Há 25 anos escrevi pequenos textos na revista Visão sobre a nossa bela data, o 25 de Abril de 1974. Em 1999, esse dia ainda era ontem, dei-o como sabido, e recuei até à pré-História dele, suspeitando eu que muitos leitores já tivessem esquecido o que levou à urgência e necessidade da madrugada – sim, cito Sophia, pois os bons poetas podem ser ainda melhores historiadores – de “onde emergimos da noite e do silêncio.”

Pré-História é uma forma de dizer, não precisei de recuar às sevícias encomendadas pelo Marquês de Pombal (um dos mais iluminados governantes que já tivemos, note-se) e cometidas contra os Távoras, agarrados à roda, com os ossos quebrados à pancada e queimados vivos. Limitei-me à nossa História recentíssima, lembrei pequenos momentos da tal noite que imediatamente precedeu o 25 de Abril.

Os meus “lembro-me que…”, flashes de memória, bebiam no curto período que ia de 1 de janeiro de 1974 ao grande dia, nem cinco meses. Tempos ainda da outra senhora, mas já anunciadores e explicadores da mudança.

Os textos eram curtos, sobre uma simples (ou aparentemente simples) ocorrência, numerados e cada um precedido da mesma ladainha – “Lembro-me que…” – a que eu me agarrava como um peregrino ao bordão. Pouco depois deles terem aparecido na revista, publiquei um livro, naturalmente titulado Lembro-me Que. São 327 textinhos, sobre coisa pouca, tal como as ribeiras do Jamor, Algés e Alcântara que só tarde afluem no Tejo, mas com o direito de se saber que também eles contribuíram – por livre vontade ou apesar deles – para o glorioso acontecimento. Modestos factos recolhidos, repito, já na primeira metade do ano de 1974, ainda antes do grande dia, mas explicando a inevitabilidade dele.  

Textos, como este: “LEMBRO-ME que no Porto, se julgava o padre Mário de Oliveira, mais conhecido como padre Mário da Lixa. Na igreja da Lixa, um paroquiano levou um gravador escondido para a missa e guardou a homilia: o padre falou contra a guerra colonial. O tribunal aceitou ouvir a gravação.”

E este: “LEMBRO-ME que se anunciavam novos tempos. No ano anterior, a 29 de abril de 1973, cinco cidadãos bracarenses encontraram-se na casa de um deles. A PSP bateu à porta e multou-os por não terem avisado do encontro. Eles recusaram-se a pagar, mas o 1º Juízo da Comarca de Braga confirmou a multa. Enfim, o Tribunal da Relação do Porto, em janeiro de 1974, anulou a punição”.

“LEMBRO-ME que a Junta de Freguesia do Beato mandou afixar um edital para o recenseamento eleitoral. Nos votantes havia uns mais iguais que outras. Para as juntas, podiam votar os «chefes de família» (quer dizer, os homens casados) e os solteiros. Para as mulheres fiava mais fino: as casadas já tinham os maridos a votar por elas; quanto às sem marido (viúvas, divorciadas ou solteiras) só podiam votar se apresentassem um certificado de «idoneidade», que não se pedia aos homens.”

E: “LEMBRO-ME dos títulos estranhos nos jornais: jusantes sem montantes. Género: O Instituto Superior Técnico reabriu. Ora, nunca se dizia na notícia que nos dias anteriores tinha havido greve.” 

“LEMBRO-ME que o Centro de Estudos e Documentação organizou um colóquio, dirigido pelo professor Joel Serrão e subordinado ao lema: A Sociedade no Ano 2000. O colóquio fez-se a meados de janeiro, com as previstas sumidades e a ninguém ocorreu que havia tema mais pertinente: a Sociedade Daqui a Seis Meses.”

“LEMBRO-ME que o dirigente comunista Dias Lourenço julgava que ia sair da prisão ao fim da pena de 12 anos. À porta foi-lhe dito que ainda faltavam cinco anos para cumprir, por ter fugido de Caxias, em 1961.”

“LEMBRO-ME que no Porto se comemorou o 31 de Janeiro (revolta militar antimonárquica, em 1891), com ida ao cemitério do Prado do Repouso e comício, que foi no Coliseu portuense. Falaram os habituais do reviralho, a engenheira Virgínia de Moura, reconhecida comunista, António Macedo, socialista… A novidade foi um desconhecido, o estudante Joaquim Pina Moura. Ia o discurso dele a meio quando se ergueu da plateia o representante do Governo Civil (cuja presença era obrigatória numa comemoração pública), que lançou para o palco: «O senhor cale-se!» O estudante meteu o discurso no bolso.”

“LEMBRO-ME que o padrão da conversa padreca dos poderosos já nesse tempo tinha adeptos. O ministro da Economia, Cotta Dias, foi à televisão e disse: ‘Continuamos a esperar que permanecerão moderados os sacrifícios pedidos e que, se forem compreendidos e serenamente aceites, nada de essencial será substancialmente afetado’. Ele falava da crise do petróleo.”

“LEMBRO-ME que a Oposição também não era exemplo do falar claro. Numa página do jornal República – jornal que criticava o regime (quando e quanto o deixavam criticar) – sob uma pintura retratando uma bicicleta e dez caras estilizadas, escreveu-se esta legenda: Duas perguntas se podem formular quando deparamos com o quadro a óleo que o pintor Kira titulou Joaquinsagostinhos; elas são: quem deve a arte servir e como deve servir? Deve servir o povo, através da crítica e estudo do problema da agressão. Este quadro é uma posição face à alienação, até uma certa agressão. E a abstruza legenda acabava citando o seguinte: A arte pertence ao povo. Deve cravar as suas mais profundas raízes nas vastas massas trabalhadoras, frases que eram ali atribuídas a um tal ‘Vladimir I.’. Este era, claro, Vladimir Ilitch Lenine e ia assim assinado para a censura deixar passar. Já então o linguajar português – que aplicado no jornalismo é o avesso da pergunta sagrada (do que falamos quando estamos a falar?) – conseguia mais vezes driblar o leitor do que os censores.”

“LEMBRO-ME que José Lamego conheceu, enfim, a acusação por ter estado, em 12 de outubro de 1972, ao lado do seu colega José Ribeiro dos Santos, quando este foi morto pela PIDE no ISCEF (hoje, ISEG, faculdade de Economia, em Lisboa). Na altura, Lamego tinha sido baleado. Segundo o Ministério Público, as coisas passaram-se como se segue: O ‘agente da autoridade António Joaquim Gomes da Rocha’ (da Pide, polícia política) apareceu na reunião de estudantes e respondeu a alguém que o interpelara: ‘Não tenho nada a ver com isso.’ Metendo-se na conversa, Lamego disse-lhe: ‘Pois, quando torturam os estudantes, também não tem nada com isso…’ Esta ironia, foi entendida pelo Ministério Público, assim: ‘Tal frase é manifestamente injuriosa por abranger todos quantos trabalham naquela Corporação Policial.’ Balanço, um estudante morto e outro ferido pela polícia, e o que vai a julgamento é a impertinência cometida contra um polícia infiltrado.”

“LEMBRO-ME que nem todos os governantes, já no fim quase notório do regime, eram previdentes. Acabadinho de entrar para o Governo, o secretário de Estado do Comércio e Transportes, Miguel Pupo Correia, não teve dúvidas em vangloriar-se no currículo que foi professor na Escola de Agentes da Pide-DGS.

“LEMBRO-ME que um tipo de 20 anos, José Jorge Rocha, há dois anos a trabalhar no laboratório farmacêutico Medicamenta, em Lisboa, foi para rua por andar de cabelos compridos (cobriam as orelhas). Já tinha havido aviso de um chefe: ‘Tem de cortar o cabelo’. Mas ele, nada. Foi chamado ao diretor. Ordem: ‘Ou corta ou é despedido.’ Há dez anos que os Beatles eram sucesso em Portugal. ‘Então, estou despedido’, disse o José Jorge, que só teve tempo de ir buscar os pertences à sua secretária. (Muitos anos depois, ele contou-me: ‘Quando saí, despedido, entrei, nem 50 metros depois, no barbeiro, para cortar o cabelo. Porque queria’.”

“LEMBRO-ME que, no último dia de janeiro de 1974, António José da Glória não levantou os olhos quando servia uma cliente – e fez mal. Ele era o dono de uma papelaria na lisboeta Alameda Afonso Henriques, frente ao Técnico (hoje é o café The Tower). As escadarias do Instituto Superior Técnico eram palco de constantes correrias de estudantes, perseguidos (e, em casos mais raros, às vezes até perseguidores) pela polícia de choque. De uma tourada dessas o sr. Glória fez eco à cliente: ‘Ontem, lá houve mais bordoada entre estudantes e polícias.’ Como não levantou os olhos, não reparou num outro cliente, desconhecido na casa. Este era um guarda da PSP à civil, mas zeloso, que, informou o Diário de Lisboa, logo lhe deu voz de prisão.  O sr. Glória foi a tribunal acusado de ‘propagação de boatos’.”

“LEMBRO-ME que nos finais de fevereiro, uma nota na Comarca de Arganil, jornal do país profundo, referindo-se à notícia do imprevidente sr. Glória, tramado pelo espírito de bufaria, pedia medidas mais drásticas: ‘Que aconteceu ao boateiro? Ficava bem uma lição a valer.’ O julgamento tramitou, oh ironia, para o dia 25 de abril próximo… Quer dizer, Dia de São Nunca à tarde.”

“LEMBRO-ME que Adélio da Custódia, de 30 anos, de Torredeita, Viseu, estava a ser julgado por ter matado a mulher, Maria Pais Pimenta, de 29 anos. Ela voltara para casa depois de andar com outro. O assassínio dava para prisão maior de 16 a 20 anos. Suspiro de alívio para os bons costumes: Adélio apanhou dois anos. O juiz-corregedor do Círculo Judicial de Viseu explicou, na própria sentença, a sua benevolência: ‘Porque se justifica perfeitamente a reação do réu contra a mulher adúltera que abandonou o lar, o marido e dois filhos, para seguir com um saltimbanco’.”

“LEMBRO-ME de um domingo de manhã, em fevereiro, quando o pátio interior do Hospital de Santa Maria se encheu com uma chusma comandada pelo tenente Coimbra, da polícia de choque. Cercavam a Sala de Estudantes. Aí, havia a secção editorial que devia só imprimir sebentas, mas não era bem assim. A polícia encontrou três sucessivas portas de ferro, atrás das quais se barricou um estudante com pronúncia esquisita, o que levou o tenente a lançar, julgando-o cabo-verdiano: ‘Abre a porta, seu preto!’

Uma hora de maçarico depois, encontraram o José de Melo Medeiros, açoriano de 22 anos, estudante de Medicina. Espanto pelo arsenal clandestino, impressoras offset, máquinas de escrever elétricas, uma trituradora de papel… Aquela sala era o segredo de Polichinelo dos estudantes assanhados contra o Governo. Eles imprimiam ali material de propaganda clandestina.

Medeiros foi levado para a prisão de Caxias – quatro dias a andar à roda, com dois Pides aos pontapés para ele não parar. Medeiros não falou, nem tinha nada para dizer, não tinha partido nenhum – tinha ido fazer uns panfletos que um colega lhe pedira (e que ele destruiu antes das portas serem arrombadas). Ficou 18 dias na cela, solitário. Foi posto à porta de Caxias sem ver outro preso. Nunca foi julgado.”

“LEMBRO-ME que o diretor do Diário de Lisboa Ruella Ramos e o cartoonista João Abel Manta foram absolvidos, num processo que se arrastava desde 1972. Abel Manta desenhara uma bandeira nacional iconoclasta que foi publicada n’ A Mosca, suplemento edição de fim-de-semana do DL (com colaborações prestigiadas: Cardoso Pires, Sttau Monteiro…) No cartoon, a boca de uma cantora substituía a esfera armilar – simbolizando o Portugal festivaleiro. Todos os anos, o Festival da Canção, que escolhia a representante portuguesa para a Eurovisão, parava o país.

Abel Manta, antes de ser absolvido, em 74, foi chamado à esquadra, em 72, e só saiu com uma fiança de 15 contos (hoje, equivalente a 5 mil euros). A acusação dizia: Ofensa à bandeira nacional. Em editorial, n’A Época, jornal afeto ao regime, o diretor Barradas de Oliveira quase se engasgou: segundo ele, a bandeira fora ‘desrespeitada, abandalhada e achincalhada’.”

“LEMBRO-ME que prosseguia o julgamento das Três Marias, Isabel Barreno, Teresa Horta e Maria Velho da Costa, por causa do livro delas, publicado dois anos antes, Novas Cartas Portuguesas. Resumo de todos os capítulos: elas diziam, simplesmente, ‘nós somos.’ O título remetia para uma obra clássica francesa, Lettres Portugaises, Cartas Portuguesas, atribuídas a uma freira portuguesa, Mariana Alcoforado, enclausurada num convento em Beja, no séc. XVII. Amante, seduzida e abandonada por um jovem francês, nobre e militar. Se essas cartas antigas eram da freira, discute-se, mas soror Mariana era o mesmo que a Três Marias julgadas, mais de dois séculos depois, pelas novas cartas: mulher. Condição que, para o ser, precisa de ser gritada e uma sororidade construída. Em 1972, o livro foi proibido e o censor já o classificara: ‘Uma ofensa aos bons costumes e à moral vigente’.”  

“LEMBRO-ME que o Jornal Português de Economia e Finanças fazia campanha para as mulheres entrarem no Exército. Entre a falta de mancebos na tropa e o respeito pela delicadeza das mulheres, a extrema-direita portuguesa encontrou o meio-termo: Não se vai ao ponto de desejar unidades de combate femininas, mas é tempo de libertar do serviço de carteira os nossos rapazes, substituindo-os por mulheres.”

“LEMBRO-ME que a Mocidade Portuguesa Feminina preparava para o mês de abril a eleição da Rapariga Ideal Portuguesa. As candidatas deveriam prestar provas em arranjo do lar, sessões de puericultura, uma hora de criação artística e teste de formação moral. Enfim, uma Miss Dona de Casa.”

“LEMBRO-ME que, a 15 de março, apareceu no República, jornal da oposição, uma página inteira foi dedicada ao jornal Gazeta das Caldas, dirigido por um cacique local do partido único do regime. Um grande destaque sobre o que o jornal das Caldas da Rainha dizia. Esquisito… E ainda por cima com um enorme e enigmático título: Das Caldas Vem a Luz… Só no dia seguinte, com o Golpe das Caldas, se percebeu que alguém no República sabia o que ia acontecer e não quis perder a oportunidade de usar o  título Das Caldas Vem a Luz…”

“LEMBRO-ME que, na madrugada de sábado, 16 de março, alguns oficiais do Regimento de Infantaria 5, nas Caldas, prenderam o comandante e marcharam sobre Lisboa. À entrada da capital encontraram forças da Artilharia 1, da Cavaria 7 e da GNR, e recuaram para o seu quartel. Este foi cercado e rendeu-se já na noite de sábado. O Governo pôde difundir um comunicado tranquilo: ‘Reina a ordem em todo o país’. Sobre o assunto nada mais foi noticiado.”

“LEMBRO-ME que, no domingo, 17 de março, o Sporting ganhou 2-0 ao Porto, em Alvalade. Os nortenhos, quer atravessaram o país para ver o jogo, confirmaram que reinava a ordem.”

 “LEMBRO-ME que o editor de desporto do República, Eugénio Alves, fez uma peça notável de jornalismo do tipo receber a bola no peito, fazer de conta que se vai para um lado absurdo e ir-se mesmo para o lado que se quer ir. Sobre o jogo Sporting-FC Porto, escreveu ele: Os muitos nortenhos que no fim-de-semana avançaram sobre Lisboa, sonhando com a vitória, acabaram por retirar, desiludidos com a derrota. O adversário da capital, mais bem apetrechados (sobretudo, bem informados da sua estratégia), fez abortar os intentos dos homens do Norte. Mas, parafraseando um astuto comandante, perdeu-se uma batalha, mas não se perdeu a guerra. Nota – bem vistas as coisas, Caldas da Rainha, embora ligeiramente, fica a norte dae Lisboa… E talvez o editor de desporto não estivesse a escrever sobre futebóis.” 

“LEMBRO-ME que dezenas de generais foram dizer ao Presidente de Conselho Marcelo Caetano que tudo ia no melhor dos mundos. Por todos falou o general Paiva Brandão, que garantiu: ‘As Forças Armadas não fazem política’» A comitiva recebida por Marcelo ficaria conhecida por Brigada do Reumático.”

“LEMBRO-ME que, dias depois do beija-mão dos generais, o República deu inusitado destaque a uma notícia médica: Em Portugal há 10 por cento de reumáticos. Para doença, 10 por cento parece muito, mas num contexto em que o país só tinha ouvidos para a política e golpes militares, era uma percentagem minoritária, muito abaixo da unanimidade que se exigia às cúpulas das Forças Armadas.”

“LEMBRO-ME que a Casa de Imprensa organizou o I Encontro da Canção Portuguesa, a 29 de março, no Coliseu de Lisboa. Os bilhetes esgotaram-se num dia. E para que noite!

Um barbudo cantou um poema do José Gomes Ferreira, o que foi passaporte para aplausos, mas não impediu todas as impertinências: «Quem és tu?», gritou alguém da plateia. O cantou pousou a viola e apresentou-se: «Pois sou o Manuel José Soares.» Perceberam o tamanho do que estava a acontecer? Só poucas semanas depois o povo português subiria metaforicamente para o palco do país, mas antes, naquela noite do Coliseu, os espectadores portugueses já tinham esse tirocínio no Coliseu.

Na noite do Coliseu, passaram pelo palco muitas das vozes que seriam de Abril: José Jorge Letria, Fausto, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire… Carlos Paredes, boca amargurada, dedos duros e dançarinos, tocou «Verdes Anos». Sérgio Godinho, Luís Cília e José Mário Branco estavam no exílio. Já de madrugada, em corpo ou em espírito, todos rodearam José Afonso e acompanharam o coro de cinco mil vozes a cantar «Grândola».

António Paulo Maltez Soares, o célebre capitão Maltez da polícia de choque, rematou o seu relatório para a PIDE, assim: O espetáculo pela 01h30 e a assistência saiu ordeiramente. Os maus polícias maus não sabem ler as almas.”

“LEMBRO-ME que o presidente do Benfica, Borges Coutinho garantiu que o clube ‘nunca seria uma sociedade anónima nem teria jogadores estrangeiros’. Que raio, já era abril e 1974 (embora ainda não dia 25), mas será ele não sabia que não era altura de dizer ‘nunca’?”

“LEMBRO-ME que os instruendos do curso de sargentos milicianos da Escola Prática de Cavalaria organizaram um sarau no Teatro Rosa Damasceno, em Santarém. Convidaram dois baladeiros de Lisboa, Letria e Fausto. Os instruendos pediram canções proibidas e um pide achou prudente ir escutar. O espetáculo esteve para ser cancelado pelo comandante, oficiais opuseram-se e quem corroborou com estes foi o pide que deixou no seu relatório isto: As baladas que foram cantadas eram de ataques aos burgueses, portanto de certo modo sem interesse político (sic). O relatório está na Torre do Tombo.”

“LEMBRO-ME que, a 27 de março, entrou na barra do Tejo a Força Naval Permanente da NATO. Visita longa, de duas semanas. Os seus destroyers e fragatas, com 1500 homens,m zarpariam só a 17 de abril. Bem escolhidas as datas:  suficientemente próximas do 25 de abril para lembrar que a Nato existia e partindo a tempo para não parecer que pressionavam o 25 de Abril.”

“LEMBRO-ME que, em abril de 1974, antes do dia 25, o Portugal profundo estava perplexo com o que lhe acontecia e ainda não lhe acontecera a grande mudança. Escrevia o jornal Cávado: Se a batata não dá dinheiro, se o gado se extingue pela floresta, se o custo de vida aumenta, se o barrosão tem de comprar tudo, nada vendendo, um só caminho tem a seguir: a emigração. Foi o pastor, foi o feirante, o proprietário e o merceeiro, foi gente de toda a função, até o barbeiro que fechou as portas e ninguém quis ocupar…

Não, não era uma prosa só nostálgica. O jornal do extremo Norte noticiava que o barbeiro de Montalegre partira, obrigando os homens do Barroso a irem fazer a barba a Chaves, a 45 quilómetros. O Cávado abria subscrição para um subsídio mensal mínimo que devolvesse um barbeiro a Montalegre.”

“LEMBRO-ME que passavam vinte minutos da meia-noite, madrugada já de 25 de abril, quando o locutor da Rádio Renascença leu os primeiros versos da canção «Grândola, Vila Morena»: «Terra da Fraternidade, o povo é quem mais ordena, dentro de ti, ó cidade». E, depois, pôs o disco de Zeca Afonso a girar. Em Santarém, o capitão Salgueiro Maia mandou acordar todo o pessoal.”

O pide que me convenceu: “Portugal mudou mesmo”

Este texto na Mensagem de Lisboa é uma escolha de três dúzias de episódios do livro Lembro-me Que, publicado há um quarto de século com mais de trezentos fogachos de memória. O título é uma confessada apropriação que cometi sem vergonha e muito prazer.

No prefácio de Lembro-me Que, justifico-me: “Em 1978, o francês Georges Perec (1936-1981) escreveu Je me Souviens (Lembro-me), que ele fez anteceder deste aviso: ‘O título, a forma e, em certa medida, o espírito destes textos inspiram-se em I Remember (Lembro-me) de Joe Brainard.’” 

O americano Brainard (1941-1994) tinha publicado I Remember em 1970. Livrinho que além de viver de um achado, as memórias contadas em fragmentos, podendo ir da frase curta a um parágrafo, sempre começadas pelas mesmas palavras, I Remember, sempre repetidas. “Lembro-me de ter aprendido muito cedo na vida a arte de colocar tudo exatamente onde estava.” “Lembro-me do som do homem dos gelados a chegar à minha rua”, vai dizendo Joe Brainard, em I Remember.

Georges Perec com o seu Je me Souviens não sublinhou tanto esse registo pessoal, mas, ele o disse, lembrou “aqueles bocadinhos do quotidiano” que, se não merecem entrar nas autobiografias “dos chefes de Estado ou dos alpinistas, suscitam ao leitor, durante alguns segundos uma impalpável pequena nostalgia.”  Confirmo.

O francês Perec, à ideia do americano Brainard, acrescentou numerar cada uma das suas 480 evocações. Se há número é porque o acontecimento é um caso. E se o é, o leitor regozija-se por o identificar também como seu. Ele também se lembra. Perec escreveu sobre os anos entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o começo da década de 1960 – e a geração que os viveu sentiu-se a partilhar um segredo querido.

Ao ler o excerto “125, Je me Souviens que o líder russo Nikita Khruschev tirou o sapato e bateu com ele na tribuna, ao discursar da ONU”, também me lembrei. E depois de ler outra pequena recordação – a 369, “Lembro-me de Caryl Chessman” – fui à estante confirmar se ainda tinha um livro do tal citado, publicado pela editora Europa-América, 2455Cela da Morte. Chessman, o Bandido da Lanterna Vermelha, passou a década de 50 a escrever livros, até ser executado na câmara de gás da prisão de San Quentin, na Califórnia.

Outro pequeno texto de Perec: “304. Lembro-me da secção Enriqueça o seu Vocabulário, na revista Reader’s Digest.” A luzinha de prazer que se me acendeu na memória! Na versão brasileira da revista, que a minha mãe recebia em Luanda, era essa a minha secção preferida. Como esquecer, pois se ela era assinada por Aurélio Buarco de Holanda, o autor do Dicionário Aurélio, um dos mais reputados académicos da nossa língua.

Ao brasileiro já eu guardara o nome, antes de Perec. Aurélio foi o primeiro Buarque de Holanda que conheci, ainda antes de me apaixonar por “a ver A Banda passar…”, do seu primo Chico. Em resumo, estando eu à toa na vida para contar os primórdios do 25 de Abril, decidi-me pelo género, o estilo e a capacidade impactante de Georges Perec evocar memórias.

E ainda bem que escolhi a maneira simples dos seus je me souviens…, e do seu dar a saborear em pequenas porções. É que o poeta, romancista e manipulador de palavras Perec também tinha dias de escrita mais complicada. No ano em que fui obrigado a ir viver para Paris, 1969, ele publicou¸ com sucesso e grande espanto, La Disparition. Um romance policial com mais de 300 páginas e 70 mil carateres, em que nem uma única vez foi usada a letra “e”, a vogal mais recorrente na língua francesa.

Uma desaparição que foi largamente recompensada por Georges Perec, em 1972, com Les Revenentes. Um texto ainda mais difícil de escrever porque, nas vogais, só foi usada a letra “e”! Se La Disparition (O Sumiço) foi traduzido em português, no Brasil, embora só em 2016, até agora ninguém ousou deitar-se à tradução do segundo bico-de-obra do meu admirado francês.

Em boa hora, pois, me decidi pelo género mais simples de Perec. Com um porém. O francês, tal como como o americano Brainard, lembrava-se de experiências pessoais, vividas por ele. Ora os meus “lembro que…” são fragmentos de vida em Portugal, já o contei aqui, entre o primeiro dia do ano de 1974 e o nosso dia redentor. Desertor do exército colonial, passador de fronteiras a salto, eu vivia, desde setembro de 1969 em Paris, no exílio. Só regressei a Portugal no Primeiro de Maio de 1974.

Os meus “lembro-me que…” evocados acima, são trabalho jornalístico compulsado nas notícias publicadas naqueles cinco meses… em que eu não estava em Portugal. E, para dizer a verdade, havia boas razões para não estar.

Essas más boas razões para não estar em Portugal tendo acabado, porque acontecido o 25 de Abril, logo que arranjei o primeiro passaporte da minha vida meti-me no comboio de volta, na véspera do Primeiro de Maio. No prefácio do livro Lembro-me Que conto um episódio da viagem em jeito de “lembro-me que”, curto e civilizador, mas já fora do prazo combinado para o assunto do livro, porque acontecido meia-dúzia de dias depois do 25 de Abril. Segue o relato.

Lembro-me que não tínhamos a certeza ainda se o que se passava em Portugal era fogo de vista ou se voltaríamos ao exílio.  Lembro-me que, quando o comboio parou na fronteira portuguesa entraram na carruagem, ampla e cheia, dois homens fardados, da Guarda Fiscal. Um era cabo e o outro, soldado. Lembro-me de achar estranho, por o soldado ser mais velho, ser ele a falar-nos e o cabo parecer ter-lhe respeito. Intuí que o soldado era, de facto, agente da PIDE (organização que ainda não tinha sido desmobilizada das funções de vigiar as fronteiras) e a sua farda de guarda fiscal era mera prudência devido aos tempos ainda incertos. Mas lembro-me de ter concluído isso mais tarde, quando voltei a pensar no assunto.

Lembro-me que, naquela manhã de 1 de maio, em Vilar Formoso, o soldado disse aos da minha carruagem: “Fiquem todos sentados. Um de vocês vai recolher os passaportes e traz-mos. Obrigado.” Os dois puseram-se a contar-nos. Fui eu que foi recolher os passaportes.

Lembro-me que dois dias antes tínhamos ocupado o consulado-geral de Paris, onde quiseram dar-nos um salvo-conduto para quem quisesse regressar. Mas o que queríamos era passaporte verdadeira e duradouro, sabia-se lá o que vinha… E quem queria, naqueles dias, era persuasivo. O cônsul aceitou.

Lembro-me que todos os passaportes recolhidos entre os meus companheiros de jornada, em Vilar Formoso, dúzias, eram como o meu, novinhos em folha. Exceto um, o de Fernando Santos Neves, professor na Universidade de Vincennes, que fora para França legalmente, ainda padre católico (foi depois reitor da Universidade Lusófona). Santos Neves estava um bocado preocupado. Disse-me: “Não tive tempo de ir ao consulado, o meu passaporte está caducado. Vê se o escondes entre os outros.”

Lembro-me de ter estendido aos guardas uma pilha de passaportes brilhantes, com um amarfanhado no meio. Foi o jovenzito, o cabo, que os recebeu e pousou numa mesa armada à porta do vagão. Os seus olhos de polícia foram logo atraídos para o documento diferente. Pegou no passaporte do Santos Neves, pôs uma ruga na testa e mostrou-o ao soldado, supostamente seu subordinado: “Este está caducado.”

Lembro-me que o outro, mula velha, deito um olhar breve ao passaporte. E disse: “Mas não está muito caducado”. E foi assim que provavelmente foi um pide que me informou que Portugal tinha mesmo mudado.”

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Ferreira Fernandes

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