se com o arquiteto portuense Arménio Taveira Losa, e será como Ilse Losa que deixou o testemunho de O Mundo em Que Vi e o romance sobre exilados Sob Céus Estranhos, do qual Daniel Blaufuks (lisboeta, filho de exilados) fez um documentário com o mesmo nome.
A esplanada é uma lição
Eis, pois, algum enquadramento para o reviver da grande revolução que nos acontece hoje. As esplanadas. Para mais documentação podemos olhar um quadro impressionista. Em 1877, Renoir pintou Le Bal du Moulin de la Galette, no cimo da colina de Montmartre, mesas e cadeiras à porta dos cafés, de onde os parisienses saltavam para a dança. Os candeeiros de rua são a gás, os chapéus dos homens são de palhinha, os vestidos das moças são alegres, como os das vendedoras de O Paraíso das Damas, que Zola irá em breve publicar. O ambiente é frívolo, de gente do bairro.

Meia dúzia de anos antes, a Comuna de Paris tinha sido afogada, exatamente ali, na “semana sangrenta” de maio de 1871, há quase século e meio. Dançava-se à porta do moinho da Galette, quando a Assembleia da República burguesa e ainda assustada, decidiu construir a Basílica do Sacré-Coeur de Montmartre, para do alto da colina prevenir Paris que os bons costumes estavam repostos…

Mais depressa – outra vez os cafés a fazer a Europa – a ideia das esplanadas chegou à parvónia: em Arles, Van Gogh, em 1888, pintava o Terassse du café le soir sob o céu estrelado da Provença, França.
E chegamos assim a uma questão batismal e importante. Talvez por causa do diálogo de surdos entre os refugiados e os criados de mesa, em Lisboa, fins da década de 1930, a palavra foi mal traduzida. Sim, esplanade é lugar de paisagem urbana francesa, por exemplo, os Inválidos é uma esplanada – sítio vasto, aberto, plano, frente a edifícios públicos, para se realizar cerimónias. Ao convívio de mesas e cadeiras, nos passeios em frente aos cafés, em França chama-se terrasse, coisa que em português não se adequa à palavra mais próxima, terraço, que colocamos em lugares cimeiros de um edifício.
Terrasse, no Larousse, chama-se à parte do passeio, frente a um café, onde se sentam os clientes. Estes bebem e comem, e, sobretudo, olham. Também, aqui, houve um viajar da palavra: terrasse (e também terraço), plataforma na vertente de um monte, para plantar e, outra vez, olhar de posição soberba (é o que há no nosso Douro vinhateiro).

Em 1950, o fotógrafo Robert Doisneau colocou-se no lugar certo para fotografar o que ele queria expressar. Na foto, o canto inferior esquerdo ficou cinzento, umas costas e uma nuca. Foi voluntário, para mostrar que quem estava ali sentado, um freguês de uma terrasse parisiense, a olhar em frente, era o mais importante, era como um visitante do Museu da Vida. O resto, era o beijo de um casal, nítido, com o fundo da Câmara de Paris, difuso, a célebre foto Le Baiser à l´Hôtel de Ville, podia ser uma obra-prima, e era, mas dependente do homem que criara e do homem que olhava.
Os pormenores podiam ser importantes, como aproveitar a passagem de um transeunte com a boina, que nos confirma o lugar e o tempo – mas o essencial era servir o cidadão e alargar o seu lugar no mundo. Mesmo mal traduzida, a esplanada é uma lição.
De terrasses encheram-se os cafés parisienses na década de 1920, com luz e ar fresco, para esconjurar o passado e os miasmas recentes das trincheiras, da outra Grande Guerra, que ainda não sabia ser só a Primeira. Montparnasse, na Rive Gauche, era então a meca desses cafés, sempre com o artigo definido das lendas: Le Select, Le Dôme, La Rotonde, La Coupole…

Em obra póstuma, Ernest Hemingway, Paris É Uma Festa, conta estar, no princípio dos anos 1920, sentado no Closerie des Lilas quando viu passar uma figura sinistra, o mago Aleister Crowley. O episódio era banal, apesar de Crowley ter inspirado, alguns anos antes, um romance de Somerset Maugham (O Mágico, 1908), muito mais famoso, então, que Hemingway. E este só o aproveitou para beliscar um editor hoje desconhecido.
Nos boulevards parisienses, cruzavam-se ou se tinham cruzado pouca antes, grandes artistas, Picasso e Joyce, os revolucionários Trotsky e Chu En-lai e duquesas russas espoliadas, todos expostos ao olhar dos clientes de cafés. O nome de Aleister Crowley é tantas vezes citado, uma vez, quanto ao do criado Jean, que serviu um fine à l’eau, conhaque com água a Hemingway.
Dez anos depois, em Lisboa, o mesmo Aleister Crowley não pôde ser visto por Fernando Pessoa, pois este bebericava nas trevas do Martinho da Arcada. Só quando o poeta saiu à rua, numa esquina reparou em Crowley à janela de um elétrico, passando. Apesar de breve, o episódio permitiu uma encenação do falso suicídio de Crowley, da qual Pessoa foi cúmplice, na Boca do Inferno, em Cascais – está lá uma lápide confirmando a história.
Que pena ainda não haver, em 1930, esplanadas em Lisboa… Quanto a imaginação de Fernando Pessoa teria tirado partido se estivesse sentado onde está hoje, em bronze, no Chiado, e na cadeira ao lado, na esplanada da Brasileira, o tal mágico.

Quer dizer, cadeiras fora do café em magra fila, já as havia desde o século anterior. No Marrare do Chiado, o Marrare do Polimento, por causa das suas paredes em madeira polida, já havia algumas cadeiras no passeio para os seus ilustres clientes gozarem as vistas à sua vontade: “Numa tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, à porta de Madame Levaillant, uma caleche azul…”, escreve Eça, em Os Maias. Narrava o primeiro encontro dos pais de Carlos da Maia, quando Pedro viu chegar a Maria Monforte que o levaria ao suicídio.

Depois, no café Suisso, ao lado do Teatro Nacional Dona Maria II, na esquina que ia para os Restauradores, desde o virar do século para 1900, já havia meia dúzia de mesas. De tampo redondo e pequenas, só para dois clientes, exigência maior que a da pandemia de hoje, que permite quatro. Mas, mais uma vez, só experiências pontilhadas, incapazes de assentar um hábito quanto mais fregueses que se visse.
Lisboa, a cidade do Bompernasse
E foi aí que a Pastelaria Suíça, fiquemos por essa lenda, em 1939 cedeu aos refugiados sedentos de raios de sol rompendo pelo negrume dos céus da Europa. Aproveitando o largo passeio que tinha em frente, encheu-o de mesas e cadeiras como a clientela estrangeira pedia.
Erich Maria Remarque, alemão que não era judeu, mas a quem os nazis não perdoavam ele escrever contra as guerras e, por isso, os seus romances acabavam de ir parar às fogueiras nos claustros das universidades alemãs, escreveu sobre essa Lisboa e o seu contraponto, a Europa de então: “Se bem que estivesse havia já uma semana em Lisboa, ainda não me habituara à luminosidade extravagante da cidade. Nas terras donde eu vinha, a noite fazia das cidades negros blocos de carvão, onde o foco de uma lanterna representava mais perigo do que a peste na Idade Média. Eu vinha da Europa do século XX” (Uma Noite em Lisboa). Percebemos agora o que era a vontade funda de beber uma manhã ao Sol, sentado na ilusão de que Lisboa talvez existisse?
Na sua língua de criança que lia os céus, o aviador Antoine Saint-Exupéry, também por cá, o que, sendo ele, sempre de passagem, também nos viu: “Paraíso claro e triste”. Que patamar extraordinário, ser triste no meio do desespero.
Entretanto, nós estávamos em frente do passeio. Cite-se Alves Redol, que na falsa vida real estava ocupado a escrever sobre camponeses da Beira Baixa que desciam até à lezíria para ceifa do arroz (Gaibéus, 1939) – como se a trivialidade do trabalho, a exploração comum, a maldade normal, pudesse ofuscar a realidade do absurdo que o mundo vivia. Nos intervalos, Redol abandonava o Ribatejo e mergulhava na imaginação do Rossio. Por isso, pôde contar-nos, mais tarde, no romance (O Cavalo Espantado, 1960):
“Foi então, aí por 1939, que do outro lado da praça, e a pedido dos estrangeiros sem sol para os aquecer na vida, se puseram cadeiras no passeio (…) E as estrangeiras sentaram-se por ali, a ler e a conversar, matando o tempo de ansiedade naquele trampolim que tanto podia levá-las mais depressa ao lar abandonadas, como atirá-las para um exílio em terras americanas (…) Ficou ali uma montra de pernas e coxas para todas as gulas lisboetas. Às escâncaras, sem pudores recalcados.”

No Século Ilustrado (lembra Maria João Martins, em Viver num Ninho de Espiões, Gato do Bosque Editores, 2015), um colunista descrevia: “Rosas de fogo e volúpia…”. Um termo brejeiro correu a cidade: Bompernasse.
Nem todos saberiam localizar origem do termo, quase ninguém ainda sabia a enormidade da causa e uma geração de lisboetas machos acalentou sonhos. Sobretudo, não se percebeu a direção do acontecimento. As terrasses, as esplanadas, se quisermos, têm um sujeito principal e uns complementos secundários, estes, simples moldura. Como ensinou o fotógrafo Doisneau: o importante é quem está a olhar, o homem ou a mulher com a liberdade de olhar o mundo. Os outros, mesmo os que se beijam, enquanto nesta condição de objeto do olhar, são meros atores e nunca protagonistas, posam, não vivem.
A História estava sentada à mesa, à porta da pastelaria; os famintos da praça, amarinhando os olhos por pernas acima, meros comparsas.
Há evidentemente quem vá para as esplanadas para ser olhado. É uma escolha, mas menor e não cabe nesta crónica.
O dia de hoje, que é de partilha de um bem escasso – sabemos agora, e não sabíamos ainda há um ano – é para ser vivido em toda a plenitude. Que bom é eu ver a cidade, eu estar sentado e falar, eu calar e imaginar, eu sorrir e acenar. No sábado passado, ao lado da igreja de Benfica, a velhinha que me precedia na loja dos vinhos, talvez tivesse pensado que demorara demais perguntando, isto e aquilo, e ao sair, ao dar-me vez, sorriu com o que podia, os olhos e o gorjeio, e disse-me: “É tão bom conversar”.
É tão bom tanta coisa. São tão boas as esplanadas por onde eu hoje me vou sentar.

Brilhante! Tão brilhante como o sol que nos inunda numa esplanada…esplanar, um verbo que desde sempre faz parte do meu vocabulário.
Obrigado pelo excelente texto que emana conhecimento e cultura
Moro em São José Rio Preto, Estado de São Paulo, Brasil, e adorei o seu artigo. Um primor! Me senti em Lisboa mesmo estando tão longe.
Que maravilha de texto! Que bela que é esta “Mensagem”!
ferreira fernandes e um dos meus cronistas preferidos.Imaginacao criatividade e uma descricao cinematografica das manhas da cidade branca-lisboa naqueles dias da guerra e pos guerra neste pais destinado a dar acolhimento a refugiados ,alguns deles que ficaram para sempre ligados a este pais pequeno mas luminoso e acolhedor.Muito bonito e cativante.Uma altura excepcional para relembrar esses tempos magicos e longiquos.
Mais uma vez um texto tão luxuriante como o sol de Lisboa!
Texto maravilhoso!!! Temos bons jornalistas, não os que estão nos jornais e televisões.
Jacinto Durães
Eu gostaria muito de viver nesse pais meu sonho poder um dia viver em portugal muito lindo pais essa cultura e real
Que texto maravilhoso…
E que bom poder voltar a estar numa esplanada, ao sol, a beber a luz da Primavera que nos traz esperança…
Excelente crónica. Na explicação do termo esplanada e porque não se usou em Portugal o termo terrace, recordei-me do termo “terrazita”. O hábito que os barceloneses têm de estar nas esplanadas dos bares a apanhar um solinho na cara na Primavera e Outono.
Que maravilhosa lição de história! Obrigada!
Belo texto. Vou relê-lo amanhã na esplanada. Obrigada por realçar o que por cá ainda há de bom…uns maravilhosos momentos na esplanada.
Simplesmente brilhante. Já tenho saudades de um chocolate quente na esplanada do La Paix. Obrigado Ferreira Fernandes.
Belo texto. Obrigado
Excelente narrativa. Parabéns.
Este jornalista é um homem de muita cultura e fina prosa ainda me recordo das cronicas se assim lhe podemos chamar no saudoso “Tal e Qual” na última página “Pitonisa” que eram uma delícia.
Nesta crônica de hoje mais uma história deliciosa e muito bem retratada e documentada das esplanadas dos cafés de Lisboa que tanto amamos.
Jogo bom Zé. Esta mania de nós fecharmos e virarmos as costas à rua…
Muito bonito ter lido este artigo. Leva a nossa mente, para outros tempos. Deveriamos reflectir, aprender e varorizar o passado.
Simplesmente maravilhoso. A minha Lisboa linda e brilhante. Que texto maravilhoso a contar um pouco da nossa história. Parabéns. Adorei
Como é habitual, excelente texto!