Por estes dias, a família Seerat tem estado entre a felicidade e a ansiedade. E não é sempre assim quando um novo membro nasce numa família? Mas Roya, a mãe, Samim, o pai e Sama, a irmã, de 6 anos, têm mais a acrescentar: são refugiados afegãos, chegaram a Lisboa há apenas três meses – depois de uma atribulada viagem de Cabul para o Islamabad, e de Islamabad para Lisboa.
Foram bem acolhidos e estão a viver no Centro de Apoio aos Refugiados da Bobadela. Todos os dias pensam na sorte que tiveram – fugiram do regime Talibã e de um país em cacos e em Lisboa encontraram a paz. E foi tudo relativamente rápido, ajudados pela sorte e pelo facto de ambos falarem várias línguas e terem educação superior, uma vida de classe média no Afeganistão.
Samim Serat nasceu em Cabul, há 30 anos. Formado em gestão, ocupava uma posição de destaque na Moby Media Group, o maior grupo de comunicação do país.
Leia aqui a crónica de Samim:
Roya Jan é gestora de finanças, trabalhava num banco em Cabul. Há dois meses valeu-se de outras habilidades para garantir a sobrevivência da família. Diante dos homens armados na fronteira, simulou estar com a perna partida, pois nem a gravidez foi suficiente para sensibilizá-los. Mancava, amparada pelo marido. A artimanha evitou serem enviados de volta para casa.

Sentado no Jardim do Campo Grande Samim parece não acreditar na paz que o rodeia. “Apesar do trabalho e de uma certa sensação de liberdade, a verdade é que nós nunca sentimos realmente esta paz no Afeganistão”, diz. Mas também é verdade que mal conseguiram adaptar-se a um novo lugar, nova língua, nova realidade, e já estão noutra mudança radical: se tudo correr bem, nasce esta semana na Maternidade Alfredo da Costa o primeiro lisboeta da família, o bebé Zaeim.
A menina Sama será a que mais visivelmente espelha o seu contentamento. É também, com aquela capacidade de adaptação das crianças, a que melhor se integrou no novo ambiente. Brinca no jardim Mário Soares sob o olhar atento dos pais. Uma outra menina da mesma idade, entre 6 e 7 anos, aproxima-se e faz um comentário. Sama responde, primeiro com palavras, depois com um sorriso. Ainda não sabe falar português, mas não há-de faltar muito.
Diante da cena, a mãe busca a mão do pai, enquanto afaga a barriga, onde o futuro irmão de Sama ainda está. Nestes momentos, é impossível que não lhes venham à cabeça aqueles dias, há apenas três meses, em que Sama e os pais se equilibravam entre as fronteiras do Afeganistão e do Paquistão, um corredor com cerca de dois metros de largura, separado por grades.
Ao lado de milhares de outros afegãos em desespero, espreitavam a oportunidade de cruzar o portão guardado por homens armados e escapar do regime talibã que recentemente retomara o poder, antevendo um novo período de sombras no país.

Mesmo assim, a grávida de sete meses, o marido e a filha esperaram mais de 20 horas no corredor, ao relento, apenas com o chão para se sentar. O esforço resultou e ainda sem saber como, os três tiveram permissão para entrar no Paquistão. Em seguida, vieram o visto português, a longa viagem aérea, que pagaram do bolso deles, a preços impossíveis, mas tinham de a fazer enquanto fosse permitido a Roya voar – mesmo assim, vieram contrariando as ordens médicas devido ao avançado estado de gravidez – e o desembarque em Portugal.
Os dias de mentira e de medo parecem ter ficado para trás. Roya sorri diante da desenvoltura da filha nos brinquedos e em fazer novas amizades. Um bonito e franco sorriso que hoje estaria coberto pelo véu imposto pelos talibãs. “Lá, não poderia vestir-me assim”, reforça, em inglês, uma de entre as quatro línguas que tanto ela como o marido Samim falam, com o urdu, pastum e dari.
As coincidências de um mundo global
Samim ouve atentamente a esposa. Após qualquer pergunta, o marido faz sempre questão de passar a palavra à mulher. É atenção, hábito de um casal visivelmente unido, mas será também o reforço de um gesto que o diferencia do regime contra o qual combateu e que agora o obrigou a ser refugiado em território português.
A escolha por Portugal não foi fortuita e contou com a ajuda de um português que Samim conheceu em Cabul.
O ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães, esteve na capital afegã semanas antes do avanço talibã e teve Samim como cicerone. “Visitámos alguns museus e outros sítios da cidade. Depois da chegada dos talibã, enviei as fotografias que tirámos juntos por WhatsApp e ele quis saber como eu estava diante da situação”, explica o afegão.
“Apenas servi como uma ponte entre o Samim e o Ministério dos Negócios Estrangeiros”, conta Bruno Maçães. “Sabia que o Samim havia tido um papel importante na produção de programas na Tolo News, uma das companhias do grupo onde trabalhava, e que o seu nome fatalmente figuraria numa lista talibã”, explica.
A Tolo News é uma emissora de televisão independente, famosa por manter uma grande abertura. Foi fundada em 2004 por um australiano cujo pai era diplomata afegão e a mãe jornalista da BBC, Saad Mohseni – Samim era assessor executivo do CEO e responsável pelo seu programa. Mais recentemente o canal mantinha apresentadoras nas edições dos telejornais e produziu a versão afegã dos conhecidos programas musicais ao estilo American Idol, o Afghan Star, com direito a candidatas maquilhadas a soltarem a voz no palco.
Samim confirma que, até à movimentação iniciada pelo novo amigo português, sabia pouco ou quase nada sobre Portugal. “Conhecia o Cristiano Ronaldo, é óbvio”, comenta o afegão. Aliás, a transmissão televisiva da primeira liga de futebol do Afeganistão, estava sob a tutela da Moby Media Group.
Avisado, o MNE tratou de acelerar a concessão dos vistos aos três afegãos, via embaixada de Portugal em Islamabad, no Paquistão. Nos primeiros dias de novembro, a família aterrava em Lisboa.
“Além, obviamente, do apelo humanitário, um dos motivos pelo qual insisti na vinda de Samim para Portugal é a sua capacidade como profissional dos media e também o seu conhecimento sobre os assuntos relativos à Ásia Central, que podem ajudar-nos a saber mais sobre o que se está a passar na região”, explica o amigo português Bruno Maçães.

O primeiro mês do ano, já em Portugal anuncia a chegada de Zaeim, que deixou o Afeganistão no ventre da mãe. O primeiro mês do ano também marca o retorno de Samim à comunicação social, mas desta vez como colaborador da Mensagem de Lisboa. Aqui publicará uma coluna mensal na qual contará as suas experiências como refugiado afegão em Portugal.
A primeira será publicada amanhã, data do nascimento do seu primeiro filho lisboeta.
O Samim e a Roya precisam de encontrar trabalho e continuar a sua vida. Falam perfeitamente inglês, entre outras línguas, e são profissionais qualificados. Quem tiver alguma ideia pode enviar email para geral@amensagem.pt.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Histórias com final feliz. Bem-vindos a Portugal! 🙂
Ainda não completamente. O Samim precisa de apoio para arranjar um emprego…
História com final feliz. Cabe a todos nós contribuir para histórias como esta.
Bem vindos a Portugal! Votos de que consigam refazer a sua vida. Muitas felicidades.