A tempestade Filomena varria as ruas de Lisboa com um vento gélido, baixando os termómetros e esvaziando as ruas, dando à primeira quarta-feira de janeiro ares de tarde de domingo. Em frente à Assembleia da República, um pequeno grupo desafiava a intempérie climática e o bom senso, não em protesto, com cartazes em punho e gritos de ordem, mas em completo silêncio, cadernos no colo e canetas à mão, resistindo ao frio, aquecendo a vida com traços e cores. Com arte.

Desde outubro era assim: sempre às quartas, os Urban Sketchers Portugal postavam-se diante de um dos lugares icónicos de Lisboa, fizesse sol, chovesse ou, como no caso, um frio inclemente, não para meramente retratar o cartão postal num desenho, e sim, desconstruí-lo e reconstruí-lo na folha de papel, agora com um novo olhar.

“A proposta aqui é justamente provar que, diante de uma Lisboa cristalizada nos cartões postais, é possível ir além da simples semelhança.”

Mário Linhares, designer e professor de desenho.

O desafio de traçar esta “Lisboa Anti-Postal” foi proposto por um dos fundadores do coletivo, o designer Mário Linhares, e logo aceite por um pequeno grupo, eclético, criativo e fiel. “Tecnicamente, o Lisboa Anti-Postal é um curso, mas que nasceu da necessidade minha e, como se vê, de outros também, de se ultrapassar o patamar do desenho que represente ipsis verbis a Lisboa à nossa frente”, explica.

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Mário e os Urban Sketchers desafiam o frio diante da Assembleia da República: intempéries do tempo como assinatura dos desenhos.

“Quando já se consegue desenhar com o máximo de rigor, com as proporções, o contraste e a volumetria correta, pode se pensar que não há mais nada a ser feito. A proposta aqui é justamente provar que, diante de uma Lisboa cristalizada nos cartões postais, é possível ir além da simples semelhança”, complementa Mário Linhares.

Fernando Pessoa como guia

Na prática, cada sessão é composta por um desafio. No caso da Assembleia da República, Mário propôs que se representasse os campos políticos tradicionais e se desenhasse o prédio por perspetivas de esquerda, centro e direita (felizmente, ignorando a extrema-direita). O detalhe é que os três pontos de vista, assim como se espera de um parlamento, devem coabitar harmonicamente no mesmo desenho.

Além do exercício estético, Mário propõe uma reflexão “literária” do cartão postal, na companhia de um dos mais famosos lisboetas: Fernando Pessoa. “Se a proposta é desenhar uma Lisboa desassossegada, nada mais natural de, como fazem todos os portugueses, se valer da ajuda de Pessoa”, explica. Cada participante do curso tem lido O Livro do Desassossego e, antes da sessão iniciar, discutem como adaptar a visão pessoana ao traço.

Após a leitura de duas páginas do livro em conjunto, nas duas horas seguintes os alunos armaram as cadeiras retráteis em diferentes posições diante da Assembleia da República, deitando o caderno sobre os joelhos, tentando manter o traço firme, apesar das mãos trémulas pelo frio. “A intempérie é importante: se estiver frio, o desenho vai mostrar, pois a mão treme e talvez não o termine. Se chover, as pingas diluem a tinta, e sob o Sol intenso, a luz será diferente. É assinatura de que o desenho foi feito em Lisboa, não em outro lugar”, ensina Mário.

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A Lisboa de Fernando Pessoa nas linhas do Livro do Desassossego serve como guia para os encontros.

A preocupação de um registo de tempo e espaço, quase jornalístico, é uma das marcas do Urban Sketchers, um movimento global nascido em 2007 pelas mãos do jornalista espanhol Gabriel Campanario, emigrado para os Estados Unidos. “Certa vez, ele sugeriu ao editor do Seattle Times para que seus artigos fossem ilustrados por ele. O resultado é que eram sempre os mais lidos e partilhados”, conta.

Em seguida, Gabriel Campanario começou a provocar alguns amigos jornalistas pelo mundo a fazer o mesmo, ilustrar as matérias com os próprios desenhos. A iniciativa virou um blog, depois um movimento global, os Urban Sketchers, que chegou em Portugal em 2009, tendo Mário Linhares como um dos fundadores.

Atualmente, os sketchers portugueses somam cerca de 500 integrantes, que se reúnem por iniciativa própria para registarem no papel um evento ou ainda atenderem a um convite, como o da Câmara de Lisboa para que desenhassem os espaços verdes da cidade, em celebração ao título de Capital Verde da Europa. Outra oportunidade de encontro são os workshops, como o “Lisboa Anti-Postal”.

Aprimorar a técnica e fazer amigos

A arquiteta Conceição Corte Real há três anos participa das atividades dos sketchers. Lisboeta, apesar de conhecer a cidade diz-se surpreendida pela nova perspetiva de velhos conhecidos. “Para mim, também tem sido a oportunidade de retomar o prazer pelo desenho”, diz, aquecendo as mãos com uma chávena de café, na reunião dos integrantes do curso numa pastelaria, após a enregelada.

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A arquiteta Conceição Corte Real, apesar de conhecer a cidade, diz-se surpreendida ao rever os velhos monumentos lisboetas.

O calor do convívio é um dos pontos altos para a norte-americana Shelly Ginenthal. Nascida em São Francisco, Shelly não veio da formação artística clássica, pelo contrário, tem aproveitado a reforma na área de recursos humanos para conhecer melhor a cidade onde vive “há vários anos” e fazer novos amigos. “Os encontros têm me servido para aprender e aprimorar a técnica do desenho”, diz.

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Reformada a viver em Lisboa, a norte-americana Shelly Ginenthal aproveita os encontros semanais para fazer novos amigos.

A viagem começou em Belém e já seguiu pela Ajuda, Alcântara, Campo de Ourique e encontrava-se em Santos, diante da Assembleia da República. Os encontros, às quartas-feiras à tarde ou à noite, devem seguir até junho, pela Bica, Bairro Alto, Baixa, Alfama, Graça, São Vicente, além de algumas esculturas e o maior cartão postal de Lisboa, o Tejo. Cada paragem dura três semanas e é possível pegar o “elétrico” da Lisboa Anti-Postal em cada uma delas, ao valor de € 60 por módulo

Pelos telhados de Lisboa

O confinamento não cancelou os encontros semanais dos sketchers e as reuniões, como todas, deixaram de ser presenciais e migraram para o Zoom. “Aproveitamos para tirar partido de algumas valias de se estar online”, conta Mário.

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Vista aérea do Mercado da Ribeira: desenhos com ajuda do Google Earth durante o confinamento.

Desde janeiro, em vez de se sentarem diante do monumento, os participantes do Lisboa Anti-Postal passeiam por eles através de ferramentas como o Google Street View e o Google Earth. Foi assim nas sessões de desenhos na Bica, no Mercado da Ribeira e no Cais do Sodré. “Com o Google Earth, só para citar um exemplo, conseguimos ter uma visão dos telhados de Lisboa, o que não conseguíamos presencialmente”, explica.

Assim que for permitido, porém, Mário Linhares garante que os Urban Sketchers voltam ao habitat natural para registrar Lisboa com as mãos e a imaginação.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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1 Comentário

  1. Valeú Alvaro, muito bacana e inspiradora sua matéria sobre os Sketchers.
    Apreciando outras Lisboas desde meu canto doutro lado do Atlantico em São João da Barra RJ, Brasil.
    Abraço e sucesso nesta nova empreitada editorial.
    M

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