Não sei se vos contei, a minha atual vida é uma reencarnação, já antes andei por cá. Eu sei que muitos dizem o mesmo e mentem. Mas eu tenho pormenores e estou a vê-los como se fosse ontem. Quer dizer, foi em 955, há mais de mil anos.
Eu chamava-me Lucídio Fernandes, filho de um qualquer Fernando, camponês nas terras de um conde de Portucale. Valente e telhudo, eu estava já não sei porquê em Augsburgo, na Baviera, quando apareceu uma horda. Os alemães chamaram-lhes magiares, um companheiro francês disse-me serem ogres, foi isso o que ouvi, embora eu pescasse pouco das duas línguas. O facto é que os invasores levaram uma trepa monumental e regressaram, supus eu, para a terra deles. O azar é que me levaram com eles, o único estrangeiro no meio da horda.
Para onde foram só havia magiares, ou lá o que era, e eu nem sabia o nome do rio em cujas margens passámos a viver. Qualquer coisa que me soava a “Dunate”, mais não sei dizer. E como esta história nem um ano teve de duração, não tive tempo de aprender a fala deles.
Nem a minha condição soube como catalogar. Escravo, talvez. Comia o que me atiravam, limpava as fossas quando mas apontavam, gania quando, por eu ter ido mais longe do que me era permitido, eles me faziam regressar ao curral a toque de caixa. Engalinhava-os verem-me perto do rio, julgando que eu queria fugir para a outra margem. Eu, que nem sabia nadar.
Um dia, um velho cavaleiro com uma capa de arminho parou ao meu lado. Tentou alemão, francês, latim e eu julguei ter entendido ele ser conde, de nome Árpad, da tribo dos magiares ou húngaros e o rio era o Danúbio. E, que sim, a língua deles não só era arrevesada, mas a dez dias a cavalo qualquer que fosse a direção não havia ninguém, senão ele, a falar outra coisa que não fosse a língua da casa.
O conde não só era imponente como também gentil: “Queres ajuda?”, ofereceu-me. Ainda lhe disse que me dava jeito que ele dissesse à tribo que eu não sabia nadar. Mas sou telhudo. Como poderia um velho das estepes, com capa de arminho e a cavalo, traduzir um transmontano de 18 anos, raptado na Baviera e tornado escravo no outro confim do mundo? Então, recusei o apoio.
Amarrei a cara, até porque não sabia como dizer “não” em latim, clássico ou vulgar. E o velho conde lá foi à vida, abanando a cabeça. O que em húngaro também eu não sabia se era para dizer que concordava comigo ou discordava.
Três dias depois foi a fatalidade. Aliás, as fatalidades. Estavam os três filhos do meu dono a brincar na margem do Danúbio, quando Gábor, o mais velho, de 5 anos, incitou os irmãozinhos Antol e Eva a subirem para uma tábua junto ao rio. Caíram os três à água. A margem era baixa, salvei os mais pequenitos mas o outro foi levado pela corrente. Já a aldeia inteira vinha a correr. Gábor vogava de borco, morto, como se confirmou quando o trouxeram.
Ele era o único que podia testemunhar. Os dois irmãos ainda não sabiam falar. Compreendi que me consideravam culpado da fatalidade quando o pai dos miúdos me atirou ao chão. Percebi que a segunda fatalidade seria eu quando ele agarrou num chuço: “Megölted a fiamat, hogy átúszjon a túlsó partra!” (*), lançou-me ele de cabeça perdida.
Sei lá o que o desesperado me dizia. Ainda vi o velho conde a cavalo, ele que tinha alguma influência na tribo. Ah, se ele lhes dissesse que eu nem sabia nadar… Mas não se mexeu, não disse nada. Aparentemente concordava comigo: ele não podia traduzir um tipo como eu, tão diferente dele. Depois o chuço caiu.
A reencarnação seguinte que tive foi a atual (Luanda, 1948). Nasci já a conhecer o sabor das castanhas de Ribeira de Pena, o que confirmei, seis mil quilómetros e tal adiante; nasci com o terror de um chuço a caminho da testa, ainda hoje a minha morte mais temida; e nasci a julgar que cada macaco só podia entender o seu galho.
Mas quando nasci já muita água tinha passado pelo Danúbio. De tudo o que aprendi, mesmo fundo, é que os homens depois das invasões bárbaras evoluíram. Eu também evoluí nesta reencarnação. Está bem que, em 955, um campónio como eu e um velho conde húngaro (e este empurrado por mim) pudessem pensar que era impossível traduzirmo-nos uns aos outros. Em 955…
Hoje, porém, já Gutenberg inventou a tipografia e ofereceu livros às ilhas Fidji e já o negro Louis Armstrong ensinou ao branco Chet Baker o que fazer com um trompete, língua comum. O mundo já é muito mais do que um somatório de identidades.
Se quiserem traduzir esta minha crónica, não há melhor do que lerem o texto luminoso de António Araújo (colunista de Mensagem, e pai do blog Malomil). Ele diz em palavras simples e cultas, o que eu, por causa da outra vida em plena Alta Idade Média, ainda me atrapalha dizer. E leiam também João Melo, aqui na Mensagem.
São conversas a ter num jornal como Mensagem, para Lisboa, lugar de encontros.
(*) “Mataste o meu filho para nadares para a outra margem!”

Muito sussesso! Eu acredito na Mensagem, como acreditei no jornal, na visao ou no talequal!.. Um abraço.
Como sempre 10!!!!!