Ouve-se o som de uma campainha. Travões a serem apertados, afinados. O toque das ferramentas metálicas. É aqui, no comando central, que as Gira, as bicicletas públicas partilhadas da Emel, motores da recente revolução na mobilidade de Lisboa, são controladas, arranjadas, e dispostas pela cidade.

Para funcionar, dependem de uma equipa que assegura a sua manutenção e a sua disponibilidade nas estações espalhadas pela cidade. Com o passar do dia, umas vão ficando mais vazias, outras mais cheias, e é necessária a intervenção técnica de carrinhas para repor o equilíbrio no sistema. No terreno, o controlo das operações faz-se à distância e tudo isto acontece a partir de um armazém na zona industrial do Cabo Ruivo.

Antes da pandemia, as bicicletas Gira realizavam “seis, sete, mil viagens por dia”. Depois veio “o medo do desconhecido”. Março de 2020 “foi terrível”, conta Bruno Vasconcelos Maia. O responsável pela gestão dos sistemas de mobilidade da Emel revela que nessa altura o número de viagens diárias desceu às “800, 600”. Mas o desconhecido deixou de o ser, embora a pandemia persista. “Temos vindo a recuperar. Durante este último confinamento tivemos sempre duas, três mil viagens por dia”.

Desde que o sistema chegou à cidade, há mais de três anos, em setembro de 2017, foram realizadas mais de 3,8 milhões de viagens. A entrada das bicicletas partilhadas tem um impacto palpável no crescimento da adoção da bicicleta enquanto meio de transporte. Em 2019, antes de a pandemia chegar, contagens de um grupo de investigadores do Instituto Superior Técnico para a Câmara Municipal de Lisboa, davam conta de que a utilização de bicicletas partilhadas representava 36% de todo o tráfego a pedal no município.

Em 2019, as bicicletas partilhadas representavam 36% do tráfego a pedal em Lisboa

Mas nem tudo correu bem. Inicialmente, o fornecimento e a manutenção do sistema foram adjudicados à Órbita, fabricante nacional de bicicletas, até que a Miralago, empresa mãe, entrou em insolvência em 2019. O contrato, que previa a entrega de 1410 bicicletas ao sistema de partilha da Emel, ficou por cumprir.

Luís Natal Marques, presidente da Emel, junto das novas bicicletas Gira, que já chegaram. Foto: Orlando Almeida

“Hoje temos na rede 500 e muitas, mas é muito flutuante”. A conta que se faz tem um resultado diferente todos os dias. Para o cálculo diário entram as bicicletas que estão disponíveis e subtraem-se as que precisam de manutenção. Atualmente, a rede está muito aquém daquilo que havia sido inicialmente planeado. Existem 1600 docas, distribuídas por 84 estações. Para estas condições, explica Bruno, deviam estar disponíveis 800 bicicletas, número ao qual deveria acrescer “200 ou 300 mais”, porque todos os dias entram na oficina de Cabo Ruivo “50 a 60 bicicletas para reparar” e é preciso que haja “stock operacional” para reposição imediata na rede.

“Pneus furados, manetes partidas”

Nas oficinas trabalham 18 mecânicos. É ali que as bicicletas ganham nova vida. Durante e após as reparações, o piso da oficina serve também de pista de teste. Sentados nos selins, com os pés nos pedais, os mecânicos pedalam por ali constantemente. Verificam, em primeira mão, o sucesso das intervenções. A campainha toca? Os travões funcionam em segurança? No caso das elétricas, o motor responde à cadência do pedalar? As mudanças estão afinadas? Em caso de sucesso no teste prático, a bicicleta está pronta a voltar às mãos, e aos pés, dos utilizadores. Neste momento são 17 mil os que têm o passe anual ativo.

Durante a pandemia, os trabalhadores dividem-se por dois turnos de 9 elementos. Nas ruas, a rede Gira não pára e, portanto, em Cabo Ruivo trabalha-se “sete dias por semana, incluindo feriados, sábados e domingos”.

É pelo piso térreo do armazém que todos os dias entra mais de meia centena de bicicletas a necessitar de manutenção. Joel Santos tem 19 anos, trabalha aqui há cerca de dois, e conta que as maleitas mais comuns das bicicletas que ali chegam todos os dias são “pneus furados, manetes e descansos partidos”. Também há casos de vandalismo com os quais a equipa tem de lidar, mas “têm vindo a baixar”, diz.

Joel Santos, mecânico das bicicletas Gira. Foto: Orlando Almeida

As reparações mais pequenas e a “manutenção preventiva” – como é o caso da verificação do ar da pressão do ar nos pneus – não vão à oficina. Fazem-se nas ruas, pelos 24 técnicos de terreno que, 24 horas por dia, reparam problemas nas estações e conduzem carrinhas com atrelados. São também eles que transportam bicicletas de A para B para devolver o equilíbrio às estações, que vão sendo preenchidas e esvaziadas em consequência das deslocações diárias das pessoas que vivem, trabalham e estudam em Lisboa.

De um lado para o outro

“De manhã existe um pico de utilização, à hora de almoço um outro pico” e ainda um outro, “ao final da tarde, um pouco mais disperso, porque as pessoas vão deixando o trabalho em momentos diferentes”, explica Luís Natal Marques, presidente da Emel.

As equipas de terreno da Gira transportam bicicletas em atrelados, procurando ajustar a oferta de bicicletas à procura entre as 84 estações espalhadas pela cidade. Foto: Orlando Almeida

É para compensar esta rotina diária de movimentações das bicicletas, partindo das zonas residenciais para as zonas em que predominam os escritórios que se torna fundamental o trabalho desenvolvido pelas equipas de terreno da Gira. “O segredo está no balanceamento de todo o sistema”, diz Bruno. “De manhã desaparecem de um lado, aparecem noutro”. A rotina virou padrão de mobilidade para as bicicletas da cidade e hoje a equipa que gere as Gira já sabe o que esperar.

Dá o exemplo das estações de Telheira, zona predominantemente residencial: “tentamos que de manhã [as estações] estejam sempre cheias, porque notamos que há um movimento para a zona do Marquês de Pombal, para as Avenidas Novas, que são [zonas] de serviços”. Ainda há falhas no equilíbrio da rede, “faltam bicicletas” e é por isso que “ainda acontece haver estações vazias”, explica. Aos fins de semana, por outro lado, “as utilizações são residuais”, revela Luís Natal Marques.

Nas oficinas, para além das cinco dezenas que todos os dias chegam para ações de manutenção, estão 330 bicicletas para reparação, cerca de 200 elétricas e 100 convencionais. “Algumas foram vandalizadas”, outras não resistiram ao “excesso de utilização”. Com as irrecuperáveis, poucas entre as mais de três centenas, “há sempre hipótese de utilização das peças”, diz Luís Natal Marques.

Nesta oficina, “uma bicicleta irrecuperável é uma bicicleta em que o quadro se parte”. Só nesse caso, extremo, é que “acabou”. “Como é um bem público, aproveitamos ao máximo”, sublinha Bruno Vasconcelos Maia.

Uma bicicleta irrecuperável é uma bicicleta em que o quadro se parte

Bruno Vasconcelos Maia, Diretor de Gestão de Sistemas de Mobilidade da Emel

Enquanto as equipas estão no terreno, há sempre alguém em frente aos ecrãs do centro de controlo. O GPS integrado em cada uma das bicicletas do sistema “pinga segundo a segundo” e permite saber a localização de cada bicicleta e consultar, em tempo real, as viagens em curso a qualquer momento. É a partir desta sala que as bicicletas com problemas reportados pelos utilizadores são bloqueadas e sinalizadas para recolha.

No centro de controlo do sistema Gira, a monitorização é realizada em tempo real. Foto: Orlando Almeida

Bicicletas novas, novas estações

A pandemia pode não estar a facilitar, mas a Gira está a expandir-se, com mais ou menos velocidade. Estão a chegar 730 novas bicicletas, com novidades. O vencedor do concurso público é um consórcio que junta a multinacional de telecomunicações Altice e a Soltráfego, empresa portuguesa de soluções de mobilidade. As bicicletas são fabricadas em Águeda.

Novidades? Os cestos frontais regressam, reforçados e toda a frota vai ser equipada com um adaptador para a colocação de uma cadeira destinada ao transporte de crianças. Este equipamento vai poder ser encomendado pelos utilizadores interessados diretamente à Emel.

As novas bicicletas Gira com novas funções. Foto: Orlando Almeida

Além disso, as bicicletas vão passar a contar com um cadeado na roda traseira, permitindo paragens rápidas durante viagens e aumentando a flexibilidade do uso das Gira, já que deverá passar a ser possível terminar viagens junto a estações que não apresentem docas livres.

Neste momento, estão 30 bicicletas novas na oficina. Algumas já estiveram nas ruas da cidade, em “circulação controlada”, para “afinar os pequenos pormenores”, assegurando que a produção em massa corre bem. Dezenas estão ainda por chegar.

As afinações às novas bicicletas incluem proteção adicional contra furtos. Com a ajuda de uma empresa de serralharia, desenvolveram um “reforço da segurança” que vai “dificultar, senão impossibilitar, o furto por arrancamento” das bicicletas das estações. Um dos parafusos cedia. O mecanismo de ancoragem ficava na estação, mas a bicicleta saía. O Estado de Emergência presente fez baixar significativamente os furtos. Na semana passada, conta Bruno, “tivemos uns dois furtos”, mas no final do ano passado chegaram a ser 35 furtos por arrancamento.

Durante a próxima semana, começam a ser instaladas 30 novas estações na Av. Almirante Reis, Olivais e Lumiar.

Durante a próxima semana, começam a ser instaladas 30 novas estações, num processo que poderá prolongar-se por quatro semanas. Vão aparecer na Avenida Almirante Reis, nos Olivais e no Lumiar, acompanhando o crescimento da rede ciclável da cidade. Não vão ser, para já, ativadas.

“É um processo mais longo”, um “calvário burocrático”, diz Bruno. Depois de instaladas as estações, há que passar por uma série de passos. “É preciso pedir a ligação do ramal, certificar o quadro elétrico da estação, pedir para pôr o contador”. E é preciso, claro, que as novas bicicletas cheguem. Devem entrar no sistema “durante o mês de abril, maio”, revela o presidente da Emel.

Em abril, deverão, contudo, ser ativadas algumas estações anteriormente instaladas e que aguardavam ativação: quatro na cidade universitária e três na frente ribeirinha.

Sem se comprometer com uma data exata, Bruno Vasconcelos Maia delimita um horizonte temporal de ambição: “gostávamos de abrir durante o verão estas 30 primeiras estações e grande parte das segundas 50”.

O atual plano de expansão da Gira contempla 80 novas estações. As 50 que integram a segunda fase vão permitir fazer a ligação da baixa da cidade a Algés, acompanhando o traçado da futura ciclovia prevista para a Avenida da Índia, mas também das Avenidas Novas a Campolide e das Amoreiras a Campo de Ourique, freguesia que irá receber parte destas novas estações. Na lista de espera das novas estações estão também Benfica, São Domingos de Benfica, Carnide, Sete Rios e a zona da Praça de Espanha.

Bicicletas Gira de aspeto diferente?

A tecnologia de ancoragem, que permite trancar as bicicletas nas estações no fim de cada viagem é propriedade da Emel. “Quando pomos as bicicletas a concurso, a exigência que temos é que o sistema tem de ser compatível” diz Luís Natal Marques, explicando que este sistema integra sempre o caderno de encargos para o fornecimento de novas bicicletas. As 730 que vão integrar a rede, já adjudicadas, são idênticas às Gira originais. Há apenas algumas diferenças: “o quadro da antiga era oval, este é quadrangular, é maior, leva uma bateria maior” e terá “um pouco mais [de] autonomia”, explica Bruno Vasconcelos Maia. E as novas bicicletas serão todas as elétricas, assim decidiu a Emel.

Apesar de as bicicletas fornecidas ao abrigo deste concurso serem idênticas às originais, não significa que assim seja daqui para a frente. A única coisa que tem de ser igual, de bicicleta para bicicleta, é o sistema de ancoragem, assegurando a compatibilidade entre bicicletas e docas. Tudo o resto pode mudar.

A grande expansão da rede Gira deverá ocorrer com a adjudicação do segundo concurso público internacional, atualmente em curso e que prevê o fornecimento de um número de bicicletas que pode oscilar entre as 1700 e as duas mil, consoante o preço unitário. Dependendo do fornecedor que vier a ser selecionado, as próximas bicicletas, que se somarão às já presentes na rede, poderão vir a ter um aspeto diferente, mantendo, contudo, o mesmo sistema de ancoragem às docas.

Perante esta possibilidade, Bruno oferece uma analogia: “Gostamos de assumir que a Gira é como se fosse a Carris das bicicletas. Da mesma forma que a Carris compra autocarros novos diferentes, de fabricantes diferentes, no final aparecem todos pintados de amarelo”.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt

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3 Comentários

  1. Grande artigo, a mostrar mais das entranhas da face “Jekyll” duma EMEL que se alimenta dos condutores “Mr Hyde’s”, para nos levar a uma Lisboa mais Humana. Palmas para o trabalho, e preces para que as promessas da EMEL se materializem … finalmente …

  2. Vivo no Porto, e, este magnífico artigo, suscita-me um pedido à CM Porto, para seguir o exemplo de Lisboa.

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