Disseminou-se a ideia romântica de que, nos anos 20 do século passado, A Brasileira do Chiado era ponto de encontro de artistas e intelectuais. É verdade, claro, mas este mítico café, que abriu portas em 1905 pelas mãos de Adriano Soares Telles do Vale, era muito mais que isso. Por aqui, todos os dias passavam monárquicos, republicanos, ricos, pobres, e até mesmo mendigos e bombistas.

“A Brasileira do Chiado era a rede social da época”: é assim mesmo que Paulo Almeida Fernandes, historiador de arte e coordenador do serviço de Investigação e Inventário do Museu de Lisboa, e João Bernardo Galvão Telles, bisneto de Adriano Telles, descrevem A Brasileira na primeira das tertúlias dinamizadas pela Mensagem – um ciclo de conversas no âmbito da celebração dos 100 anos dos primeiros quadros modernistas expostos n’A Brasileira, efeméride que é também assinalada pelo Prémio de Pintura A Brasileira do Chiado.

Nesta conversa sobre a importância da Brasileira no Modernismo, os oradores viajaram pelo tempo, recordando o passado do café, da sua fundação à exposição dos primeiros quadros modernistas de artistas hoje mais que consagrados como Almada Negreiros, António Soares, Jorge Barradas, Bernardo Marques, Stuart Carvalhais, José Pacheko e Eduardo Viana.

O homem por detrás do café

João Bernardo Galvão Telles traçou a história do seu antepassado, um “homem pragmático” e “hiperativo”, pai de 20 filhos e dinamizador de vários negócios pelo mundo.

Nascido em 1859, em Alvarenga, numa pequena família da aristocracia local, Adriano Telles cedo ficou órfão de mãe e viu o pai partir para o Brasil. Foi assim que, aos 13 anos, com o intuito de convencer o pai a regressar, viaja sozinho até outro continente. Não conseguindo que o pai regresse, é no Brasil que começa a trabalhar numa farmácia. E, com 19 anos, tinha já os seus próprios negócios.

Adriano Telles, o fundador da Brasileira.

No Brasil, criou várias sociedades, entrou no mundo do jornalismo, no mercado bancário e até mesmo na política. Mas a doença da primeira mulher – cuja família era detentora de fazendas de café – fá-lo regressar a Portugal, para onde trará o café brasileiro.

“O café brasileiro tinha má reputação, era considerado amargo”, explica João Bernardo Galvão Telles.

Adriano Telles torna-se, pois, um verdadeiro “propagandista do café brasileiro”, inaugurando os cafés A Brasileira, primeiro no Porto, depois em Lisboa (no Chiado e no Rossio), com a marca a estender-se a Braga, Coimbra e Sevilha.

A Brasileira popularizaria o café: a quem ali comprasse os produtos importados do Brasil, seria oferecida uma chávena da bebida. E porquê este nome, “A Brasileira”? Podemos apenas especular, diz João Telles. “Seria uma homenagem à sua primeira mulher? À mulher brasileira?” Ou então simplesmente remetia para “a casa de café”.

João Bernardo Galvão Telles (à esquerda), bisneto de Adriano Telles, e Paulo Almeida Fernandes (à direita), historiador de arte. Foto: Inês Leote

De lugar de negócio para lugar de ócio

O negócio do café que Adriano Telles trouxe para Lisboa acabaria por criar um espaço de referência na cidade. Ponto de encontro de todas as classes sociais, onde marcavam presença figuras bem caricatas, como um mendigo que exibia aos clientes um cartaz onde se podia ler: “Fará vossa excelência o obséquio de me emprestar 5 mil reis?”. Quando naturalmente lhe recusavam tal empréstimo, o mendigo virava o cartaz, surgindo uma nova mensagem: “E 5 tostões?”.

Ali, neste espaço de intelectuais, Almada Negreiros proferiu pela primeira o Manifesto Anti-Dantas e criou-se a célebre revista Orpheu – com colaborações de Fernando Pessoa e Mário Sá-Carneiro. Mas este era também um espaço de reunião de… grupos bombistas, como contou Paulo Almeida Fernandes. No início do século XX, terão deflagrado em Lisboa cerca de 300 bombas – e algumas delas terão sido planeadas aqui mesmo, no Chiado.

Na Brasileira, terá também ocorrido uma peripécia curiosa com o pioneiro do futurismo Santa-Rita Pintor, quando um grupo de cavalheiros surgiu à porta do café para lhe “dar uma sova”. Santa-Rita, conhecido pela sua figura esguia, temeu por uns instantes, mas logo de seguida foi confrontar os cavalheiros, perguntando-lhes se procuravam o “Santa-Rita Pintor”, explicando-lhes logo de seguida que “Santa-Rita Pintor não existe”:

“Existem, sim, o sobretudo, o casaco, o colete, a camisa, as camisolas de Santa Rita… Mas o Santa-Rita, propriamente dito, não existe…”.

Os polémicos quadros modernistas

No início dos anos 20, uma reportagem jornalística sobre os cafés da cidade não retrata a Brasileira do Chiado de forma elogiosa, muito pelo contrário, recorda João Bernardo Galvão Telles. Talvez tenha sido esse o gatilho para que Adriano Telles procurasse renovar o café: é nessa altura que encomenda ao arquiteto Norte Júnior – que já fizera uma intervenção na sua casa em Alvarenga – o projeto da fachada que hoje conhecemos, ao estilo parisiense.

E o ataque aos “quadros pindéricos”, expostos nessa altura na Brasileira e que se crê que retratassem paisagens do Brasil, terá também motivado uma mudança.

Foi assim que, há 100 anos, um conjunto de quadros de jovens artistas modernistas foi exposto no Salão de Outono na Sociedade Nacional de Belas Artes. No ano seguinte, chegariam à Brasileira, que se tornava um verdadeiro “café-museu”.

Mas a sociedade não estava preparada para o arrojo destes quadros vanguardistas: “A Brasileira tornou-se uma notícia quase diária”, aponta Paulo Almeida Fernandes. A imprensa foi feroz, chamando-lhes mesmo “telas do Telles” e surgindo várias caricaturas satíricas. Provavelmente, diz o historiador, porque a sociedade não estava preparada para esta democratização da arte.

A polémica passou. Em 1971, novos quadros surgiam na Brasileira. Desta vez, a história não causou tanta controvérsia: as obras foram escolhidas criteriosamente pelo célebre historiador e crítico de arte José-Augusto França, e contemplavam os artistas Fernando Azevedo, Nikias Skapinakis, António Palolo, Eduardo Nery, Noronha da Costa, Carlos Calvet, João Vieira, Joaquim Rodrigo, João Hogan, Manuel Baptista. “Foi uma forma de renovar com qualidade, mas a mudança não teve o arrojo dos anos 20”, diz Paulo Almeida Fernandes – que considera, no entanto, que como conjunto artístico, os quadros atuais são mais importantes.

Os quadros dos anos 70 mantêm-se hoje na Brasileira, e assistiram a toda a conversa.

Com o Prémio de Pintura lançado, e cujas candidaturas encerram a 30 de Setembro, novas obras darão vida à Brasileira durante uns tempos – enquanto os outros serão restaurados. A Brasileira que, para João Bernardo Galvão Telles e Paulo Almeida Fernandes, é “a mais irónica loja histórica de Lisboa.” E aqui está para mostrar a todos de que fibra é feita Lisboa.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 28 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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