O músico Diogo Xocó já foi Diogo Batalha, mas isto foi antes, bem antes do publicitário brasileiro aos poucos desistir da rotina nine to five do escritório, dos briefings, brainstormings e deadlines, antes do operário, da formiga, metamorfosear-se em cigarra. Entretanto, o rigoroso inverno da fábula veio como pandemia, as ruas ficaram desertas, os concertos cessaram e o Diogo de hoje teve de recorrer ao do passado para a guitarra não emudecer de vez.
Concerto Eterno para Ruas Etéreas é o convite para um passeio por Lisboa na companhia virtual do artista, mas também é uma ideia criativa, um insight da publicidade em nome da arte. Mudou-se para a internet e criou este passeio virtual numa aplicação. Além disso também faz concertos live, online, em busca de apoio – quem quiser pode apoiá-lo na sua página.
“Quando me diziam que artista morria de fome, nunca pensei que fosse tão sério”, confessa Diogo, 34 anos, apesar dos cabelos prematuramente grisalhos. “É um sinal”, diz, em relação aos fios prateados, sem esclarecer bem sobre um sinal de quê.
As restrições impostas pela pandemia atingiram em cheio a classe artística, encerrando casas de espetáculo, restaurantes, bares, interditando os palcos, proibindo ainda aglomerações na rua, a última fronteira do acorde. E assim, o orçamento do músico passou de em média € 50 por um dia de trabalho para quase zero.
“Quando me diziam que artista morria de fome, nunca pensei que fosse tão sério.”
Diogo Xocó aponta para o relvado do Jardim da Cerca da Graça, um dos pontos onde costumava atuar. “Antes, pegava o instrumento e tocava. Parava um e outro, era possível fazer um concerto de bolso, 15 minutinhos, tempo para praticar e passar o chapéu”, lembra-se. “Agora, vai precisar de lugar marcado e álcool em gel. Será impossível”, explica.

Sem um palco nem um metro-quadrado de passeio para tocar – e faturar – a versão Xocó de Diogo recorreu à experiência publicitária do seu lado Batalha e deste duo saiu a ideia de concertos para as “ruas etéreas”, um tour musical e virtual através dos sítios onde o músico costumava se apresentar, do Miradouro da Senhora do Monte, na Graça, a Casa dos Bicos, na Baixa.
Ao todo, o percurso desta aplicação conta com nove paragens, cada umas delas embalada por uma das canções do repertório do brasileiro. “A ideia foi partir com uma imagem ampla e inspiradora de Lisboa e terminar diante da oliveira onde estão depositadas as cinzas de José Saramago, uma forma de se refletir sobre os possíveis legados que um artista pode deixar à cidade que o acolheu”, explica Diogo.

O concerto itinerante segue um mapa, com estimativas de extensão e duração do percurso. “Pode-se cumprir os cerca de quatro quilómetros em mais ou menos duas horas, ou ainda fazê-lo lentamente, um ponto por dia, em nove dias”, sugere. “Pode servir também como uma sugestão de passeio higiénico-musical”, reforça.
As músicas de cada um dos pontos são apresentadas seguindo o formato de uma emissão radiofônica, a Rádio Surreal, comandada pelo disco-jóquei… Diogo Xocó. “É surreal pois chego a entrevistar a mim mesmo”, conta, divertindo-se. Para além da selfie-entrevista, há ainda curiosidades sobre as escalas dos concertos, como a vez em que o segurança do Jardim do Cerco da Graça, o mesmo que nos ronda durante a entrevista, proibiu-o de tocar e expulsou-o do sítio.
“Dinheiro é aquela coisa, né, ou você convive com ele ou com a falta dele.”
Como uma boa ideia publicitária, o Concerto Eterno para Ruas Etéreas tem seu lado comercial. O projeto conta com uma iniciativa de crowdfunding na plataforma Go Fund Me, uma forma de passar virtualmente o chapéu para ajudá-lo a superar a escassez de trabalho. Em troca, além do igualmente eterno agradecimento do artista, recebe-se a versão física do mapa e postais ilustrados pelos nove pontos do percurso. As informações estão todas no site www.diogoxo.co.
Com a ajuda do lado publicitário
O plano de desconfinamento do governo não faz menção específica aos músicos que atuam nas ruas, mas dá a entender que os artistas poderão voltar aos “palcos públicos” a partir de 19 de abril, quando serão permitidos os eventos externos com diminuição de lotação. Até lá, Diogo segue defendendo-se como pode da paragem forçada de sua atividade.

“Dinheiro é aquela coisa, né, ou você convive com ele ou com a falta dele”, resume, tentando manter o espírito elevado. O músico conta que teve negada a inscrição no Banco Alimentar – a justificativa, segundo informaram, por não “votar em Lisboa” – e tem se alimentado com ajuda do cabaz que vem sendo distribuído pela União Audiovisual.
Há mais de um ano sem tocar nas ruas de Lisboa, vez ou outra Diogo recebe uma proposta para um “frila”, um trabalho temporário como free lancer em publicidade, um dinheiro que “pinga aqui e acolá” e ajuda no orçamento doméstico. Uma concessão que o lado cigarra faz à sua versão formiga, enquanto aguarda o inverno da pandemia passar.
Quem quiser ajudar Diogo ou contratá-lo para tocar, entre em contacto connosco.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Excelente !!!👏👏👏