“Marçano” é palavra esquecida em Lisboa, mas nos anos 1960 estava por todo o lado e vinha de todo o país. Nas aldeias do interior, a vida era demasiado dura e, por isso, confiava-se que mandar os miúdos para a cidade, para viverem como adultos, era melhor do que subsistir da agricultura e do pastoreio. João Almeida chegou assim em 1967 a Lisboa, com 12 anos, para ser marçano — uma maneira de dizer que era um miúdo aprendiz de caixeiro.

Cresceu a trabalhar, foi parar à restauração, desenvolveu a arte de ser empregado de mesa e acabou por tornar-se escritor. Hoje tem quatro livros publicados: dois romances, um de “poesia malandreca” e um guia de restaurantes que ajuda a fazer a história da restauração da cidade – o Deliciosas Colinas.

No mítico restaurante Pote, na Av. João XXI, no Areeiro, é o escritor que nos recebe há 49 anos.

As quatro obras de João. Foto: Rita Ansone

Às três da tarde de um insuspeito dia de semana, João Almeida ainda atravessa as várias salas do Pote de menus e almoços nas mãos. A marquise da entrada, a sala interior com balcão, o andar de cima e o cochicho que já foi casa de fados (a génese do Pote) são o seu tartan. A corrida para por volta das cinco da tarde. “Há uns anos não podíamos estar aqui a conversar a esta hora, isto estava cheio, era pregos, imperiais, não parávamos”, recorda aqueles primeiros tempos no Pote.

Veio aqui parar pouco depois do 25 de Abril de 1974 e, embora o restaurante já tivesse história e fama entre os intelectuais das avenidas novas, a dada altura passou a ser conhecido pelo João que servia às mesas.

“O Pote não era diferente no espaço físico dos outros lugares que existiam por essa Lisboa, mas era diferente no seu espaço humano e entre nós, os clientes habituais, era conhecido pelo Pote do João”, escreve Ana Bela Burt Magro Pires Marques, deputada municipal, num dos prefácios ao Deliciosas Colinas, livro sobre restaurantes lisboetas que João Almeida publicou em 2007, a sua estreia na escrita.

O livro foi uma espécie de comemoração dos 40 anos de serviço na restauração e a celebração de um amor ainda mais antigo. “Não sei porquê, sempre gostei de livros. Ao fundo da sala onde fiz a quarta classe, havia um armário de livros sempre fechado. Um dia pedi à professora para ler um e fui o único na escola a ler um desses livros. Era o Marcelino Pão e Vinho. Depois dos primeiros aninhos cá, comecei a ler tudo o que podia — biografias, livros de quadradinhos.”

Milhentas crianças a trabalhar em Lisboa

Em Souto de Lafões, uma aldeia de Oliveira de Frades, em Viseu, João Almeida ainda fez o exame da quarta classe. O que se seguia era óbvio: um comboio para Lisboa. É que a vida na aldeia seria feita de trabalho no campo, à mercê do frio e do calor, da escassez, do trabalho duro e dos patrões.

“Tudo era do patrão, o campo em que se trabalhava, os animais, a casa onde se vivia e no fim tinha que se dar ao patrão o que se produzia”, parece feudalismo o que descreve João Almeida, mas era a vida em meados do século XX no interior português. Foi esta a realidade que o inspirou a escrever Descalços em Tempos de Botas, uma ficção que acompanha uma destas aldeias dos anos 1930 a 1974.

“Vim para Lisboa como vinham milhares de crianças trabalhar, à medida que iam saindo da escola primária. Viam-se milhentas crianças na cidade”, conta na primeira pessoa aquilo que na escola nos ensinam ser o “êxodo rural”.

Foto: Rita Ansone

As raparigas vinham para as casas de famílias (que nem precisavam de ser assim tão abastadas) para serem criadas. Com oito, nove, dez anos, tratavam de crianças pouco mais novas do que elas próprias — e tratavam dos adultos também, das suas casas, das suas roupas e alimentação. O trabalho consumia todas as horas dos seus dias e era pago com mesa, cama e roupa lavada — tantas vezes o salário era esquecido.

Aliás, “em 1956, o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (Regeu) consagrava uma alínea onde era estipulada a obrigatoriedade de as residências disporem de um quarto para albergar condignamente as suas serviçais”, escreve Inês Brasão no livro O Tempo das Criadas, em que esta condição é detalhada.

Para os rapazes estavam reservados os trabalhos na rua, como o de marçano, que João Almeida começou por fazer na Rua dos Mastros, na Casa dos Vinhos Verdes de Lafões, onde servia copos de dois a trabalhadores.

“Ao início vivia na casa do patrão. Muita gente ficava nessa situação até à tropa e queria era libertar-se daquilo. Quando chegava a altura de ir para a tropa, pediam-se as contas e às vezes ainda se ficava a dever dinheiro ao patrão, diziam que tinha sido de uns copos partidos e por aí fora”, recorda.

Com ele não foi assim: entrou, passado pouco tempo a fazer os recados daquela mercearia e taberna, entrou na restauração, alugou um quarto, trabalhou em casas da Baixa, do Martim Moniz ou das Portas de Santo Antão.

Retiros, casas de pasto e folhas de louro nas tabernas

Depois do trabalho ou no dia de folga, recriava-se o espírito e os convívios das aldeias nas coletividades regionais e nos seus bailes — a Casa da Comarca de Arganil, junto ao Torel, a Casa de Lafões, na Rua da Madalena, ou na Casa Ramiro José, no Campo Pequeno. Eram as aldeias na capital e os seus bailes e a ida ao futebol as grandes diversões destes jovens trabalhadores.

Já na segunda metade dos anos 70, quando João Almeida trabalhava, no Pote, saía do serviço às três da manhã — assim como os colegas de outras casas— e iam diretos à Alameda para jogar à bola de madrugada. “Não precisávamos de luz, precisávamos de bola”, lembra, concluindo que gente jovem não precisa de dormir. Outras vezes eram as diretas à espera do comboio para a linha: “os escaldões que eu apanhei por ir dormir na praia”.

É também destas histórias da sociabilidade lisboeta que se faz o seu Deliciosas Colinas. “Nas décadas de 60 e 70 a romaria começava pouco depois do almoço — os jogos antigamente jogavam-se sempre ao domingo à tarde — em direção ao velho estádio da Tapadinha, quando o Atlético jogava em casa”, escreve. No final do jogo acabavam todos a celebrar ou a chorar na sede do clube, na Rua Prior do Crato, à espera das segundas edições do Diário Popular, do Diário de Lisboa ou da Capital, que vinham já com crónicas de jogo e “o boneco dos golos”.

“Assisti a tudo isto ainda adolescente e posso dizer que a única coisa que estava a mais nessa genuína festa do povo em Alcântara era a GNR com os cavalos”, conclui.

Foto: Rita Ansone

Estas histórias cruzam-se com um retrato da restauração lisboeta, pejada de tabernas, identificadas com as folhas de louro à porta, cheiro a vinho e a fritos lá dentro, e de carvoarias que, juntavam à venda do carvão a da hortaliça, frutas e petiscos. “Veio uma certa modernidade”, relembra João Almeida, quando começaram a aparecer mais Casas de Pasto, como o Galão, em Alcântara, uma das primeiras.

“Aí já se usava o talher, era um estabelecimento entre a taberna e o restaurante (mais caro e frequentado apenas pelos mais abastados)”, conta João Almeida.

Os estabelecimentos estavam bem definidos pelo que serviam e por quem os frequentava. As cervejarias eram os sítios de beber imperial, os retiros estavam nos limites da cidade e aí ouviam-se fados; nos snack-bares respirava-se modernidade e comia-se ao balcão; os cafés como o Palladium tinham salas gigantes, tertúlias e bilhares.

“Ir a um restaurante não era barato”, recorda o então empregado na Baixa, convicto de que os restaurantes regionais eram os melhores da cidade. “Só que era barato petiscar, comer qualquer coisa, uma bifana, pipis, passarinhos que os miúdos andava a apanhar nas oliveiras e iam vender às tabernas. As pessoas que tinham essas tabernas também era pobres porque tudo era tabelado — o vinho era tabelado — alguns senhorios viviam mal. Estes estabelecimentos também eram para eles.”

Também a forma de vivenciar espaços como uma cervejaria — como define o Pote nos seus primeiros anos — era diferente, garante.

Que os telemóveis mudaram muita coisa, já sabemos, mas antes disso deu-se o advento da noite no Bairro alto e a popularização das casas de diversão noturna, nos anos 1980. Até aí, nos últimos tempos de Estado Novo, “nesta mesa de quatro podiam estar dez cadeiras todas aí à volta, todos a conversar até às três da manhã”, recorda numa das salas do Pote. João Almeida chegou aqui pouco depois do 25 de Abril de 1974 e aqui desenvolveu a arte de ser um empregado de mesa escritor.

Foto: Rita Ansone

50 anos de democracia, 49 anos de Pote

No dia da Revolução e nos tempos que se seguiram, muita gente não percebeu o que se estava a passar, considera João Almeida. “Aqui no Pote discutiu-se muito o pós-25 de Abril, vinham aqui o Melo Antunes [político, membro do MFA], o Sanches Osório [militar e fundador do Partido da Democracia Cristã, ilegalizado durante o PREC] e nós como trabalhadores ouvíamos.”

Na desorientação, tudo era possível.

“Um dia uma carrinha do COPCON para aqui à porta e qual não é o meu espanto quando vejo uma fila de jovens fardados a querer entrar de G3. Queriam beber imperiais. Disse-lhe que deixassem as armas na carrinha com alguém a guardá-las e depois podiam beber as imperiais. Ficaram aí a tarde toda”, recorda.

Com o restaurante aberto até às três da manhã era o sítio preferido para a “grande burguesia desta zona”. Juntaram-se (e juntam-se) aqui políticos, jornalistas, artistas, médicos e advogados, de João Semedo ou João Amaral a Zeferino Coelho (histórico editor de Saramago e tantos outros), Henrique Garcia, Inês Pedrosa, António Lobo Antunes ou Joel Pina, guitarrista falecido em 2021, aos 101 anos. “O Joel Pina conhecia o Pote desde quando era uma casa de fado. Um dia já com uns 100 anos vinha todo chateado porque tinha comprado um carro novo e diz-me ‘já viu que não me querem renovar a carta?”

A fachada d’O Pote, antigamente. Foto: DR

História sim, história não, João Almeida vai tratando os clientes por amigos.

“Tornar-se amigo dos clientes é bom, perdoam melhor os nossos erros — mas também pode ser mau, podem querer abusar, pôr-se demasiado à vontade”. O mais complicado para um bom empregado de mesa “não é servir o cliente, é a medida exata entre o cliente e o empregado: o equilíbrio de ser simpático sem ser cansativo.”

Apesar de ter voltado a estudar com 50 anos para completar o 12.º ano, foi nesta linha fina que aprendeu o que sabe, garante. Se os clientes vinham de lançamentos editoriais, ficava curioso para ler os livros, assistia às tertúlias e acabava por participar.

“Se nos apanhava em silêncio, aproximava-se e lançava um tema para a conversa”, conta Daniel Sampaio num dos prefácios de Deliciosas Colinas. E vai em frente: “ao longo destes anos, ouvi-o falar sobre quase tudo: política e futebol (os temas favoritos), mas também sobre o amor, a família, a amizade, a doença e a morte”. Discutivelmente, serão estes temas da grande ficção. Estaria aqui um escritor? 

Foto: Rita Ansone

O pior é o livro seguinte

Foi Luís Osório, jornalista e então diretor d’A Capital, que o desafiou primeiro livro de João. “Ele conhecia a minha vontade de ser um empregado de mesa diferenciado e pediu-me uma crónica gastronómica.” O texto não chegou ao jornal por causa da saída de Osório da direção, mas veio um incentivo: “escreva mais que isto ainda dá um livro”. Foi só o início porque, depois de Deliciosas Colinas, desejava escrever alguma coisa “com mais substrato”.

Na entrada pelo romance, com Descalços em Tempos de Botas, usou a sua história pessoal e outras semelhantes que foi conhecendo. Ainda publicou “poemas malandrecos”, a que chamou Poesia ao Gosto Popular, e o mais recente romance, lançado em 2022, é uma ficção dedicada a Lisboa e ao 25 de Abril.

Em Entre as Trevas e a Luz, uma rapariga cega, nos últimos anos do Estado Novo em Lisboa, é usada para falar da cegueira que muitos levavam então. É mais uma evocação do que viveu na capital e que termina com o ano de 1974 e um acidente que termina com a cegueira da mulher — e, portanto, de todos.

“A dificuldade de escrever o próximo livro é querer sempre escrever melhor do que os anteriores”, diz. “Será que tenho capacidade para não me envergonhar a mim e aos meus amigos?”, continua a questionar-se, sem intenções de abandonar a publicação.

No Pote, o serviço volta a acelerar perto das sete da tarde, voltam os vizinhos que se conhecem desde sempre, os filhos e os netos, além de um ou outro forasteiro. As histórias a que assiste deste lugar de boa visibilidade — o de empregado de mesa — ficam-lhe na cabeça talvez para um próximo romance.

Por agora afinca a ideia de um livro infantil para o neto. “Quando começar, aquilo é um instante, vai por ali fora — inventa-se. É como a minha amiga Maria do Rosário Pedreira a escrever letras para fados”.


Catarina Moura

Cresceu nos subúrbios e foi na cidade de Lisboa que estudou e se tornou jornalista — primeiro no Público, depois na Time Out, na Sábado. Na periferia ou no centro, procura contar histórias de pessoas e da cidade a partir da cultura e da comida.


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