Estava Teodorico Raposo em viagem de penitência, infligida por tia rica e devota, quando em pleno Médio Oriente, ouviu enaltecer certa praça de Alexandria em detrimento do Rossio de Lisboa. O espírito toldou-se-lhe, e, com brio pátrio, afirmou: “Maior e mais abrutada talvez seja. Mas não é esta lindeza do nosso Rossio, o ladrilhinho, as árvores, a estátua, o teatro… Enfim, para meu gosto, e para um regalinho de verão prefiro o Rossio… E lá o disse aos turcos!”
A cena passa-se em A Relíquia e não sendo Teodorico um alter-ego de Eça de Queirós, a verdade é que tal afirmação revela, de algum modo, a admiração do escritor, que não tinha “boa boca” para os feitos nacionais, pela renovação oitocentista da Praça Dom Pedro IV, vulgo Rossio. O ladrilhinho, tão estimado por Teodorico, não era senão a calçada portuguesa que, nesse lugar, teve a sua certidão de nascimento e só a partir daí, se estenderia a outros passeios nobres da cidade.
Com tão longa História e tradição, que fez do ladrilhinho queirosiano uma marca de identidade cultural de Lisboa e do país reconhecida no mundo, não admira que a Câmara Municipal de Lisboa a queira ver reconhecida, pelo valor patrimonial, primeiro no Inventário Nacional do Património Cultural e mais tarde, internacionalmente, pela UNESCO. Sexta-feira, dia 19 de março, foi formalizada a proposta de Inscrição da “Arte e Saber-Fazer da Calçada Portuguesa” no Inventário Nacional Património Cultural, numa cerimónia nos Paços do Conselho.
Menos calceteiros que pedreiros
“Uma candidatura muito voltada para o futuro”, como explica António Prôa, deputado da Assembleia Municipal, antigo vereador da CML do PSD durante vários mandatos, e um dos principais dinamizadores da iniciativa desde que, no final de 2017 foi criada a Associação da Calçada Portuguesa. Voltada para o futuro, porquê? “Porque da pesquisa ao longo de 20 meses, concluímos que o nosso maior problema é o risco de desaparecimento da profissão do calceteiro e do seu saber-fazer. É, por isso, que esta candidatura tem o título de A Arte de Saber-fazer da Calçada Portuguesa.”

Um problema que não compromete apenas o futuro a médio prazo, mas já está a desqualificar os trabalhos de manutenção feitos um pouco por toda a cidade. Às vezes, acrescentamos nós, com risco para a segurança do transeunte. “É verdade que CML lida com uma manifesta escassez de calceteiros. Mas é igualmente grave que não haja qualquer norma que obrigue as empresas contratadas a terem profissionais aptos a intervir adequadamente na calçada. O que temos são pedreiros não especializados a fazerem o trabalho de calceteiros. O resultado é frequentemente catastrófico”.
Mas não tem de ser assim. António Prôa desmitifica a ideia de que a calçada portuguesa tem de ser insegura e desconfortável. “Desafio as senhoras a andarem de saltos altos na calçada da Praça do Império, construída em 1940. Não só a qualidade do trabalho original é muito boa, como a manutenção tem sido a mais adequada.” É por essa calçada que passa alguma da polémica dos brazões.
O que fazer então para valorizar o saber-fazer dos mestres calceteiros de Lisboa, que em 1927 eram 400 e hoje, numa cidade muito maior, são 18? “Acontece frequentemente”, diz ainda António Prôa, “que a CML abra concurso para a contratação destes profissionais e estes não tardem a pedir transferência para outros departamentos dentro da estrutura municipal. O concurso funciona apenas como porta de entrada.” Ante esta realidade, há que apostar na requalificação de uma profissão, que “é dura, mal remunerada e não é reconhecida socialmente.”
Do Rossio ao Brasil
As vantagens da calçada portuguesa são, no entanto, muitas – estéticas e ambientais, de tal maneira que a podemos encontrar em vários pontos do Brasil (do Rio de Janeiro, em que o padrão mar largo do Rossio é reproduzido no calçadão, a Manaus, no coração da selva amazónica), em Macau, Timor-Leste, mas também, como nota António Prôa, em lugares onde a presença portuguesa não foi tão direta, como em algumas cidades da China.
Além das potencialidades artísticas, que são muitas como se demonstra nas ruas de Lisboa, há que sublinhar as vantagens ambientais, já que, para além de recorrer a materiais naturais (pedra calcária branca e basalto fundamentalmente), este tipo de pavimento, se colocado adequadamente, facilita a permeabilidade dos solos. “Tudo isto são trunfos para a nossa candidatura, que procura dar um futuro a uma tradição de boa memória”, conclui António Prôa.

Recorde-se que foi com a ânsia de expansão e renovação da capital promovida pelo fontismo (regime liderado por Fontes Pereira de Melo entre 1868 e 1889), que se iniciou o esforço de pavimentação em calçada portuguesa, de algumas das principais artérias. Do Rossio passar-se-ia ao Largo de São Paulo, Largo do Chiado, Rua Garrett e, finalmente, à Avenida da Liberdade que, ao ser rasgada a partir de 1879, já não conheceria outro tipo de pavimento.
O que o leitor talvez não saiba é que os primeiros calceteiros não eram operários especializados ao serviço da Câmara Municipal, mas trabalhadores recrutados à força na Penitenciária de Lisboa, a quem o povo, num arremedo de crueldade, chamava “grilhetas”. Assim foi até 1927, quando o município criou o seu próprio quadro de calceteiros-artistas.
À sua criatividade na interpretação dos moldes fornecidos pelos serviços técnicos da CML se devem alguns dos mais representativos desenhos que os lisboetas pisam há décadas. Só mais tarde, a partir da segunda metade do século XX, é que começaram a surgir os desenhos assinados por artistas como João Abel Manta, Eduardo Néry, ou mais recentemente, Vhils.

Maria João Martins
Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.
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