Deixem cá ver se me lembro da história toda. Se não foi mesmo assim, foi-o mais coisa menos coisa. Foi-me tudo contado enquanto tomava um café numa esplanada em Entrecampos. Agora é assim: basta-me sair à rua com os meus gémeos que me chega metade de Lisboa a fazer perguntas e depois a contar a sua história. Quase sempre ouço coisas que não quero. Enfim, pelo menos há umas que dão crónicas. O essencial vai agora de rajada. Não digam que chegam sem aviso.

Casaram muito bem. Bem é como quem diz homem com mulher. Homem com mulher dá frutos, e ali também deu mas antes disso deu pancada. O homem à mulher, digo. Como esta história é real, tinham nomes e tudo: ele Jacinto, ela Júlia. Júlia dos olhos azuis que depressa se fez Júlia dos olhos negros. As amigas com quem tomava chá na Avenida de Roma, nos idos anos 50, reparavam que, volta e meia, a cor à volta do índigo mudava, mas que podiam fazer? A vida era mesmo assim. O homem era violento, nem todos o eram, mas sempre tinha outras vantagens. Outros havia que eram violentos e não tinham vantagem nenhuma. Um dia, a Júlia saiu do hospital, após um de muitos espancamentos a sério, directa para o carro funerário. Para trás, deixou um marido vivo a quem não aconteceu grande coisa, dois filhos já grandes, uma filha a crescer.

Anos depois, chegou a vez dela. Gostava muito do pai, a quem chamava paizinho, apesar de lhe ter mandado a mãe para a cova antes do tempo. Havia que perceber que os homens eram homens, boys will be boys, men will be men, e que lhes é difícil conter a violência. Um homem é uma coisa que tem muita força dentro, muito ímpeto, muita fúria. A mãe, de vez em quando, também podia ter estado calada. Sabia bem como é que ele era. Os homens são gente incapaz de se conter. Enfim, lá casou a Maria, já imbuída do que era a tradição de uma família. Importava casar bem, seja lá o que for bem, e depois logo se via. Uma coisa era clara: sendo casamento, tinha de ser para a vida toda. Na igreja, lá pôs o anel no dedo como quem põe uma coleira. Entrou lá com um nome, saiu com outro. Agora era na saúde e na doença e no que mais houvesse até que a morte os separasse como tinha separado os pais.

Os tempos, sendo os mesmos, eram outros. O Carlos não lhe batia, mas, passados os primeiros meses, chamava-lhe isto e aquilo e aqueloutro. Dá para entender bem: não era isto ou aquilo ou aqueloutro que dizia. Era sempre de bem pior para cima. Nas costas, ela chamava-lhe estafermo, mas à frente dele ficava caladinha. Todos os dias o via chegar do mundo lá fora: tinha almoços, reuniões e jantaradas. Ela ficava à espera dele com um prato de comida quente ou então era dispensada e comia qualquer coisa. Como lia uns romances light, e até pegava num Madame Bovary de vez em quando, gostava de fingir que era Emma, que tinha uma vida que não estivesse confinada àquela casa e um coração que voasse para onde pudesse ter emoção. Uns passeios, uns amantes, qualquer coisa. Teria preferido viver em vez de só estar viva. Claro que, volta e meia, e mesmo sendo rapariga, também tinha tido sonhos. O primeiro, claro, era criar uma família, e ter ao lado um homem alto e bem vestido. O outro era ser pianista, mas enfim. Nunca chegou nem perto de um piano. Vá, gostava de ouvir Chopin quando tinha tempo, o que já não era mau.

Disto, vieram quatro filhos. O pai sabia o nome de todos, mas claro que nunca mudou uma fralda. Assumia perante a casa e a rua que o seu objectivo de vida era ter uma família, ter filhos, educá-los dentro da moral católica. Mas, enfim, nunca os educou. Para ele poder voar lá fora, ela tinha de se agachar para limpar o chão da cozinha em casa. E longas noites passou com febres e otites e olhos de meninos mal dormidos. Só ela sabia de que sopa é que gostavam ou que legumes não sabiam digerir. O pai tinha a família, mas pouco mais fazia do que lhes dar o nome. Na cabeça dele, não seria coisa pouca. Havia muitos que nem nome do pai tinham. E a família era essencial para ele continuar a levar a vida que levava, igual à dos amigos.

Um dos filhos achava mais graça a peitos lisos do que aos outros. Casou, ainda assim, com quem pudesse amamentar, e durante a noite lá cumpria o seu dever, com ela de bata para não ser corpo contra corpo. Talvez aquilo causasse asco aos dois, mas que fazer? Ajoelhou, tem de rezar. Casou, tem de apagar a luz e avançar. Meia Lisboa sabia que o homem se derretia quando outros homens passavam e claro que, na escuridão da vida, lá via um ou outro em becos escondidos. Durante o dia, ignoravam-se estoicamente para que ninguém ousasse dizer que não eram homens de família.

A mulher apaixonou-se por outro e viveu o que tinha a viver como se fosse uma aventura. Não disse nada ao marido, e então cada um tinha os seus amantes. Ao domingo, iam à missa cumprindo o nono mandamento: nenhum desejava a mulher do próximo.

Os anos passaram, a vida seguiu. Um dos filhos divorciou-se pouco depois de casar. Dizia que tudo aquilo fora um equívoco, que não amava a mulher a quem tinha prometido a vida toda. Tinham os dois sucumbido ao impulso rápido da paixão, que tanto desaparece como chega. A tia contou-me tudo isto como se fosse uma desgraça: “Já viu, divorciados na família?” E ainda me perguntou: “A menina não é dessas, pois não?” Descansei-a dizendo que claro que não sou. Mas, aqui entre nós, milhões de vezes isso a levar pancada em casa.

Hoje em dia, o divorciado foi expulso da família, casou com outra. Provavelmente são felizes. Têm um bebé, moram em Moscavide e a família dela aceita bem que ele tenha trocado a volta à vida. O pai e a mãe continuam a ir à missa a cada sete dias, sabe deus se os amantes ainda dão ares das suas graças, e alguém que reze pelo perdão de quem violou o sacramento. Mesmo que a vida lhes corra mal, têm a paz de ser, perante os outros, uma família tradicional lisboeta. Já não é coisa pouca. Mas, verdade seja dita, em 2024 também já não é quase nada.

*A autora escreve com o antigo Acordo Ortográfico


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.


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