Calçada portuguesa no Rossio, em Lisboa
Calçada portuguesa no Rossio. Foto: CML

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Sabe o leitor, quando embrulhado nos seus pensamentos, de repente, surge-lhe um que faz tanto sentido que quase se sente como o Newton quando a maçã lhe caiu à frente? Foi assim que me senti enquanto subia concentrada as escadinhas de calçada bem no centro de Lisboa e descobri por que razão nesta cidade se anda tão pouco a pé. A culpa é, exatamente, da calçada.  

Do alto dos meus saltos, concentrada na distribuição do peso sobre eles, aguardava pelo momento em que uma das agulhas ficaria presa entre duas pedras e passaria de toda uma sensação de elegância, até mesmo de um certo poder que os mais altos devem sentir quando se dirigem aos mais baixos, para a cómica mas ridícula imagem de continuar a andar apenas com um sapato, tão bem vestida e a coxear, deixando para trás o outro par.

De Cinderella moderna que se calça, ou descalça, a si própria. 

Do topo das escadinhas olhei para trás. Não era sensação de triunfo o que sentia, mas sim um certo pavor ao pensar: “Como é que vou descer isto quando regressar a casa à noite?” Olhei para a frente, para esquerda e para a direita e ela estendia-se por todos os caminhos, a tal calçada portuguesa, com certeza…faz parte do nosso cartão de visita.

Mas agora via-a como um manto lustroso e luminoso, esburacado, que tinha sido recortado no espaço das casas e prédios e colocado por toda a cidade. A cor do manto, não sendo única, gravitava em redor do branco pisado.

Nas principais ruas e praças, o manto decalcava arabescos e geometrias azuladas em que a maioria dos transeuntes apressados não repara, ou, se repara, não vem com tempo para contemplar.

Andar num manto assim não é fácil, requer destreza e confiança, mas também calçado especial. À medida que avançamos na conquista da sabedoria, preterimos a confiança. No subconsciente mora esse escorrega gigante que não nos quer deixar sair para a rua. Soltamo-nos quando vamos de ténis ao supermercado do bairro, ginásio ou trabalho…Ou de carro.

Mas e quem não tem carro e quem não usa ténis? E quem nunca pensou nisso? E por que se insiste num modelo de passeios tão traiçoeiro que todos os dias leva pessoas para o hospital ou promove o isolamento de quem já sente os seus troncos secar ou que não os tem? 

A mobilidade está na moda e falar sobre ela até já cansa. Procurar o que é novo é mais excitante e se envolver tecnologia ainda melhor. Também gosto, também me excita. Mas também me parece que um grande passo para promover a mobilidade será desprendermo-nos dos argumentos que se baseiam na preservação de toda e qualquer herança histórica só porque sim e é bonito.

Sim, é bonita a nossa calçada, exportámo-la para o novo mundo, é verdade e foi bonito. Continua e continuará sempre bonita quando a virmos desenhada em fotografias e postais das principais praças e avenidas.

Mas à medida que aproximamos a lente, os desenhos desaparecem e dão lugar a cubos pegajosos, irregulares e aqui e ali salpicados de pastilhas e outras matérias tornando-os individualmente objetos abjetos que preferimos não ver. 

Lisboa não nasceu com calçada, e quando surgiu em meados de XIX, ela trouxe para além da beleza, com certeza, maior conforto à cidade. Mas a vida mudou. Vieram os carros. E já todos sabemos o que aconteceu – poluição, efeito estufa, destruição de habitats, e por aí fora. Mas acredito que esta mania da calçada também concorreu para piorar a nossa saúde tornando-nos mais sedentários, comodistas e parasitas do automóvel. 

Trocando para uma lente que alcança mais longe, temos outras cidades europeias onde a mobilidade é uma efetiva forma de estar, de viver, de conviver. Quem vive em Londres não tem carro. Desloca-se a pé quer para os seus destinos quer como meio complementar na utilização dos transportes públicos. Também é verdade que Londres não tem sete colinas… mas de que pouco servem se não pudermos galgá-las com confiança.

Colinas e calçada não combina. É grau de dificuldade 10. Londres tem passeios amigos do transeunte, turista e habitante. Assim, como Paris, Madrid e Berlim.  

Pensadores da mobilidade, decisores em geral, coloquemo-nos no futuro e olhemos para trás. Tudo faz parte do progresso. Deixemos o manto de branco pisado viver nas principais avenidas e praças da cidade, bem mantido e luminoso. Destapemos o resto do manto e cubramos os nossos passeios com um pavimento mais amigo de quem se quer deslocar utilitariamente, quer seja para ir fazer compras, trabalhar, visitar o seu deus ou simplesmente ir até ao jardim do bairro dar de comida aos pombos ou o leite aos gatos vadios. 

As cidades ficam mais humanas com pessoas de todas as idades e condições a andar nas suas ruas. As cidades também são bonitas pelas pessoas que andam nelas. As cidades são as pessoas.  

Deixe-se a gravidade de Newton para as maçãs.

*Maria do Carmo Ferreira é gestora financeira, em Lisboa. É uma das leitoras que nos enviou textos para publicar, o que muito agradecemos.

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12 Comentários

  1. Sim é muito urgente fazer deste artigo um verdadeiro “MANIFESTO “ para a breve implementação de fazer de Lisboa uma cidade internacional no seu verdadeiro sentido e criar “MOBILIDADE” urbana o verdadeiro leitmotiv promocional na poesia do sol e bom clima de Lisboa !!! E podemos continuar a exploração estética da “calçada “ mas adaptação modo vivendo-se do século 21 …. até andar de bicicleta e um verdadeiro sofrimento devido a muitas das vias para bicicletas serem pavimentados com “calçada” surreal e patético

  2. A repartição modal do modo pedonal, em Lisboa, não é assim tão baixa, e andará entre os 25 e 30%. É verdade que poderia ser mais, como em Londres, mas também poderíamos ter uma polícia menos complacente com o estacionamento ilegal, como em Londres.
    A autora aponta a má qualidade dos passeios como um motivo para as pessoas andarem de carro. Não sei como ela chegou a essa conclusão.
    Eu aponto o excesso de utilização do automóvel como motivo para as pessoas andarem menos a pé. Por todo o lado se permite os 5 minutinhos de piscas acesos, que aumenta em muito a conveniência das deslocações em automóvel (em prejuízo de muitos outros), e assim encoraja ainda mais deslocações com esse modo.
    Por outro lado, um dos factores de degradação da calçada portuguesa é, precisamente, o estacionamento ilegal sobre os passeios, que não estão preparados para suportar a pressão de veículos de mais de 1 tonelada.
    Finalmente, é verdade que as pessoas de mobilidade reduzida têm enorme dificuldade em descer uma rua de calçada, sobretudo com tempo húmido. Mas é importante não esquecer o receio que têm de atravessar avenidas sobredimensionadas, com tempos de semáforo que facorecem a circulação automóvel, em detrimento da pedonal, e aumentam muito as distâncias a percorrer (pense-se no Saldanha antes de 2017).
    Ou seja, de pouco valerá substituir-se a calçada por piso mais seguro e confortável se este continuar a ter carros nele estacionados, ou os carros poderem continuar a circular a velocidades obscenas em zonas urbanas, onde os caminhantes mais lentos têm receio de atravessar a rua.

  3. Sem duvida que o estacionamento selvagem também dificulta mas convenhamos que nesse capítulo a quantidade de pilaretes que têm sido colocados em ruas e avenidas tem reduzido este fenómeno concentrando-o mais no estacionamento em segunda fila no alcatrão e não nos passeios. E o inverso também será verdade: não houvesse qualquer estacionamento selvagem e a calçada iria continuar a ser um obstáculo à mobilidade…

  4. Eu sou uma das pessoas que adoro visualmente a calçada portuguesa mas que tenho sido vítima dela. Nos meus quase 72 anos e portadora de 70% de incapacidade física vejo-me por vezes prisioneira em casa por temer cair mais uma vez ao andar a pé na minha rua e envolventes. Para mim a solução passaria por criar simultaneamente a calçada à portuguesa com uma faixa em granito para uso das cadeiras de rodas, e das pessoas com mobilidade reduzida assim como dos carrinhos de bebés, como já existe em muitas outras cidades de Portugal, como em Aveiro, Castelo Branco, etc. Por favor façam isso, pensem em nós !…
    Helena Peres

  5. A calçada portuguesa é, sem duvida alguma, lindíssima. Mas, como a autora tão bem referiu, uma cidade que se quer moderna não deve estar apenas preocupada com as emissões de gases poluentes, redução do trânsito automóvel e outros chavões da moda que nada fazem sentido se não devolvermos realmente a cidade aos que nela vivem e trabalham.
    A calçada portuguesa nem segura é para quem apenas usa ténis e é “atleta” como é o meu caso.
    Falta coragem política para assumir o problema que está à vista de todos e que por todos, os que circulam como peões nas colinas da cidade, é sentida diariamente.
    Já chega de sermos reféns do passado!

  6. É uma questão de democracia, todos podermos andar na rua como queremos. A questão não é só sobre o tipo de calçado, a crónica não aborda mas há idosos que não saiem de casa com medo de caírem, há pessoas de cadeira de rodas que sofrem horrores na calçada portuguesa, as pessoas com canadianas, bengalas, andarilhos, …
    A CML tem o Plano de Acessibilidade Pedonal para resolver o problema da calçada portuguesa, é pena a sua implementação estar tão atrasada.

  7. Nós sabemos. E gostavamos muito de ter um texto teu, na primeira pessoa, sobre este assunto!

  8. Ahhh.
    Tão bom ouvir falar sobre o tema que leva tantos dos nossos idoso a andar na estrada em vez de preferirem a ´segurança’ dos nossos passeios museológicos.
    Obrigada ‘Mensagem’

  9. Não acho que substituir a calçada por outro tipo de pavimento resolva o problema, porque o problema está, na minha opinião, na quase total ausência de manutenção e não no tipo de revestimento.
    Em locais onde se optou por outro revestimento dos passeios, como é o caso da Avenida Lusíada, em Lisboa, por exemplo, as lajes de pedra são levantadas pelas raízes das árvores, partem-se em mil bocados, e em alguns casos apenas têm alguns pontos de contacto com o chão, o que faz com que balancem imenso, desequilibrando quem em cima delas anda. E se, quando novas, não são de grande beleza, quando se partem, e abrem falhas, e deixam passar raízes pelo meio, ficam verdadeiramente horríveis.
    Se os passeios fossem compactados a sério, antes e depois da colocação da calçada e, fundamentalmente, se existissem equipas de manutenção a trabalhar eficaz e rapidamente a tapar buracos, atenuar desníveis e substituir as pedras, a maior parte do incómodo da calçada portuguesa desapareceria como que por magia.
    É certo que continuaria a não ser confortável para quem anda de saltos altos. Mas nas grandes cidades que são dadas como exemplos a seguir, são imensas as mulheres que andam de ténis ou sapatos rasos, e levam os sapatos de salto alto num saco, para calçar à chegada ao trabalho. Por cá, é só fazer o mesmo!

  10. Vê-se de imediato que não vai nos 80 anos , por isso não tem a mínima noção do risco de não caminhar num piso estável. Todas as irregularidades podem conduzir a um desequilíbrio, a um tropeçar com provável queda e à necessidade de optar pelo asfalto quando este não representar um risco maior.

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