
A máquina de expresso derrama na chávena o café tão fumegante quanto a pizza que sai do forno. Dois rapazes no balcão aguardam pela picanha e o kebab, indecisos sobre qual será a sobremesa entre a miríade dos curiosos doces indianos. Ao fundo, ouve-se a batida do cutelo do talhante em ação, enquanto uma fila de clientes com produtos à mão estende-se no caixa.
Cafetaria, pizzaria, churrasqueira, kebab, talho e mercearia – tudo em todo o lado e ao mesmo tempo, como no filme vencedor do Óscar deste ano. Um multiverso de serviços à disposição do lisboeta que cruzar o número 284 da rua da Palma a caminho do Intendente, não dispostos num mercado ou centro comercial, mas concentrados numa mesma loja: a Sher-e-Punjab.
Uma loja que é também um mundo.

Um mundo que a indiana Tarundeep Kaur, a Tanu, diariamente vê desfilar diante dos seus olhos, do ponto de observação no balcão da cafetaria.
De lá, observa o vai e vem das raparigas de trajes indianos a puxarem crianças birrentas pelas mãos, dos homens de turbantes e semblantes sérios, dos operários de fato macaco salpicados de tinta e mini na mão, das senhoras de vestido preto, o rosto coalhado de rugas e o luto eterno, e dos turistas, centenas deles, abastecendo-se para mais um dia de expedição por Lisboa.
No alto, sobre o balcão, na televisão com o volume um ou dois tons acima, um rapper de penteado giro e um casaco extravagante dança e canta em hindi, a banda sonora de tudo.
Desde dezembro de 2021, quando decidiu trocar Punjab por Lisboa, tem sido esse o mundo de Tanu. Um mundo onde se sente feliz. “Portugal tem bom tempo e boas pessoas”, resume a indiana de 29 anos em bom português, idioma que aprendeu em tempo recorde, ali mesmo, no balcão do Sher-e-Punjab, cafetaria, pizzaria, churrasqueira, talho e mercearia.
E que, para Tanu, agora é também escola.
O documentário da Netflix que motivou a vinda a Lisboa
Pensar que o sítio de trabalho é também uma escola conforta Tanu. Professora de inglês para adultos em Punjab, a sala de aula foi seu habitat até um certo dia em que Lisboa surgiu insinuante, com as suas cores e vivacidade, no ecrã da televisão. “A verdade é que decidi vir para Portugal por causa de um documentário da Netflix”, revela, entre risos.
Naquela época, a ideia de migrar já rondava Tanu.
“Procurava um futuro melhor, melhores oportunidades do que tinha em Punjab. Até então, estava disposta a ir para o Canadá, mas quando vi Lisboa no documentário na televisão, mudei os planos”, conta, enquanto organiza na montra do balcão as bandejas com jalebis, barfis e laddus e outros doces indianos.
A partir daí, seguiu-se o guião do costume: a viagem como turista para Lisboa, os primeiros contactos com a cidade e a comunidade indiana, especialmente os imigrantes vindos de Punjab.
Dois meses depois, Tanu estava certa de que o documentário da Netflix tinha sido um bom sinal. Faltava apenas conseguir um trabalho.
É aí que entra o Sher-e-Punjab.
“Aqui foi o primeiro sítio em que procurei emprego. Bati à porta, falei com o patrão e no outro dia já estava a trabalhar”, lembra-se Tanu, que menos de dois anos depois de aterrar, mudou definitivamente o estatuto de turista para residente. É agora mais uma lisboeta que, como tantos outros lisboetas, só encontrou um lugar para morar na Margem Sul, no Barreiro.

A dificuldade em conseguir uma casa, inclusive, é uma das poucas queixas que a indiana faz ao documentário da Netflix.
“Hoje, percebo que o filme falou 80% da verdade. Não mencionou as dificuldades de encontrar casa nem a alta inflação”, critica a telespectadora atenta. “Com o valor da renda e os preços das coisas a subirem, o salário mínimo não dá conta.”
Tanu só conseguiu escapar da rotina de viver num quarto e ter uma casa após a chegada do pai e do irmão, decididos em seguirem os passos dela e migrarem para Lisboa – com o que recebem como motoristas de aplicação, ajudam no orçamento para que a família divida um T2.
Os “senãos” em relação ao exibido no documentário, porém, não tiram o brilho da decisão de viver em Lisboa. Tanu diz que somados a ida a pé até a estação do Barreiro, a travessia do rio e a viagem de metro, costuma levar menos de meia hora para chegar ao restaurante.
Mulher, indiana e profissional
O novo idioma, a professora de inglês conseguiu também tirar de letra. Da necessidade de atender os clientes portugueses e brasileiros, seja no balcão da cafetaria, na caixa da mercearia ou no talho, Tanu fez as suas lições diárias. E, em menos de dois anos, tornou-se praticamente fluente em português.

A maior dificuldade na adaptação, curiosamente, foi mais com “números” do que palavras. “Não conseguia entender nem falar catorze ou quinze”, conta, entre risos, a indiana que após mais de um ano a aprender de ouvido o novo idioma no balcão do Sher-e-Punjab, já está tão íntima dos números em português que pronuncia o treze bem à portuguesa: “treuze”.
Mais complicado do que se comunicar, foi dominar o universo da cafetaria portuguesa e os seus pormenores. “Ora um cliente pedia um café, ora uma bica. Não entendia nada, até uma mulher ter a paciência e me explicar serem a mesma coisa”, diverte-se. Hoje, Tanu tira cafés (e bicas) e não se embaraça entre garotos, pingados e abatanados, com o um sem princípios.
Confiante e proativa, Tanu aos poucos tornou-se numa espécie de braço-direito do patrão. Do balcão, ao som do rapper de penteado giro e casaco extravagante na televisão, gere a cafetaria, os pedidos de pizzas, kebabs e frangos e picanhas, preparados na compacta cozinha panorâmica, que é possível acompanhar através de uma montra.

A única exceção é talhar as carnes, pois apesar de a gestão do Sher-e-Punjab, como o nome sugere, ser de orientação religiosa sikh, o corte de abate do estabelecimento é ao estilo muçulmano halal. Isso não é empecilho, contudo, para que Tanu também não ajude o talhante no atendimento, quando a fila diante do balcão começa a alongar-se.
“Aqui, todo mundo é um pouco faz-tudo”, resume Tanu, que já não sabe quantas vezes foi questionada por um cliente surpreso sobre ser permitido a uma mulher indiana trabalhar assim – batom nos lábios e brincos coloridos, tão independente, quase que como a gerir um negócio.
“Isso é uma visão do passado. Talvez em uma ou duas províncias da Índia ainda limite a participação feminina ou se a própria mulher aceitar e se comportar dessa forma. Mas, em Punjab, as mulheres já trabalham no comércio, nas escolas, nos mesmos locais onde todos trabalham”, explica.
O pequeno sino tocado pelo pizzaiolo bangali avisa que mais uma pizza está pronta. “Foi treinado pelos italianos, na Itália”, avisa Tanu, sobre o currículo do homem de sorriso simpático a segurar a curiosa pizza de sabor kebab na bandeja de metal, que num piscar de olhos passa para as mãos de Tanu, para que sirva o casal de turistas sentados na esplanada.
O tigre de Punjab que ruge alto no Intendente
O novo mundo de Tanu abriu as portas em 2021. A ideia de concentrar tantas opções de serviço num mesmo espaço foi do comerciante Gurpreet Singh Saran – ou simplesmente Bittu, como indica a placa dourada pendurada no cordão igualmente dourado que o indiano de 39 anos, compatriota de Tanu, traz pendurado ao peito.

O Sher-e-Punjab é o resultado de anos de experiência de Bittu em pequenos negócios: uma frutaria, um talho, um mercado de especiarias e uma mercearia, que geriu desde 2012, quando chegou em Lisboa, após um período a trabalhar em obras na Inglaterra. “Como já tinha tido vários comércios, decidi reunir tudo num só lugar”, resume o patrão.
Ou como bem frisou em inglês: “everything in one roof“.
A ideia foi motivada pelo tamanho da loja de 340 metros quadrados. “Quando comprei a loja, fiquei a olhar o tamanho e pensei comigo: ‘eh, pá, loja grande‘. Aí, resolvi abrir junto com a mercearia um talho e um restaurante. Depois, como ainda havia espaço, tive a ideia do café.”
O ambiente um bocadinho caótico, mas funcional, é dividido entre o balcão da cafetaria e o caixa da mercearia logo na entrada, além de um pequeno espaço com quatro mesas em anexo. Em seguida, surgem as prateleiras e gôndolas da mercearia, ladeadas por pilhas de sacos de vinte quilos de arroz basmati. Por fim, no fundo da loja, está o talho.
O talho com o corte halal, por sinal, é um ponto que parece destoar da cultura sikh e hindu, tradicionalmente vegetariana. Bittu justifica com um argumento tão ancestral quanto as religiões e muito mais poderoso ainda: o comercial.
“Há muitos muçulmanos no bairro e o português vêm porque o preço é bom. Se o halal serve para os dois, melhor”, explica.
Os diferentes tipos de negócios, obviamente, exigem um esforço de gestão. Literalmente. A partir das dez da noite, quando a licença exige o encerramento da mercearia, os funcionários desdobram um imenso biombo branco e encerram parte do espaço, que passa a operar apenas com a restauração, até à meia-noite.
Parte da decoração do Sher-e-Punjab é pintada em tons cítricos em verde, amarelo e laranja. “Foi ideia de um brasileiro”, conta Bittu. “Era um pintor da Bahia. Quando veio pintar a loja, perguntou qual seria a cor e não soube dizer. E ele disse que no Brasil a moda era tudo colorido. Concordei e ficou bonito, pá”, aprova.
Nas paredes pintadas em festivos tons baianos, reina a efígie de um feroz tigre, a logomarca da loja. “É o Tigre de Punjab”, explica Bittu, ou Sher-e-Punjab em hindi, uma homenagem ao marajá Ranjit Singh, também chamado de o “Leão de Punjab”, que no século 18 fundou o império Sikh.

Com catorze funcionários entre indianos, bengalis e nepaleses, o tigre de Punjab que ruge alto no Intendente e antes achava a loja granda, parece precisar de mais espaço. Os planos de Bittu são de abrir uma filial ainda maior em Odivelas. “A comunidade é muito grande lá, pá”, justifica o comerciante, coçando novamente o seu penteado giro dos rappers da televisão.
Segura e bem-vinda em Lisboa
Tanu dedica alguns minutos da pausa no trabalho para posar para as fotografias desta reportagem. O sorriso aberto e afável, porém, não é capaz de esconder o cansaço. “O trabalho é diferente do trabalho na escola”, explica a professora. “Lá, cansava mais a cabeça. Aqui, cansa mais o corpo. São muitas horas em pé”, continua.

O cansaço e o desejo que vê distanciar-se da ideia de um dia voltar a ensinar não desencorajam Tanu, que reforça o sorriso para a câmara. Apesar do documentário da Netflix não ter falado do salário mínimo e das dificuldades de encontrar casa, a indiana reforça que mesmo se antes soubesse de tudo, ainda sim, viria para Portugal.
Uma certeza reforçada pela forma como foi acolhida em Lisboa.
“O povo português não faz diferença se a pessoa é indiana ou não. Sinto-me segura e bem-vinda aqui”, garante Tanu, antes de voltar ao seu ponto de observação, por trás do balcão da cafetaria, no exato momento em que uma cliente portuguesa entra na loja e a cumprimenta com um “boa tarde, vizinha”.
E a vizinha Tanu volta a sorrir, feliz no seu mundo, embalada pelo refrão do rapper de casaco extravagante que canta no ecrã.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt

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