Com André tem sido assim: saiu da Venda Nova, mas a Venda Nova não saiu dele. As lembranças do miúdo e os sentimentos do então adolescente que em 2004 e aos 16 anos deixou o bairro das Fontaínhas, na Venda Nova, lembram as casas desaparecidas para dar lugar às faixas da Circular Regional Interior de Lisboa (CRIL). Memórias que resistem tatuadas no corpo e nas letras do MC, que carrega o sítio de nascença também no nome artístico: PRVN.

“PRVN são as iniciais de Pura Realidade da Venda Nova”, explica André Lima, hoje com 36 anos, os últimos 20 deles como morador do Casal da Boba, na Amadora. Foi para lá que os antigos moradores da Venda Nova, Fontainhas e também de outras localidades nos limites entre Lisboa e Amadora foram acomodados, após serem atingidas pela construção do troço rodoviário.

A mudança da antiga e precária habitação numa barraca para uma nova casa de alvenaria não significou para o jovem André uma realidade mais sólida e estruturada. Distante do círculo de amigos, tão importante na adolescência, e longe da “pura realidade” da sua Venda Nova natal, André primeiro retraiu-se, depois caiu numa vida que, na ótica do agora maduro PRVN a olhar para o retrovisor, “não era muito boa”.

André Lima, o MC PRVN: música como forma de desabafo da dor que o acompanha. Foto: Líbia Florentino. Credit: LIBIA FLORENTINO

Angústias, revoltas e sucessivas quedas que encontraram uma relativa paz na música, as letras e batidas do rap e do hip hop, um ponto de viragem da “vida não muito boa” de André na tentativa de PRVN em reencontrar também no Casal da Boba uma nova “pura realidade”. 

“Canto porque foi a forma que encontrei para desabafar a dor que carrego. O rap foi a arma que encontrei para me desarmar”, resume PRVN.

Uma citação que se traduz no título de um dos seus EPs, Desabafo no Beat, vida e arte a atuar num duo como antídoto à violência.

Do mergulho na solidão emerge um artista

Uma das músicas desse mesmo desabafo no beat de PRVN adverte: Só quem passa é que sente. E o jovem André passou por muito e sentiu ainda mais. A rotina rebelde do adolescente que não revia no bairro novo uma nova casa levou-o aos pequenos delitos e a sucessivas passagens na esquadra local. Numa delas, ouviu um conselho:

“Ainda era menor de idade e os problemas não me causavam grandes consequências. Lá na esquadra abriram os meus olhos e disseram que logo completaria 18 anos e seria tudo diferente, que deveria seguir um outro caminho, estudar e pensar no futuro”, conta.

Só quem passa é que sente, um conselho a quem critica os moradores dos bairros sociais

Foi na “nova casa”, o antigo Centro Educativo Alberto Souto, em Aveiro, ainda mais distante física e emocionalmente da nostálgica Venda Nova, que se deu a metamorfose do adolescente André no futuro MC PRVN.

Lá, as noites solitárias no quarto eram vividas na companhia apenas do velho discman onde o adolescente André ouvia os CDs “ripados” em casa, o set list hegemonicamente retirado do rap de origem cabo-verdiana dos Nigga Poison ou Chullage. Era o primeiro contato do adolescente com a arte que não só falava a sua “língua” mas também contava histórias sobre a sua realidade.

O jovem André ainda não desconfiava que as noites de solidão poderiam ser ainda mais intensas: após uma desavença, André foi levado para uma unidade de isolamento onde, durante por três dias, refletiu sobre o seu comportamento.

Mas não só.

As primeiras letras do músico nasceram após um período de isolamento. Foto: Líbia Florentino. Credit: LIBIA FLORENTINO

“A minha liberdade dependia do meu comportamento e assim passei três dias isolado numa unidade para refletir, até ficar mais calmo. Mas foi lá, sozinho, que tive uma visão de como a violência havia tomado conta do sistema”, conta PRVN sobre a epifania vivida.

O isolamento compulsório foi seguido por um outro isolamento, desta vez voluntário, onde o adolescente André usou o lápis e uma folha de papel para criar as primeiras letras do MC PRVN que nascia da sua angústia e rebeldia.

“Percebi que os problemas todos estavam nas diferenças e nas desigualdades. Se esses problemas fossem resolvidos, haveria mais união e menos pobreza, pois o resto é automático”, diz o MC.

Para o músico, há demasiadas críticas sobre os moradores dos bairros sociais. “Nem sempre as coisas correm bem, pois quando não se tem o mínimo às vezes é-se obrigado a ir buscar. Mas antes de apontar um dedo a alguém, é preciso lembrar que há outros três dedos na mesma mão apontados para ti.”

Um álbum comunitário

Quando regressou para casa, para o Casal da Boba, André já se tinha transformado em PRVN, as iniciais do nome artísticas tatuadas no indicador, médio, anelar e mindinho da mão direita – pela mesma tinta que futuramente estamparia outros símbolos da mudança de pele do adolescente rebelde em MC, como um microfone e o código postal da rua onde vivia: 2700-895. 

Um trabalho cujas primeiras músicas foram escritas e registadas em parceria com um amigo e vizinho de bairro, o “Paletó”. 

Hoje pai de três filhos, PRVN compôs uma música com uma visão mais otimista. “Tenho o futuro nas minhas mãos.” Foto: Líbia Florentino. Credit: LIBIA FLORENTINO

“Enfiávamo-nos o dia todo no quarto da casa dos pais do Paletó para escrever e gravar as músicas. Era lá onde a magia acontecia”, recorda-se PRVN, com um brilho de nostalgia nos olhos.

A “magia” logo mudaria para a casa do próprio André, onde em 2010 seria montado um estúdio caseiro, dando início também a um lado empreendedor do músico com a criação do selo PRVN Records: a partir daí, além das próprias músicas, o MC também passava a gravar o trabalho de outros artistas do bairro. 

O estúdio com as portas abertas a outros candidatos a MC faz parte de uma economia circular do Casal da Boba que gravita na órbita dos beats, da qual PRVN também se beneficia. Toda a cadeia da produção dos EPs e dos recentes videoclips do músico é fruto do talento de várias mãos de profissionais e de vizinhos do bairro. 

“Tento ajudar as pessoas, pois aprendi que quando não se tem o que se sonha, vai se buscar, mas nem sempre da melhor maneira. Aqui, não temos nada, mas ajudamos uns aos outros, enquanto há quem tenha tudo e só olhe para o próprio umbigo”, afirma.

Um exemplo dessa sinergia made in Casal da Boba pode ser vista num dos trabalhos do EP Drill Tape (2022), quando uma bailarina do bairro protagoniza uma performance de pole dance no clip da faixa Sen Perdi Controlo.

YouTube video

Para o videoclip do mais novo trabalho, 100 Chance, PRVN contabiliza a colaboração de quase 30 pessoas do Casal da Boba, entre videomakers, editores, maquilhadores, dançarinos e responsáveis por outras funções da produção do vídeo que tem como locação Lisboa, mais precisamente as praças da Figueira e do Marquês de Pombal.

A letra de 100 Chance, por sinal, é um recado otimista de um já maduro PRVN aos três filhos, com idades entre os cinco e os nove anos, que já começam a ter consciência da realidade onde vivem. Mesmo com a escassez que costuma testemunhar na rotina dos moradores do Casal da Boba, o antigo adolescente André agora no papel de pai deixa uma mensagem de gratidão por estar vivo e poder lutar por um futuro melhor.

O novo trabalho de PRVN, 100 Chance, um recado otimista aos três filhos.

“Muitos lá de fora veem-nos sem chances de vencer, mas não penso assim. Acho que temos chances, 100 Chance, mesmo. Há quem me ache maluco por pensar assim, mas eu acredito realmente que tenho uma vida tão boa que nem acredito, que tenho o meu futuro nas mãos”, remata, mirando os anéis a brilharem nos dedos da mão.

A mesma mão onde se lê tatuado na pele e na alma as iniciais PRVN.



Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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