Na entrada, um coelho branco dá as boas-vindas, como nas aventuras de Alice no País das Maravilhas. Pois percorrer os corredores deste mercado em Arroios é como um convite a maravilhar-se, com a vantagem de que, neste pequeno país em Lisboa, não há uma neurótica rainha ansiosa em cortar cabeças, e sim anfitriões afáveis e cervejas artesanais sob a sombra de frondosas laranjeiras.
Desde abril, o prédio de dois andares no número 23 na rua Carlos Mardel recebe o Mercado Pop Up do Emaús: uma experiência que vai além do mercantilismo tradicional, transformando a fria transação de compra e venda numa calorosa relação entre vizinhos, ao ponto de os preços nas etiquetas serem convertidos de euros numa moeda chamada “afeto”.
Assim, com cinco, dez, vinte afetos, é possível dar a móveis, livros, discos, roupas, acessórios e tantos outros objetos doados e recondicionados a oportunidade de uma segunda vida.
E não só.

Raízes francesas a florescerem em Portugal
Ophelia e Humberto são as caras que nos recebem neste museu de afetos.
Aos 32 anos, a francesa Ophelia Horta também teve a oportunidade de uma segunda vida. Engenheira química em Estrasburgo, a descendente de imigrantes portugueses do Algarve abandonou o laboratório, os tubos de ensaio e as pipetas para ver o mundo não através das lentes de um microscópio, mas sob um prisma maior, mais amplo, macroscópico.
“Tinha casa, um salário, um trabalho seguro na indústria química na França, mas não estava satisfeita, feliz. De repente, passei a questionar a minha vida e resolvi dar uma volta. Deixei o emprego, vendi a casa e aceitei o convite de um primo para vir a Lisboa e recomeçar aqui, trabalhar neste mercado”, conta Ophelia.

O primo em questão é o Humberto, também francês de Estrasburgo, descendente de algarvios. Humberto que se apresentou assim, sem revelar o sobrenome, pois o pilar das relações sociais na comunidade Emaús, em razão do acolhimento, dispensa detalhes. Quando confrontado que o jornalismo, ao contrário, requer um sobrenome, beberica a mini nas mãos e ensina:
“Pois, então, o jornalismo precisa se adaptar ao bicho.”

Quando ainda estudante, Humberto viajou de Estrasburgo a Lisboa nos anos 1990 para um período de dois meses de estágio entre os Emaús, um movimento de origem francesa, num campo onde hoje funciona o campus da Universidade Lusófona, em Campo Grande.
“Naquela época, o serviço militar em França ainda era obrigatório e o não cumprimento passível de prisão”, lembra Humberto, que vinte minutos de entrevista e mais alguns bebericos na mini depois, sentiu-se mais confortável em revelar o sobrenome, Pereira, e também a idade, 49 anos, em nome do bom jornalismo.
O que é o movimento Emaús?
Na França dos anos 1990, conta Humberto, o adeus às armas e ao risco de prisão passava pelos caminhos do Emaús – um movimento que nasceu religioso em meados do século XX pelas mãos do ex-padre francês Abbé Pierre, cujo o nome remonta à passagem bíblica da aparição de Jesus após a ressurreição.
Por influência política do seu fundador, o Movimento dos Emaús tornou-se em França uma opção para quem não desejava seguir a carreira militar.
E mesmo depois de o movimento seguir optar por uma visão laica, manteve o desejo, ainda caro ao catolicismo, de combater a pobreza e a exclusão social.
“Abbé Pierre conseguiu conseguiu aprovar o estatuto de Objetor de Consciência, ou seja, a alternativa de se trocar o serviço militar por uma outra atividade, geralmente a serviço da comunidade”, conta Humberto. E foi justamente o caminho seguido por ele.
Assim como os demais franceses que apelaram à alternativa do Objetor de Consciência, por não concordar com a violência como uma alternativa, Humberto, então com 19 anos, seguiu para prestar serviços comunitários no campo dos Emaús em Toulouse. Nascia ali uma vocação.


Uma experiência que veio para ficar em Lisboa?
Licenciado em Comércio Internacional, Humberto acabou por derivar para o caminho oposto, nem do comércio, muito menos internacional. A experiência entre os Emaús ensinou-o que a atividade comercial pode visar como lucro o bem estar alheio, respeitando inclusive as características regionais. Uma aprendizagem que trouxe para a terra natal dos antepassados.
“É tudo muito simples: o que entra com a venda dos produtos é revertido, numa parte, nos custos de reparo dos móveis que chegam, noutra parte, repartido em dinheiro de bolso entre os envolvidos no trabalho e, o que sobra, é doado com quem precisa”, explica Humberto,

Hoje, Humberto é presidente dos Emaús de Caneças, a maior comunidade do país, para onde os móveis e utensílios domésticos doados pelos portugueses são levados, restaurados e depositados num imenso armazém, de onde saem para atividades como os mercados pop up, realizados um pouco aqui, outro acolá.
Em Lisboa, o mercado já aconteceu em várias freguesias, como em Campolide, no Parque das Nações e na Ajuda. A experiência em Arroios, porém, tem superado as expectativas em promover a integração com a comunidade e, meses depois de abrir, não há uma data para o mercado, antes pensado no breve formato pop up, encerrar as atividades.
Pelo contrário. A programação para os próximos meses prevê uma expansão das atividades.
200 metros quadrados de viagem no tempo
Ophélia serve duas cervejas artesanais aos clientes que aproveitam o sol no beer garden sentados nos almofadões no quintal do prédio. Um deles, um homem, mostra à mulher que o acompanha um aparelho de som comprado no mercado. A mulher, por sua vez, retira de um saco o vestido colorido que lhe custou uns poucos afetos.
Uma mulher aproxima-se da francesa. É a irmã Célia, a religiosa superiora da ordem das Irmãs Concepcionistas, a instituição à qual o prédio que abriga o mercado pertence. “Compramos o prédio, mas como ainda não havia um destino planeado para ele, resolvemos cedê-lo para que os Emaús abrigassem o seu mercado”, conta a irmã Célia, abrindo um contagiante sorriso.
A cedência do espaço aconteceu no início do ano. Coube a Humberto e os outros colegas do movimento Emaús deixarem a estrutura em condições de funcionamento. Fixadas numa das paredes, as fotos do “antes” e do “depois” dão a exata dimensão do trabalho que consumiu dois meses ininterruptos de esforço pesado.
Onde hoje estão as mesas, cadeiras e almofadas do beer garden, a erva alcançava os dois metros de altura. As chapas de ferro que taparam as janelas foram recondicionadas para se transformarem em janelas de verdade. O telhado parcialmente colapsado foi reformado, as infiltrações das paredes sanadas e o triste verde-bolor dá espaço a vívidos tons de cores.
Ao todo, o mercado ocupa vários espaços dos quase 200 metros quadrados do edifício, divididos em dois andares. Um deles lembra o quarto de uma criança, mas a sensação geral em percorrer os espaços é a de viajar no tempo, de entrar na casa da avó, entre os móveis vintages e aparelhos que só se veem em filmes de época.
“Às vezes, alugamos umas peças para produtoras de televisão e cinema”, confirma Humberto.

Um mercado com comida e arte fornecida por vizinhos
A inauguração ocorreu próximo ao último 25 de Abril, já com a prima Ophelia como parte da equipa. Desde então, o mercado dos Emaús em Arroios passou a fazer parte da vizinhança, com direito inclusive a sardinhadas durante as Festas Populares e sessões com DJ’s todas as quintas-feiras, quando o expediente vai até às 22 horas.
Desde setembro, uma vizinha chilena vai fornecer empanadas para acompanhar as cervejas artesanais produzidas pela vizinha polaca. Um artista francês vai preencher as paredes com grafites e uma costureira estará aos sábados oferecendo os serviços de reparos a quem precisar de ajustes nas roupas compradas no local.
“A experiência tem sido incredible”, resume Ophelia, ainda familiarizando-se com o idioma familiar. “Tinha dentro de mim a sensação de que um dia ainda iria trabalhar com o meu primo e foi o que acabou por acontecer.”
E a francesa que trocou a vida de engenheira química também não esconde a química com o estilo de vida em Lisboa.
“Lisboa corresponde muito mais ao meu modo de viver. Gosto muito de viver ao sol, das pessoas se cumprimentarem nos cafés e na rua. Isso é muito mais português do que francês”, derrete-se Ophelia.

Quem não se seduziu com os novos vizinhos foi a Junta de Freguesia de Arroios. “Tentamos entrar em contato para sabermos como poderíamos ajudar, mas não fomos nem recebidos”, conta Humberto. “Recebemos um lote de material escolar do Liceu Francês e queríamos doar aos estudantes carenciados da freguesia, mas nem isso mudou a relação com a Junta.”
Mas os Emaús estão decididos a transformar a experiência pop up em algo mais permanente.
“Ficamos surpreendidos com o acolhimento da comunidade, o que nos encorajou a pensar em continuar. Mesmo que tenhamos que sair daqui, haverá sempre um outro espaço disponível a nos acolher”, acredita Humberto.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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“os móveis e utensílios domésticos doados pelos portugueses são levados, restaurados e depositados num imenso armazém”.
Isto é uma descrição que na minha opinião não corresponde exactamente à realidade. Em Caneças há um terreno enorme carregado de objectos que lentamente se degradam ao ar livre, e nos pavilhões há n objectos fechados há anos, ou décadas, porque simplesmente se recusam sequer a dar-lhes visibilidade, quanto mais vendê-los.
Com isto não quero colocar em causa o trabalho feito, apenas digo que a realidade que vemos em Lisboa (onde já estive) é diferente, para melhor, da que existe em Caneças (onde fiz várias doações). Quem tiver dúvidas pode sempre ir ler os tristes comentários no Google à Emaús Caneças.