Verão de 1973, praia de Santa Cruz. Um jovem de 16 anos foi detido pela Guarda Nacional Republicana 14 vezes num único mês. O crime? Beijar a namorada na boca em plena rua. Considerado um atentado à moral, o beijo em público estava na lista das atividades proibidas antes do 25 de Abril – a maioria tão ridículas que hoje soam inverosímeis.

“Em frente à praça, havia uma pastelaria cheia de velhotes e os velhotes, pá, eram uma classe muito repressiva, que contava tudo à polícia”, recorda, entre risos, o jornalista e escritor António Costa Santos, hoje com 65 anos. “Na primeira detenção, raparam-me o cabelo na esquadra, de acordo com o que dizia a lei. Então, continuei a beijar só para chateá-los.”

António Costa Santos é jornalista e tem 65 anos. Foto: Rita Ansone

A memória do verão de 73 e de outros verões, primaveras, outonos e invernos nos tempos da “outra senhora” rendeu o livro Era Proibido, editado pela primeira vez há mais de 20 anos pela Guerra & Paz, mas que tem merecido sucessivas reedições, com direito a uma mais recente neste ano, em homenagem aos 50 anos do 25 de abril, com novos exemplos das “proibições caricatas, mas que não tinham a menor graça”, reforça o autor.

Caricatas como não ser permitido jogar cartas em comboios ou a obrigatoriedade de se ter uma licença emitida pelas autoridades para andar de bicicleta, usar isqueiro e até casar com uma professora.

Ou ainda a excêntrica proibição de “sacudir pó para a rua”, um delito em que incorreu a mãe do jornalista, nos anos 1960, punido com uma coima.

A nova edição, comemorativa ao cinquentenário do 25 de Abril. Foto: Divulgação/Guerra & Paz

“Era um hábito a dona de casa circular o paninho pelos móveis da casa de jantar e, ao passar pela janela, aproveitava para devolver à atmosfera as partículas que recolhera na superfície do aparador”, conta o livro.

O jornalista, hoje apresentador na rádio Antena 2, lembra não se tratar de despejar o lixo pela janela ou o medieval água vai, que fazia às vezes de rede de esgotos.

“Era só pó devolvido ao pó”, conta. Para reprimir o delito, havia polícias especializados que, à paisana, rondavam as ruas entre às dez e o meio-dia, a fim de pegar as donas de casa em flagrante.

No livro, António recorda-se o mais temido entre os fiscais, um agente conhecido como Três Dedos, chamado assim por causa de uma acidente com uma arma de fogo, “o terror das vizinhas de certo bairro lisboeta”.

Ir a Espanha beber uma Coca-Cola

Uma das memórias mais marcantes da infância de António Costa Santos sob os anos do “homem de Santa Comba” era ir até a fronteira com a Espanha para… beber uma Coca-Cola, cuja proibição remonta ainda a 1927, quando Fernando Pessoa viu o seu famoso slogan “primeiro estranha-se, depois entranha-se” não ser usado devido ao lobby da indústria local.

O jornalista explica que a proibição manteve-se em seguida por decisão do ditador, com a desculpa de proteger a indústria do vinho, e vigorou até 1977. A libertação, porém, não foi ponto pacífico mesmo com a chegada da democracia em Portugal e foi criticada pelos partidos de esquerda, que consideravam o refrigerante a “beberragem suja do imperialismo”.

A longa lista de proibições caricatas levadas à sério pelo Estado Novo antes da chegada do 25 de Abril. Foto: Rita Ansone.

… e ter licença das Finanças para usar isqueiro

A proteção da indústria nacional, mas a de fósforos, foi a justificação para outra determinação despropositada da ditadura: por meio século, só se podia utilizar um isqueiro em via pública quem tivesse uma licença anual emitida pelas Finanças.

Uma autorização intransferível, ou seja, o dono da licença não podia emprestar o isqueiro a um amigo, por exemplo.

António Costa Santos lembra que um pormenor no texto do decreto de lei 28 219 que, em vez de forma clara dizer que a utilização do isqueiro era permitida no interior das casas preferiu o eufemismo “debaixo de telha”, o que levou os jovens à época a andarem com um pedaço de telha no bolso das calças para sacá-lo e cobrir o cigarro ao acendê-lo com um isqueiro na rua.

Licença para casar… com uma professora

Estranho, mas nada como a autorização do governo para casar com uma professora, que deveria, inclusive, ser publicada no Diário do Governo, o antigo Diário da República.

A preocupação do Estado Novo era ter a certeza de que o futuro marido da docente ganhasse mais do que a futura esposa ou comprovasse meios de sustentá-la sem o ordenado dela.

“O Estado Novo era muito ciumento com as suas donas de casa”, provoca António Costa Santos no livro. “Preferencialmente, deveriam ficar solteiras, casadas com o magistério, a escola primária como convento”, completa o autor. Ciúme ou não, a norma seguiu em vigor até depois do 25 de Abril, revogada apenas com a promulgação da Constituição de 1976.

A aventura numa ditadura kafkaniana

A frequentar as redações dos jornais desde os 18 anos, com passagem por O Diário, O Se7e e o Expresso, António Costa Santos contabiliza uma experiência internacional tão inusitada quanto as proibições pré-25 de Abril. Durante dois anos, entre 1982 e 84, trabalhou para a agência de notícias Orbis em Praga, ainda nos tempos da Checoslováquia.

Foi assim que teve a oportunidade de conhecer outras ditaduras com as suas idiossincrasias proibitivas, algumas delas literalmente kafkanianas, como a proibição de se ler o maior escritor do país, Franz Kafka.

António Costa Santos também conheceu a versão checa da ditadura, durante um período a trabalhar na antiga Checoslováquia. Foto: Rita Ansone.

Outra determinação punia quem mantivesse em cativeiro um mocho, um animal em vias de extinção. Um crime que, por mais improvável que possa parecer, afligiu um dos colegas de trabalho do jornalista. “Um dia, ele encontrou um mocho ferido na rua e o levou para casa e arriscou-se a ser preso por salvar a vida de um animal”, conta.

Como se deve imaginar, manter um mocho dentro de um apartamento não é nada discreto e o amigo de António acabou denunciado pelos vizinhos. Só não foi preso porque as autoridades locais aceitaram a justificação de que tinha atuado de boa fé.

O jornalista lembra ainda que, assim como em Portugal a Coca-Cola era proibida, na antiga Checoslováquia o inimigo imperialista era o hambúrguer. À época, estavam também proibidos os filmes de Woody Allen e blockbusters como E.T. e o vencedor de oito óscares Amadeus, apesar de as cenas do filme terem sido gravadas no imponente Teatro dos Nobres, em Praga, e de o realizador do filme ser o checo Miloš Forman.

António Costa Santos disse que os dois anos na antiga e opressora Checoslováquia foram o suficientes para lembrar o “familiar” tempo das ditaduras do Estado Novo, o que precipitou o retorno ao então Portugal democrático. Uma vez por outra, ainda volta a Praga para matar saudades e treinar o idioma. “Falo um checo meio rasca, mas eles entendem”, diverte-se.

Multas por “mão naquilo”, “aquilo na mão” e outras variantes

Todos os anos também, o jornalista cumpre uma tour pelas escolas públicas para falar sobre as proibições dos tempos da ditadura presentes no seu livro. “Para os estudantes de hoje, o que acontecia naquele tempo é difícil de acreditar”, diz.

Para além das mais caricatas, algumas restrições à liberdade individual eram mais severas, como censura a “certos tipos” de livros, discos e filmes, a proibição do divórcio e de uma mulher casada deixar o país sem a prévia autorização do marido – uma proibição hoje presente em determinados países.

Tabela de coimas e penas da Câmara de Lisboa em 1953 a quem fosse flagrado em áreas públicas. Imagem: Era Proibido/Editora Guerra & Paz.

A atividade sexual também era monitorizada, principalmente em relação à prostituição. Sem conseguir distinguir os casais de namorados dos encontros dos homens com as prostitutas, a Câmara de Lisboa chegou a editar, em 1953, a famosa portaria que punia não só “mão na mão” em público mas também a “mão naquilo”, “aquilo naquilo” e outras variações.

Um tempo de proibições que, na opinião de António Costa Santos, marcou uma geração e deixou como legado alguns traços do ADN nacional, como o do motorista que aos berros ou com a buzina fiscaliza o trânsito e ainda a tentação de estender ao infinito uma discussão como forma de repreender o outro.

“Ficou ainda muito latente a cultura do parece-me mal fazer isto ou aquilo, um tipo de autocensura que pode transformar qualquer coisa numa contravenção”, sublinha o jornalista que num verão em 1973 foi considerado uma ameaça ao Estado Novo por ter ousado beijar a namorada em público.

*Texto originalmente publicado a 23 de abril de 2023, com alterações referentes à nova edição do livro


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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3 Comentários

  1. Adorei o texto. Ainda tive o azar, ou a sorte de passar por casos identicos
    Na altura trabalhava numa agencia de Noticias e como era “engraçado” enviar os artigos para a censura, e depois virem todos riscados a azul. Mas enfim nessa altura eramos muito novos e isto ia passando. PASSOU mas o que está a acontecer agora não tem “graça” nenhuma. Cada vez mais confusão !

  2. Adorei o texto e sou crente nas exposições de António Costa que não deve de todo, gostar do nome!…No entanto e porque “consta” que o pós 25.Abr.74 foi de implantação da democracia, tendo eu nascido em 1954, sem sentir ou notar qualquer das ocorrências narradas pela História de Portugal durante os 20 anos (54 vs 74) hoje não tenho orgulho de toda a pobreza, incompetência, influência pejorativa, roubos descaradamente praticados pelos loby’s existentes, péssima educação dos jovens, a substituição da LINGUA PORTUGUESA por um dialecto Portugales e africânder, injustiças permanentes sem coimas, multas ou despedimentos imediatos sobre os responsáveis de tantas desgraças sobre todo o Povo e que recebem ainda mordomias pela inteligência com que as praticou, AFIRMO que a mudança foi democraticamente para a “fartar vilanagem” da anarquia. Lamento IMENSO ser obrigada a ter esta opinião. Melhor, talvez só mesmo Monarquia e redução para 1/10 dos trafulhas que dizem representar os Portugueses, numa Assembleia que vale
    muito pela sua arquitetura 🏛️

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