Os ulmeiros são conhecidos pela resistência, árvores que fixas solidamente as suas raízes na terra e lá permanecem por anos, atravessando os séculos, testemunhas dos tempos. O alfarrabista José Antunes Ribeiro talvez não tivesse consciência dessa peculiaridade botânica, mas acabou por cumprir o adágio latino nomen est omen (que significa: o destino está no nome) quando decidiu batizar de Ulmeiro a sua livraria.

Fundada em 1969, a Ulmeiro fixou raízes em Benfica, sendo ao mesmo tempo testemunha e personagem da história cultural e política de Lisboa por cinco décadas, até assumir o papel de vítima dessa mesma história recente portuguesa: em 2019, foi desalojada pela especulação imobiliária do prédio onde estava.

Porém, assim como os ulmeiros, a livraria mostrou resiliência às intempéries e voltará a abrir as portas no bairro em que nasceu, após cinco anos de funcionamento no lado oriental de Lisboa.

A estante abarrotada de livros na antiga Ulmeiro, cenário para as fotos da reportagem, agora com retorno garantido a Benfica. Foto: Líbia Florentino.

A livraria que nunca deixou o bairro

O convite partiu da Junta de Freguesia de Benfica, que arcará com o arrendamento do espaço no número 19 da avenida do Uruguai, a poucos metros do antigo endereço.

“Sinceramente, não contava regressar a Benfica, mas vejo com bons olhos, pois dá-me muito jeito ficar por aqui”, diz José Antunes Ribeiro, sem esconder a alegria de voltar a ser vizinho da sua livraria.

Aos 81 anos, o alfarrabista é morador da mesma avenida do Uruguai e ressentia-se dos longos deslocamentos até a Fábrica Braço de Prata, que abrigou a maior parte do acervo da Ulmeiro ao fechar das portas. Em forma de gratidão pelo acolhimento, a livraria continuará a funcionar no espaço cultural no Beato mesmo após o retorno da matriz a Benfica.

Um retorno “físico” ao bairro de origem, que fique claro, pois a Ulmeiro nunca deixou de participar na vida cultural da freguesia. “Mesmo após irmos para a Braço de Prata, continuámos a colaborar em ações com a junta, em mercados culturais e tertúlias no Palácio Baldaya”, ressalta o alfarrabista. 

Essa relação estreita acabou por cimentar o regresso da Ulmeiro às raízes, concretizada no último dia 24 de novembro com a assinatura do contrato de arrendamento. “Palavra dada é palavra cumprida”, comemorou nas redes sociais o presidente da Junta de Freguesia de Benfica, Ricardo Marques, satisfeito em honrar um compromisso feito com os fregueses.

José Antunes Ribeiro por entre os livros da antiga Ulmeiro: “Não esperava voltar, mas estou muito feliz”. Foto: Líbia Florentino.

Ainda não há data definida para a reabertura, mas se depender de José Antunes Ribeiro, o dia 21 de março seria uma opção, não só por marcar o início da primavera, quando os ulmeiros estão no apogeu de sua exuberância. “Além disso, é o Dia Mundial da Árvore”, explica o alfarrabista, que aponta o 23 de abril, o Dia Mundial do Livro, como outra alternativa.

Abril, mês da primavera, do livro, mas também de um acontecimento importante na história da livraria.

O refúgio a Zeca Afonso no 25 de Abril

Corria o ano de 1974 e, em meados de abril, o cantor Zeca Afonso continuava a ser alvo da atenção do Estado Novo. Um ano antes, já tinha sido detido pela PIDE e preso em Caxias entre abril e maio, e agora voltava a ser procurado pela polícia política em constantes idas às sua residência.

“Uma semana antes do 25 de Abril, o Zeca Afonso veio ter connosco. Era arriscado voltar para a casa dele. O Zeca costumava ir na Ulmeiro, fez inclusive um concerto na cave da livraria. Precisava de um abrigo e passou alguns dias entre a nossa casa e a cave. Foi dessa forma que ficou a noite do 25 de Abril por lá”, recorda-se José Antunes Ribeiro, do histórico dia em que o autor da música-senha da revolução ouviu-a tocar por entre os livros da Ulmeiro. 

A cave da antiga Ulmeiro era conhecida por receber eventos culturais, aos moldes do que ocorria noutras livrarias, como a Barata, na avenida de Roma. Antes de Abril, servia de espaço para reuniões entre ativistas culturais e, claro, conspiradores, que nas entrelinhas de livros proibidos e dos refrões das canções de protesto, conseguiam passar a palavra.

“Continuou uma área de encontro mesmo depois do 25 de Abril, até os livros invadirem o espaço e ocupar tudo com aquela densa floresta”, conta o alfarrabista.

Uma cave que é ponto de cultura

A nova Ulmeiro também terá uma cave com 80 metros quadrados, quase metade dos 140 metros de área da original. Apesar da redução do espaço, a intenção é repetir a fórmula original e utilizar a cave como galeria de arte e para receber tertúlias, lançamentos de livros e outros eventos. 

Para gerir esse novo espaço com um passado histórico, previsto também para receber periódicos debates temáticos sobre arte, cinema e, claro, literatura, José Antunes Ribeiro convidou o fotógrafo Armando Cardoso e o artista plástico Hugo Beja.

A livraria per se funcionará no rés-do-chão da nova Ulmeiro, um espaço ainda proporcionalmente menor, com 28 metros quadrados, em relação aos 140 metros de superfície da original. Como grande parte do acervo permanecerá no Beato, o alfarrabista pretende repatriar os livros espalhados em armazéns e na casa dos parentes.

Os parentes que mais do que nunca já fazem parte da floresta de ulmeiros.

Um sonho nas mãos de uma família

As fotografias desta reportagem foram feitas na véspera do fechar da Ulmeiro original. Nela, vê-se registado a arquitetura do caos – que, segundo Saramago, era uma espécie de ordem ainda a ser decifrada – da antiga livraria, montanhas de livros, acompanhadas de alguns personagens que ajudaram a construir a história da mítica livraria.

Na memória de um tempo, entre o “caos” dos livros, a antiga companheira Lúcia, “peça importante”, folheia uma das edições. Foto: Líbia Florentino.

Uma dessas personagens é a companheira de José Antunes Ribeiro, Lúcia Ribeiro, falecida pouco tempo após a saída da Ulmeiro de Benfica.

“A querida Lúcia foi uma peça muito importante na livraria. Foi sempre muito mais formiga, enquanto fazia o papel de cigarra”, recorre à fábula o livreiro, para sintetizar o “era uma vez” da Ulmeiro.

Nas fotografias, como nas histórias de Lewis Carroll, vê-se passear um gato de pelo castanho e olhar emblemático. “É o célebre gato Salvador”, recorda o livreiro, sobre o animal de estimação da livraria, famoso entre os clientes, principalmente, as crianças.

O felino também já não circula entre os tomos nem entre nós. “Morreu cedo para um gato, aos dez anos”, pontua, para em seguida revelar que a nova livraria pode ganhar um novo mascote. “Um outro gato, que chegue ainda novo, para se habituar a não sair para a rua nem afiar as garras nos livros”, diverte-se.

O gato Salvador, mascote da antiga, já não mais circula entre os livros. Nova versão também terá direito a um novo felino. Foto: Líbia Florentino.

Se duas personagens afetivas da trajetória da Ulmeiro já não estão mais fisicamente presentes, duas outras passaram a fazer parte da família da livraria. Literalmente, da família: a filha de José Antunes Ribeiro, a artista plástica Ana Sofia, e a neta dele, Maria Ribeiro, prestes a graduar-se em Letras pela Faculdade de Lisboa.

Caberá às duas descendentes na árvore genealógica da Ulmeiro levar à frente não apenas a livraria, mas um sonho, um estado de espírito.

Uma tranquilidade que só se conquista com o tempo, um prémio para quem, assim como a livraria e o mundo na órbita que criou, se torna também ele prova viva do adágio nomen est omen, o nome como um sinal: desde setembro, José Antunes Ribeiro é também o nome de uma biblioteca pública, em Alburitel, a vila onde nasceu. 

O novo equipamento foi inaugurado na antiga escola onde o filho estudou na infância, hoje sede da Junta de Freguesia de Alburitel. “Era onde antes também estacionava a carrinha da biblioteca volante da Gulbenkian”, recorda-se o alfarrabista, das tardes passadas por entre os livros que vinham de Lisboa.

O alfarrabista agora eternizado também como nome de uma biblioteca na vila natal. Foto: Líbia Florentino.

O menino entre os livros refletido no senhor que continua entres os livros, uma vida dedicada ao poder da literatura e a certeza de que assim será no passar dos próximos anos, décadas – sempre presente, como são os ulmeiros.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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2 Comentários

  1. A Ulmeiro voltar a abrir portas na Av. do Uruguai, é uma boa notícia. Parabéns à Junta de Freguesia de Benfica por ter dado esse apoio. As boas acções é para serem aplaudidas, sejam quais forem os seus agentes. Neste caso é a Junta de Freguesia de Benfica que deve ser aplaudida, já que teve uma boa iniciativa. Portanto, Parabéns.

  2. A Ulmeiro voltar a abrir portas na Av. do Uruguai, é uma boa notícia. Parabéns à Junta de Freguesia de Benfica por ter dado esse apoio. As boas acções é para serem aplaudidas, sejam quais forem os seus agentes. Neste caso é a Junta de Freguesia de Benfica que deve ser aplaudida, já que teve uma boa iniciativa. Portanto, Parabéns.

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