Foi quando o realizador português e lisboeta Pedro Costa estava a rodar o filme No Quarto da Vanda, no antigo bairro das Fontaínhas, um bairro de autoconstrução criado por detrás das Portas de Benfica, em Lisboa, que se cruzou com um homem curioso que lhe perguntou: “Como está a correr o filme?”. Deste encontro nasceria um herói para este bairro.

Houve qualquer coisa nesse homem que o cativou: “Era um homem imponente, tinha uma espécie de dignidade que não é frequente, mas às vezes via-o muito maltratado, com sujidade, meio aluado. Impressionou-me isso, o facto de ter esses dois lados: imponente e quebrado”.

Pedro Costa e Ventura no Festival de Cannes em 2006. Foto: Daniel Deme/EPA/Shutterstock Credit: Daniel Deme/EPA/Shutterstock

O seu nome é Ventura, por todos conhecido nesse antigo bairro, um dos muitos de autoconstrução que surgiram nas Portas de Benfica ao longo dos anos 80 e 90.

Hoje, é também umas das caras mais famosas de um outro bairro, onde a população das Fontaínhas foi realojada entre 2001 e 2004 por conta da construção da CRIL (Circular Regional Interior de Lisboa): o Casal da Boba, na Amadora.

Mas Ventura não é só famoso por ser esse homem imponente das Fontaínhas e do Casal da Boba. Afinal, ele é um dos heróis dos filmes de Pedro Costa: graças ao sucesso do filme “Juventude em Marcha”, realizado em 2006, com a história sobre o fim das Fontaínhas como protagonista, mas também Ventura, o recém ator atravessou a fronteira do seu bairro e aterrou no Festival de Cinema de Cannes, um dos maiores do mundo para a sétima arte.

Ventura lembra-se da confusão de “muita gente” e, mais surpreendente ainda, de ser abordado por Samuel L. Jackson. A carreira de ator prosseguiu: entretanto, para além de curtas-metragens, integrou o elenco dos filmes “Cavalo Dinheiro” e “Vitalina Varela”, tudo obras do realizador Pedro Costa.

Mas que história é esta que une dois homens aparentemente tão diferentes e, no entanto, tão parecidos? Numa entrevista em Cannes ao jornal Público, Pedro Costa respondia: “Há uma identificação, até uma semelhança…É os olhos, acho eu.” 

Dois homens chegam ao Bairro das Fontaínhas 

Ventura nasceu nos anos 50, na ilha de Santiago, em Cabo Verde. Mas o passado dele está envolto em algum mistério, diz Pedro Costa. “O Ventura tem problemas de saúde, física e mental, e na juventude passou por hospitais e psiquiatras…”.

Ventura conta como, em muito jovem, chegou a dar aulas na sua terra. “Gostava de ser professor, tinha oito alunos na sala”, recorda ele.

Nos anos 70, emigra para Portugal, deixando para trás a namorada, Zulmira, para procurar uma vida melhor. Aqui, acaba por ir trabalhar para a construção civil.

E, durante uns tempos, terá vivido numa caserna com outros homens, até chegar ao Bairro das Fontaínhas, esse bairro nas Portas de Benfica onde se instalaram outras tantas pessoas vindas do interior do país e alguns imigrantes africanos.

“Construí a minha casa”, diz ele, com materiais que a construtora onde trabalhava lhe foi cedendo. Entretanto, casou-se por procuração com Zulmira, que viajou de Cabo Verde para Lisboa.

O Bairro das Fontaínhas.

Mas se esta é a história que trouxe Ventura às Fontaínhas, a história de Pedro Costa é bem diferente. Também nascido na década de 50, em Lisboa, a paixão pelo cinema levou-o nos anos 90 ao país de Ventura, Cabo Verde. Foi na Ilha do Fogo que realizou o filme “Casa de Lava”. E foi lá que ouviu falar pela primeira vez no Bairro das Fontaínhas: 

“No dia em que nos preparávamos para voltar para Portugal, várias pessoas, sobretudo mulheres, deram-me a mim e à equipa sacos e prendas que queriam que nós déssemos a familiares emigrados.”

É que muitos deles viviam neste bairro às portas da cidade.

Pedro ainda se lembra da primeira ida às Fontaínhas: “Era um bairro de lata muito pronunciado, via-se que era um sítio difícil e complicado, e até relativamente perigoso para forasteiros.” 

Ao entrar no bairro com um colega, foram imediatamente abordados, perguntando-lhes o que procuravam. Com o tempo passado em Cabo Verde, Pedro e o colega tinham aprendido a dominar uma outra língua: o crioulo. A sabedoria valeu-lhes depois: para surpresa dos que os inquiriam, responderam nesse outro idioma. “A cara dos rapazes foi extraordinária!”, diz Pedro.

Ninguém esperava que dois brancos falassem a língua que mais se ouvia por ali. E, a partir daqui, convidaram-nos para comer e beber com eles, para conhecerem as pessoas do bairro.

“Fiquei embevecido com aquelas pessoas e com aquele sítio que, apesar de ser o que era: sujo, pobre, duríssimo, encantou-me… Passei a ir para lá todos os dias, e a ficar por ali.” 

O abandonar de um bairro 

O cartaz oficial do filme “Juventude em Marcha”

Pouco tempo depois de chegar às Fontaínhas, Ventura reformou-se. “Há um mistério grande, houve um acidente de trabalho. Não se sabe bem o que aconteceu, mas o Ventura teve hospitalizações várias, tem cicatrizes muito longas…”, diz Pedro Costa.

Por isso, Ventura cedo se viu desocupado, até ao dia em que o realizador de cinema, que já imortalizara as Fontaínhas nos filmes “O Quarto da Vanda” e “Ossos”, o encontrou e lhe propôs fazer um filme: o “Juventude em Marcha”, de 2006.

“Comecei a ver o Ventura, ele andava muito por ali, sempre desocupado…”, recorda Pedro. O realizador falou com Zulmira, a mulher de Ventura, que achou logo uma boa ideia de o tornar parte do elenco: “A Zulmira disse que sim, se calhar até ia ser bom para ele, já que ele andava muito desocupado…”.

A ideia de um novo filme coincidiu com a altura da demolição do Bairro das Fontaínhas e o realojamento, ao abrigo do programa PER (Programa Especial de Realojamento), com a população distribuídas pelo Casal da Boba, pelo Zambujal e pelo Casal da Mira.

ventura Pedro Costa juventude em marcha
Ventura recorda o processo de realojamento da população das Fontaínhas. Foto: Ismael Andrade

A primeira vez que Pedro Costa foi ao Casal da Boba foi, aliás, na companhia de Ventura e de Zulmira. “As casas, enfim… O Ventura é muito crítico, são casas pobres para os pobres”, diz Pedro Costa. “As casas foram construídas na maior lixeira de Lisboa. Restam sempre resíduos, toxicidades naquele terreno… Para além disso, é o ponto mais alto da Amadora, e mais ventoso, com acessos difíceis.” 

Com o realojamento, a população foi separada. Muitos amigos e familiares passaram a viver longe uns dos outros. “A comunidade, apesar de ser pequena, é frágil, e foi estilhaçada, rebentada…”, lembra Pedro Costa.

“O que é muito trágico é que é fácil encontrar uma senhora mais idosa no Casal da Boba que diga: ‘que saudades que eu tenho da minha barraca’. É realmente horrível: eram os ratos, os esgotos, era tudo… mas era a comunidade, a solidariedade, a partilha, a vizinhança.”

José Maria Baessa de Pina, mais conhecido por “Sinho”, da Associação Cavaleiros São Brás, passou por esse processo: “O realojamento foi morrer e voltar a nascer. É agressivo. Não há acompanhamento, não estás preparado para mudar de casa, perdem-se as relações comunitárias. As pessoas não tiveram acompanhamento psicológico.” 

Ventura e “Sinho”. Foto: Ismael Andrade

A “Juventude em Marcha”

“Juventude em Marcha”, o primeiro filme que Ventura protagoniza, foi filmado entre o Casal da Boba, as ruínas das Fontainhas e o Bairro 6 de Maio, na Amadora – que demoraria anos até ser completamente demolido.

É um filme que recorda as mudanças vividas no seio da comunidade que se instalou no Bairro das Fontaínhas, através da história de um imigrante cabo-verdiano que chega ao bairro e assiste à sua demolição. Ele é Ventura.

‘Juventude Em Marcha‘ é a história fantasiada do primeiro imigrante que chega às Portas de Benfica e começa a trabalhar. Depois, começámos a desenvolver, a ouvir histórias, pormenores e coisas reais da sociologia do bairro, da história da imigração”, conta Pedro.

À semelhança dos filmes anteriores filmados nas Fontaínhas, as filmagens aconteceram sem guião, numa lógica em que “tudo pode entrar”. As histórias contadas por Ventura foram, por isso, fundamentais. “O Ventura tem esse lado: mais misterioso, toda a gente sente, um silêncio, uma parte que é muito negra…  Tudo o que dizia acabava por se incluir no filme por ser significativo, ele participou muito.” 

O filme arrecadou vários prémios e foi nomeado para a Palma d’Ouro no Festival de Cannes. Mais do que isso, conseguiu uma proeza: levar a memória das Fontaínhas ao resto do mundo. “São memórias com a fantasia do Pedro. O Pedro incluiu-nos e o nome das Fontaínhas vai a todo o lado”, diz “Sinho”.

Olhando para trás, Ventura partilha que o trabalho de ator foi “difícil”, mas não se coíbe de afirmar, com todo o orgulho: “Eu sou o ator principal!”.

Os outros filmes de Ventura 

“Juventude em Marcha” foi o início de uma colaboração entre Pedro Costa e Ventura, que já vai longa. Para além de ter integrado o elenco de algumas curtas-metragens, Ventura é também protagonista do filme “Cavalo Dinheiro”, realizado em 2014.

Na apresentação desse filme no Festival de Cinema de Locarno, Pedro Costa contava como, em conversas com Ventura, se apercebera que, no 25 de Abril de 1974, ele e Ventura estariam em lugares físicos muito próximos um do outro, mas a experiência vivida da revolução foi muito diferente para cada um deles:

O realizador Pedro Costa.

“O que acontece é que, porque sou quase da idade do Ventura, nós estávamos praticamente no mesmo lugar quando se deu a revolução. Eu tive sorte porque era um jovem na revolução e estava a descobrir muitas coisas novas: a música, a política, o cinema, as raparigas… (…) Demorei trinta, quarenta anos, para descobrir que este meu amigo, o Ventura, tinha estado no mesmo lugar, a chorar, e com medo daquilo que eu estava a fazer, do que os soldados estavam a fazer, por isso isto é interessante: eu estava a gritar slogans, as palavras revolucionárias comuns, e ele estava a esconder-se nos arbustos com os seus camaradas, negros imigrantes que já estavam no país há algum tempo (…).”

Em 2019, estreava-se um novo filme, desta vez protagonizado por Vitalina Varela, uma também moradora do Bairro das Fontaínhas que dá nome ao filme. Nele, Ventura desempenha o papel de um padre. “O Ventura um dia contou-me a história de um padre em Cabo Verde que perdera a fé”, diz o realizador. E isso deu uma história para o ecrã.

São essas histórias, as conversas com os atores, que Pedro mais valoriza no processo. “Não filmar é tão importante quanto filmar. É a espera, o ouvir, o passear, as coisas às quais as pessoas não dão importância, a repetição, o segredo…”. 

O futuro do cinema de Pedro Costa

Tanto tempo passado desde que entrou nas Fontaínhas pela primeira vez, Pedro Costa não quer abandonar esta comunidade, nem deixar de fazer filmes sobre ela. Mas, numa entrevista de 2009 para o Público, dizia: “Temos um problema, que eles [os moradores do Casal da Boba] me puseram entretanto. Depois do ‘Juventude em Marcha’, quando propus fazer umas curtas, eles, entre os quais o Ventura, disseram-me: ‘outra historieta aqui na Boba não’.”

E, por isso, Pedro sabe que o próximo filme não será sobre as Fontaínhas ou o realojamento, sobre os quais já muito documentou.

O que se segue então? “Começámos a mudar-nos para uns baldios, atrás do Casal da Boba, para um parque onde se faz jogging. Atravessámos a rua e filmámos nos bosques. Já ninguém quer estar nas casas e senti que estávamos todos a voltar para trás, para uma coisa que já se perdeu…”.

Casal da Boba, na Amadora. Foto: Inês Leote

“Eles acabaram por perder o país, Cabo Verde, e perderam o bairro deles, e agora estão numa espécie de… limbo, numa espécie de espera. Há uma falta de horizonte, ninguém espera nada…”.

É esse sentimento que o faz crer que o próximo filme será um regresso “ao princípio”, às raízes, a Cabo Verde. “Haverá uma parte para o Ventura e para a Vitalina, mas também para as pessoas mais novas. Há umas raparigas, de novas gerações, cheias de energia e muito engraçadas.”

Uma nova geração, herdeira do passado do Bairro das Fontaínhas, que emerge para dar vida ao Casal da Boba.



Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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Ismael Andrade

Nascido em Lisboa, Ismael Andrade, desde cedo desenvolveu um olhar aguçado para os detalhes ao seu redor. Tem uma grande paixão pela fotografia, que floresceu ainda na infância e que se manteve até hoje. Está a estagiar na Associação Cavaleiros de São Brás, no Casal da Boba, na Amadora, e foi lá que se tornou um dos correspondentes do Projeto Narrativas, da Mensagem.

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