O refugiado afegão Samim Seerat e os dois filhos: começar do zero uma outra vida, num país seguro e pacífico. Foto: Arquivo pessoal.

Diante da pergunta, o sereno Samim Seerat, refugiado em Portugal há mais de dois anos, não pensa duas vezes antes de responder: “Se me arrependo em ter escolhido este país para viver? Não, apesar das dificuldades, sou grato por viver num país seguro e pacífico”. E em questão de paz e segurança, Samim sabe o que fala.

Há quase três anos, a vida de Samim era outra: nasceu em Cabul, há 32 anos, formou-se em gestão e ocupava uma posição de destaque na Moby Media Group, o maior grupo de comunicação do país.

Trabalhava na Tolo News, uma emissora de televisão independente, famosa por manter uma grande abertura. Foi fundada em 2004 por um australiano cujo pai era diplomata afegão e a mãe jornalista da BBC, Saad Mohseni. Samim era assessor executivo do CEO e responsável pelo seu programa. Mais recentemente o canal mantinha apresentadoras nas edições dos telejornais e produziu a versão afegã dos conhecidos programas musicais ao estilo American Idol, o Afghan Star, com direito a candidatas maquilhadas a soltarem a voz no palco.

A família afegã espera reconstruir em Lisboa o passado que deixou para trás em Cabul. O ano começa com a chegada de mais um integrante. Foto: Líbia Florentino.

Roya Jan, a mulher com quem se casou, era gestora de finanças, trabalhava num banco em Cabul.

Com eles, vivia a pequena Sama, filha de ambos.

Diante da tomada de poder no Afeganistão pelos talibãs, há quase dois anos, e o consequente turbilhão social no país, com as inesquecíveis imagens que correram o mundo de milhares de pessoas a lançarem-se sobre os aviões que partiam no aeroporto de Cabul , Samim conseguiu fugir do país com a esposa e os dois filhos, um ainda no ventre da mãe – o pequeno Zaeim.

Essa fuga, e chegada a Lisboa, resultou numa crónica na Mensagem, onde Samim relatou os primeiros passos do novo português da família, Zaeim, aquele que cruzou a fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão na barriga da mãe, Roya.

Um novo lisboeta nascido na Maternidade Alfredo da Costa, assim como tantos outros lisboetas.

Mas a história da família Seerat, uma entre as centenas de famílias que buscaram refúgio de conflitos e da pobreza extrema em Portugal, continua após o fim do diário. E, neste Dia Mundial do Refugiado, ficamos a saber o que mudou, desde essa chegada.

Ou o que ainda não mudou.

A família está a viver em Torres Vedras, para onde migraram depois de uma temporada no Centro de Acolhimento de Refugiados, em São João da Talha. Aprender a falar português continua a ser o maior desafio, uma limitação com rebatimento em vários aspetos da vida dos refugiados em Portugal, como a socialização com os portugueses e a possibilidade de encontrar um trabalho condizente com a qualificação profissional.

Em Portugal, Roya está desempregada, enquanto o marido tem pulado de empregos destinados a estagiários ou que não exigem qualificação. Atualmente, Samim trabalha numa empresa de gestão de redes sociais.

Não falar o português fez o antigo executivo de uma rede de televisão ficar à margem do noticiário local, inclusive o crescimento da extrema-direita no país, combativa à presença de imigrantes, como muçulmanos como ele. Um alheamento político que se reflete em grande parte dos refugiados em Portugal e pode representar um perigo para a integridade física e a permanência no país.

Samim e a filha Sama num dos momentos de lazer: apesar das dificuldades, grato por viver num país seguro e pacífico. Foto: Arquivo pessoal.

Leia aqui a conversa com Samim Seerat, dois anos depois da chegada a Lisboa:

Infelizmente, não.

Até entendo as pessoas, mas não consigo conversar. Uma deficiência em parte fruto das dificuldades na adaptação no primeiro ano como refugiado, mas também por ser difícil encontrar vagas nas turmas oferecidas pelo IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional) destinada aos refugiados. Os meus dois primeiros trabalhos foram sempre no escritório internacional das empresas e não me exigiam falar português e era impossível praticar o pouco do que tinha aprendido com as pessoas com quem convivia. Nesse período, ia todos os meses ao IEFP de Torres Vedras, onde moro, e ouvia como resposta ter turmas apenas para os ucranianos. Continuo a trabalhar usando apenas o inglês, agora na Teleperformance, mas já tentei encontrar um trabalho onde pudesse falar em português, para me socializar em português. Já cheguei a insistir no balcão do IEFP que precisava de um trabalho onde pudesse conviver com os portugueses para desenvolver o idioma, mas ironicamente, como não falo o suficiente, as portas são fechadas. 

A Roya só conseguiu frequentar uma turma de português para estrangeiros agora em 2024, mas o curso durou apenas dois meses. E, sem praticar, pois ela está desempregada e também não tem com quem conversar em português, o nível dela não avançou muito.

A Sama tem oito anos e está no segundo ano da escola. Entende português, fala menos do que percebe, escreve um pouco menos ainda, mas está a evoluir.

O Zaeim vai fazer dois anos e entrou para a creche também neste ano. Passa o dia todo lá e já reage a algumas palavras em português, mas apenas com as pessoas na creche. Quando tentamos falar em casa com ele em português, o meu filho parece não reconhecer o nosso sotaque. 

O lisboeta Zaeim e a irmã Sama já dão os primeiros passos para falar o português. Foto: Arquivo pessoal.

A realidade de um refugiado é a mesma do meu filho mais novo, de um recém-nascido. Temos que aprender tudo do zero e não só o idioma. Tarefas simples para um português exige-nos muito tempo e persistência. Por exemplo, quando ainda vivíamos nas dependências do Conselho Português para os Refugiados (CPR), soube que os refugiados líbios que lá também estavam tinham validado a carta de condução do país deles e fui tentar validar a minha. Fui ao IMT (Instituto da Mobilidade e dos Transportes) e ouvi ser impossível, pois não havia uma embaixada do Afeganistão em Portugal para atestar os meus documentos. Depois de muito trabalho, consegui o reconhecimento do governo afegão, mas ainda assim disseram-me no IMT que não poderiam reconhecer a chancela de um governo talibã. Nos outros setores da minha vida tem ocorrido mais ou menos assim: tudo demora para acontecer, exige idas e vindas… mas acabam por ser resolvidas.

Vou contar-te uma história. Há pouco tempo, os familiares da minha esposa, a mãe, o irmão e a irmã, vieram do Afeganistão para nos visitar em Portugal. Claro que, diante da situação lá, cogitavam ficar aqui. Mas, após eu explicar-lhes, bem explicado, como as coisas funcionam aqui, a questão do idioma, do sistema de saúde, do trabalho, eles acabaram por desistir. A minha cunhada decidiu tentar a vida na Áustria, o meu cunhado e a minha sogra, a princípio, preferiam voltar para o Afeganistão. Apenas meses depois, quando a irmã da Roya estava estabilizada na Áustria, é que eles se foram juntar a ela.

Não, não. Para nós, não faria tanta diferença. Talvez o sistema de saúde fosse melhor, mas ainda assim teríamos de aprender o alemão e recomeçaríamos de novo, da estaca zero. Minha família também vive fora do Afeganistão, nos Estados Unidos, mas sem a minha documentação, é impossível aplicar um visto. E, mesmo se fosse, ainda assim não seria uma opção. Não me arrependo da escolha que fiz. Sou grato por estar em Portugal, um país pacífico, seguro, onde as pessoas tratam bem a mim e à minha família. 

O primeiro lar da família foi nas dependências destinadas aos refugiados. Atualmente, o afegão vive numa casa em Torres Vedras. Foto: Arquivo pessoal.

Tem sido, sim. Preciso de acompanhamento para um problema no rim, por exemplo, e sempre que procuro o hospital marcam para um outro dia, depois para outro e para outro. Dizem que só há clínico geral em Lisboa. Também não temos nenhuma ajuda com os remédios para mim e as crianças. Mas, atenção, sei que não é uma questão específica com os refugiados. É um problema de todos que vivem no país, os refugiados e os portugueses.

Não, não, viajar ainda não faz parte da nossa nova rotina. Além de alguns passeios em Torres Vedras, conheço Lisboa e só apenas a região do Martim Moniz, pois como muçulmanos, só comemos carne com o corte Halal e o único talho que segue esse tipo de preparo fica no Martim Moniz.

Não, não sei de nada disso. Como disse antes, por não falar português, escapam-me a realidade portuguesa e os assuntos relativos à economia e à política em Portugal. Não consigo ler os jornais, muito menos assistir ao telejornal.

Não, não sabia. Não ouvi falar em nada sobre a extrema-direita em Portugal. Sem falar a língua, não leio em português e tenho dificuldades em informar-me sobre o que está a acontecer em Portugal.

Não, para mim está tudo igual. As pessoas agem da mesma forma, os problemas do país são os mesmos, e as coisas boas do país também são as mesmas. É o mesmo Portugal de quando cheguei, em 2022.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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