Havia quem pensasse ser um digno personagem de um livro. E assim acabou por ser. Passados 15 anos do último adeus do lisboeta João Manuel Serra, conhecido como o “senhor do adeus“, que todas as noites acenava aos carros na Praça de Saldanha, acabou por dar título a um livro de romance ficcional escrito por João Albano Fernandes.
“O Senhor do Adeus foi, essencialmente, uma figura conciliadora de Lisboa, respondendo com generosidade a toda solidão que o cercava”, acredita o autor da obra, lançada em fevereiro, vencedora do prémio de literatura Montijo Jovem.
A solidão do “senhor do adeus” é familiar a João Albano Fernandes. Nascido em Águeda há 35 anos, em 2015 João percorreu o conhecido traçado de tantos outros portugueses e, após tirar arquitetura em Coimbra, mudou-se para Lisboa para tentar a sorte. Um movimento que nos primeiros anos na capital apresentou-o a uma das facetas mais cruéis das grandes cidades: a solidão.

“Quando cheguei a Lisboa, não conhecia quase ninguém. Só conheci a solidão e fui forçado a partir à procura do outro para me sentir reconfortado”, relembra.
É justamente esse mesmo arco de “partir à procura do outro” que o arquiteto e escritor revê na urgência do “senhor do adeus” em, todos os dias, parar no passeio de uma movimentada via de Lisboa para acenar aos estranhos dentro dos carros.
Uma solidão que João Manuel Serra costumava dizer persegui-lo na sua própria casa. Um sentimento de abandono crescente desde a morte da mãe, quando ele completou 65 anos, até então a única companhia do filho celibatário de uma família abastada e que nunca precisou de trabalhar um único dia na vida.
Esta não é uma biografia de João Manuel Serra, mas uma obra ficcional inspirada na vida dele.
Recorde-o aqui:
Um personagem irresistível para o quinto livro do escritor, um colecionador de prémios literários, vencedor também do Maria Amália Vaz de Carvalho (em 2020, com Desafortunados); do prémio Cordel d’Prata (em 2021, com Uma Última Solidão), do Nacional Lions Portugal (em 2023, com O Lixo dos Outros) e do prémio Natália Correia (em 2024, com Caindo de mais alto).
Como arquitetar uma personagem
João Albano Fernandes leva-nos até ao discreto marco registado pela Câmara Municipal de Lisboa em homenagem ao “senhor do adeus”, uma placa esférica no passeio em frente ao antigo cinema Monumental, no Saldanha, onde se lê: “Da minha solidão, sei eu”.
A placa foi uma entre tantas manifestações, a maioria espontânea, que levaram os lisboetas à Praça de Saldanha para retribuir com um aceno a partida do “senhor do adeus”. A homenagem, de 2016, marcou o desaparecimento de João Manuel Serra em 2010, então com 80 anos.
Uma parte curiosa da vida do “senhor do adeus” foi antes documentada pelo cineasta Filipe Melo, que costumava acompanhá-lo em sessões de cinema naquele mesmo antigo cinema Monumental. As percepções do cinéfilo João Manuel Serra sobre os filmes eram então transcritas por Filipe Melo num blog, a produções avaliadas não pela quantidade de estrelas, mas “acenos”.
Esse e outros materiais disponíveis, como as entrevistas em vídeo e as dezenas de depoimentos na página dedicada ao Senhor do Adeus no Facebook, acabaram por servir de material para João Albano Fernandes traçar o perfil da personagem do seu livro.
Um trabalho de construção que exigiu também a colaboração do lado arquiteto do escritor. “Costumo desenhar uma espécie de planta da narração para me ajudar a montar a arquitetura da personagem”, explica o escritor.

No caso do Senhor do Adeus, a dificuldade foi encontrar o equilíbrio verossímil entre uma personalidade muitas vezes associada à loucura e à obsessão, mas que para o autor reflete o drama existencial de alguém mantido preso numa “redoma” por uma mãe ao mesmo tempo protetora e controladora.
“Do ponto de vista do escritor, essa relação é bastante inspiradora. Interessou-me essa dimensão da loucura e da generosidade de um personagem levado pelo fluxo nem sempre são da vida urbana a parar e acenar aos carros”, afirma o autor.
Romancista de personagens de Lisboa, para fugir à solidão
A história do Senhor do Adeus junta-se à outras histórias igualmente tocantes de lisboetas que João Albano Fernandes tem romanceado.
Na gaveta, já se encontra escrito um livro sobre o ator Bruno Candé, vítima de crime de racismo em Moscavide em 2020, enquanto termina outro sobre o casal Florindo e Flora Beja, que durante 25 anos protestaram em frente à Procuradoria Geral da República. Ambos ainda sem previsão para serem editados.
Escrever foi uma forma de João Albano Fernandes também “acenar” para a solidão que o recebeu em Lisboa. Os primeiros anos na capital levaram-no ainda a momentos de ansiedade diante da rotina exigente e precária como arquiteto, que o fez decidir por uma pausa do Autocad para dedicar-se a outros projetos menos arquitetónicos.
Hoje, João trabalha como produtor na companhia teatral e dança contemporánea O Rumo do Fumo e participa num grupo amador de teatro. Nos palcos, venceu a timidez e também a solidão, das quais se despediu definitivamente quando encontrou a atual namorada, professora de teatro infantil.
Uma relação com Lisboa que, após um início difícil no livro da vida do autor, aparentemente caminha para um final feliz.


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