A história começa no antigo terraço do lisboeta Nuno Prates, 58 anos, na Avenida Defensores de Chaves, junto ao Saldanha. Depois de ter visto um artigo numa revista sobre coberturas verdes em Nova Iorque, ocorreu-lhe fazer o mesmo aqui, em Lisboa. Gradualmente, nascia uma floresta no seu terraço e, pouco depois, Nuno começou a fazer jardinagem lá em baixo, na rua, onde tantos canteiros tinham perdido vida, negligenciados durante anos. Estávamos em 2000. Há 25 anos, começou a cuidar deles e a criar pequenos jardins públicos à volta de troncos de árvores.

Uma tarefa considerada ilegal quando feita por um cidadão comum. E que Nuno escolheu fazer nas noites de domingo, “para escapar da pressão e da visibilidade”. Assim, podia remexer na terra, plantar, regar e cuidar sem enfrentar os olhares de reprovação de quem o observava. “Há 25 anos, se alguém estivesse a mexer no espaço público, estava imediatamente a mexer em imundice. Há uma resistência muito grande, as pessoas acham estranho que isso possa acontecer. Quase como se fosse vandalismo.”

Hoje, já não é assim: o que Nuno começou sozinho está a transformar-se num movimento coletivo. Chama-lhe “jardinagem de guerrilha”, uma forma de ativismo urbano.

Depois de mais de duas décadas a ajardinar espaços na cidade de forma solitária, Nuno decidiu convidar quem o segue a participar em ações para “reNaturalizar a Cidade” – foi assim que chamou à iniciativa. Desde novembro do ano passado, já se realizaram três encontros e dois deles resultaram no ajardinamento de canteiros pouco cuidados.

“A partir do momento em que tenho estas práticas, estou a comprar uma preocupação. O regulamento municipal proíbe a ação direta do cidadão no espaço público. Portanto, todas estas intervenções estão sujeitas a coimas.”

O jardineiro que mudou a Avenida Defensores de Chaves

Junto ao seu ateliê, em Alvalade, Nuno já fez de um pequeno espaço ajardinado em frente uma autêntica floresta numa pacata rua residencial – o Jardim das Plantas Doadas. E até faz do seu interesse pela jardinagem atividade profissional, desenvolvendo projetos de paisagismo e dando forma a jardins exóticos.

“Vinha [pela rua] com a água, com baldes de água para regar”. E há mais de duas décadas que é assim.

Jardim das Plantas Doadas, na Rua General Pimenta de Castro, em Alvalade. Foto: Frederico Raposo

Vive junto à Defensores de Chaves, no Saldanha, a avenida que tem sido, desde então, o ponto de sempre das suas ações de jardinagem, ao qual vai juntando outros pela cidade. Para todos eles, escolhe a dedo as espécies que planta: “Sei que estão preparadas para sobreviver só com a água da chuva”.

É ao nível dos olhos que gosta de trabalhar, trazendo o verde para o olhar imediato de quem anda pela rua, e no primeiro quarteirão da avenida, próximo do Saldanha e da Avenida Casal Ribeiro, é quase impossível não ser confrontado pelo impacto da sua intervenção. A partir das caldeiras das árvores, que Nuno trata como canteiros, erguem-se plantas – palmeiras, trepadeiras e outras espécies.

A manutenção destes micro jardins é uma luta constante contra a agressão da cidade. Contra os carros, o vandalismo e o roubo de plantas, contra os funcionários da Junta de Freguesia, que por vezes chegam com ordens para usar as roçadoras, e contra o entulho das obras, normalmente deixado junto das árvores.

Em Lisboa, nota uma falta de “proximidade” e de “apadrinhamento” das pessoas para com o espaço que habitam na cidade. Quando está a ajardinar em plena rua, “as pessoas mantêm uma distância”.

“Param, olham e começa uma desconfiança. Nunca tive um gesto de solidariedade, de apoio ou de ajuda. Nunca. Tudo o que eu possa fazer no espaço público para embelezar não é visto como embelezamento. É visto, às vezes, como empecilho. Porque, como é nas caldeiras das árvores, suja os carros ou acham que aquilo não é sítio para ter verde.”

Agora, com 58 anos, faz tudo isto com confiança e à luz do dia, consciente de que esta atividade é ilegal, vai contra as regras que a cidade impõe. Aliás, ao longo dos anos, foi enfrentando a ameaça de multas, que recebeu, mas nunca chegou a ter de pagar.

“Nós ainda não conseguimos ver o espaço público como um espaço de partilha, como um espaço que é de usufruto de todos e por isso não podemos investir muito no espaço público”, diz.

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“O urbano mais rural da cidade” lançou um movimento

Aos poucos, as coisas vão mudando e o trabalho que faz acaba por entusiasmar pelo menos parte da vizinhança.

Foi o que aconteceu com um restaurante da avenida que notou a sua intervenção na rua. Pediu ajuda a Nuno para fazer o que sabe melhor e, assim, a esplanada tornou-se oásis verde.

Para Nuno, a jardinagem de intervenção sempre foi uma atividade solitária, até que decidiu mudar isso. Agora, está a investir no passa-a-palavra e na partilha de conhecimentos. Talvez por isso, mesmo nunca tendo vivido fora de Lisboa, se considere “o urbano mais rural da cidade”.

Não se sente à vontade com as redes sociais, mas é por lá que vai partilhando o que faz. Aos poucos, juntaram-se centenas de seguidores, pela primeira vez, em outubro do ano passado.

Desde então, promoveu três encontros no espaço público da cidade. No primeiro, surgiram “pessoas de todas as origens e estratos sociais, com todas as aparências e todas as identidades e isso foi a parte mais entusiasmante e inspiradora do movimento”. Explicou as técnicas de jardinagem apropriadas para quem procura contribuir para a renaturalização do espaço público, ensinou como e quando plantar, e apontou as espécies ideais. Quais são? Têm que ser “minimamente resilientes e capazes de se adaptar às transgressões de transeuntes, automobilistas e aos roubos”, que, conta, vão acontecendo.

A 30 de novembro, aconteceu a primeira ação de plantação. Foi escolhido um canteiro “abandonado”, no Jardim Ruy Jervis d’Athouguia, em Alvalade, e os participantes, “cerca de 15”, trouxeram os seus próprios exemplares para plantar.

Em dezembro, voltou a juntar uma mão cheia de participantes. Escolheram um canteiro “há muito negligenciado”, na Avenida de Roma, junto à estação de comboios Roma-Areeiro, ponto de passagem diário de milhares de pessoas. Numa hora e meia, a ação comunitária de quem respondeu ao desafio “devolveu esperança e plantou uma mensagem de preocupação pelo ambiente e natureza na cidade”, escreveu Nuno depois. Limparam o canteiro, prepararam o solo e plantaram “inúmeras estacas de espécies resilientes à negligência e ao abandono”.

Uma das pessoas participantes fez uma tabuleta informativa, marcando a iniciativa comunitária e pedindo o cuidado e a atenção de quem passa. Apesar disso, quando Nuno voltou a passar pelo canteiro, encontrou lixo.

Os encontros vão continuar, assegura. O objetivo de Nuno é o de promover o aparecimento de iniciativas idênticas pela cidade – solitárias, como tem sido a sua ao longo dos anos, ou em grupo, como agora começa a acontecer.

Nuno não quer ser um líder, quer criar “um movimento que seja autónomo”. A iniciativa que está a promover “não é voluntariado, é para a comunidade”. “A minha intenção é criar jardins de proximidade.”

Por Lisboa, a jardinagem de guerrilha é uma atividade de expressão pouco reconhecida, mas Nuno não está sozinho. No Bairro dos Lóios, em Chelas, um jardim com árvores de fruto, palmeiras e bambus é cuidado há duas décadas por um morador.

Quanto ao enorme terraço de um pequeno apartamento que transformou numa floresta: depois de Nuno se ter mudado recentemente, conta, o novo inquilino decidiu acabar com o jardim e o terraço agora “tem três plantas do Ikea”.

Ilegal? Em Alvalade, a jardinagem de guerrilha virou regulamento oficial

Em 2021, Nuno teve uma visão para o canteiro junto do seu ateliê, numa discreta rua residencial de Alvalade, próxima do buliço da Avenida de Roma. Deu-lhe forma. Plantou mais de 140 espécies, numa iniciativa a que a Mensagem deu destaque, nesse mesmo ano. Desde então, o jardim prosperou, com árvores e espécies arbustivas a crescer em altura, dando a impressão de estarmos a entrar numa frondosa floresta. Na manhã desta quarta-feira, abrigavam-se ali um gato e um periquito-de-colar – de penugem verde e bico vermelho, em forma de gancho.

O jardim, contudo, não se tornou na floresta de hoje sem percalços. Houve queixas à Polícia Municipal e vários exemplares de plantas foram mesmo arrancadas por trabalhadores da Junta de Freguesia, que cumpriam ordens para tal.

Uma campanha nas redes sociais deu voz e visibilidade à indignação com a destruição do jardim e a freguesia de Alvalade deu um passo atrás. Não só permitiu a replantação do jardim, como adotou um novo e inédito regulamento na cidade de Lisboa – “Atribuição de Hortas e Pequenos Jardins Urbanos”.

A jardinagem de guerrilha abriu o precedente, tendo sido criadas regras que hoje permitem em Alvalade, e “em casos especiais, a atribuição direta de pequenos jardins urbanos, que comprovadamente já ocupavam o espaço com atividade de jardinagem, ou ainda a autorização para utilização, a título precário, de pequenos espaços ou até de vasos, fora da rede de pequenos jardins de Alvalade, mediante proposta do interessado e após parecer dos serviços”.

A criação do regulamento de Alvalade trouxe legitimidade legal à sua jardinagem de guerrilha e Nuno chegou a ter a expectativa de ver o regulamento replicado pelas restantes 23 freguesias da cidade, coisa que não aconteceu até hoje. Apesar da desilusão, o jardineiro lisboeta acredita em “práticas que acabam se transformam em debate e eventualmente são reguladas”.

À esquerda, o canteiro que veio a dar origem ao Jardim das Plantas Doadas, em 2019. À direita, o mesmo espaço, em 2022. Fonte: Google Maps

Nuno diz não ter espírito de “guerrilheiro”. Terá o de “naturalista, apenas. De ver as coisas agradáveis e arrumadas e bonitas, verdes, naturais”.

Hoje, o Jardim das Plantas Doadas é, também, viveiro. Vários exemplares têm saído daqui para alimentar as outras intervenções de Nuno pela cidade.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 32 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

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3 Comments

  1. Excelente iniciativa, muitos parabéns, quando precisarem de mim, disponham?

  2. Adorei saber desta iniciativa que só acrescenta coisas boas à cidade e a por quem lá passa ou habita. A futuras reuniões, das quais gostaria de participar.Um muito obrigada.

  3. Estes são os verdadeiros amantes de jardins, eu tento fazer o mesmo na Quinta Da Piedade, na Póvoa de Santa Iria, mas os ditos ” jardineiros da junta cortam e arrancam as plantas para não terem que andar com as roçadoras e colocarem os minis tratores como, me disse uma responsável quando a chamei atenção de ter cortado uma planta.

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