O meu tesouro era aquela janela, a da sala da minha avó. Nela cabia tudo.

Era o primeiro relance para a chegada do meu tio com o meu bolo preferido e para o carteiro, que se surpreendia com uma porta sempre aberta. Naquela janela, que às vezes mais parecia um quadro para o mundo, cabia mesmo tudo – as memórias antes de o serem, a bicicleta desse meu tio, a mota do meu pai, a carrinha dos gelados e os miúdos da vizinhança.

Vizinhos a quem eu trocava sempre o nome. Os que regressavam a casa com sacos de pão guloso debaixo dos braços e que saíam do cabeleireiro e entravam no carro com a mesma pressa (mas com cuidado para não prender o vestido). Mas também os mais velhos que queimavam pneu estrada acima no seu novo “motaço”. E os putos com um chupa chups numa mão e a mãe na outra.

Era um terceiro andar, em Portimão, de onde ouvi pela primeira vez os sons do amolador e da máquina sopradora de folhas que limpava os passeios. Conheci ali os gritos da vizinha que ralhava com o cão e os dos meus companheiros da bola: “Ó dona Rosa! A Inês não vem?”

Foi dessa janela que ouvi e vi um relâmpago pela primeira vez. E onde percebi que a Lua também aparecia durante o dia. Só não me lembro de alguma vez ter contado estrelas – como Sara Correia, a fadista, diz ter contado a partir do seu terceiro andar em Chelas.

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Por sorte, havia uma carta celeste a ser traçada a mais ou menos a 300 quilómetros, numa mesa de cozinha idêntica à da minha avó. Foi escrita a partir de um idêntico terceiro andar, na rua Manuel Teixeira Gomes, uma rua de Chelas com nome de um portimonense ex-Presidente da República. E ela chamava-se Sara, a autora das constelações. O apelido? Igual ao da minha avó: Correia. Profissão: cantar – ontem, para as varandas do seu bairro, num showcase organizado dois dias antes do lançamento do novo álbum dela, “Liberdade”.

Mesmo no meio de tanta coincidência, durante anos vivemos com meio Portugal a separar-nos. Além de que eu morava no centro da cidade, onde tudo acontecia, e em Chelas é difícil encontrar a liberdade para fazer acontecer.

A distância não era só no mapa. Entre mim e a Sara há sete anos de diferença e uma história de gerações por contar. Há vozes ouvidas de um lado, mal interpretadas do outro. Da minha janela, a noite não assustava ninguém. Em Chelas, era difícil libertarem-se desse estigma.

Havia moradores que queriam ser donos do seu próprio nome, gritá-lo aos ventos, e não podiam. E ainda sentem que não podem apenas e só porque vêm do bairro, porque são de Chelas.

A Chelas onde eu ontem, ao ver a Sara, caí em mim: afinal, na janela da minha infância não coube tudo. Coube um quase nada.

Do seu terceiro andar, a Sara via “prédios de todas as cores, via gente e sabia dos seus horrores”. “Via a pobreza e a noite escura.” E quando a polícia chegava ao bairro, nem à janela podia estar.

A liberdade dela acabava com o fechar obrigatório das persianas.

E o que é de um bairro onde o sol não nasce, mas onde o dia de trabalho tem de começar? Um bairro onde há fogões sem gás, campainhas que não tocam e elevadores que obrigam os mais velhos a subir 5 andares pelas escadas? Um bairro onde a paz e a saúde mental se encontra nos amigos, mas onde um grupo de amigos assusta e por isso têm de dispersar?

E esse bairro não é só Chelas. “São todos os bairros pelo mundo”, como lembra a menina das estrelas. E para que todos possam ser ouvidos, a Sara vai cantá-los.

A 11 de outubro, a noite escura ganhou um tom roxo. Fechou as persianas do seu terceiro andar, saiu de casa e trouxe com ela toda a Liberdade. Cantou para um largo cheio – o largo que sempre viu lá de cima.

Por uma noite, foi Chelas que viu Sara da janela. E as estrelas que ela contava uniram-se, como constelações.

O meu terceiro andar nunca teve vista para Chelas. Até hoje.


Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.


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