A senhora estava indignada. Eu nunca tinha gostado muito dela, principalmente desde que se pôs a armar problemas com o condomínio por causa do meu ar condicionado, que estava na outra ponta do prédio e não a incomodava nada. Dez anos depois de ter chegado a Lisboa, ainda não dei por mim naquela fase do lisboetismo em que sou amiga dos vizinhos.
Enfim, ouvi barulho e fui à porta. As vozes pareceram-me exaltadas, e longe de mim meter-me em conflitos, mas se fosse o palerma que me roubou a bicicleta já me convinha dizer-lhe umas verdades.
Cá fora, em vez do ladrão, estavam dois homens fardados, e eu sem perceber que raio teria eu feito daquela vez. Tendo emprestado a mota a uma amiga, não podia tê-la metido num sítio ilegal, como é costume. Talvez me viessem dizer que a Patrícia tinha caído e estava morta. Talvez o raio da vizinha me quisesse lixar mesmo por causa do ar condicionado. Mas talvez não. A polícia devia ter mais que fazer, embora aqueles dois não parecessem apressados.
Estavam cá fora à espera enquanto outros dois traziam, com jeitinho, uma caixa para o vão do prédio. A senhora estava como quem é assaltado. Se ouvi bem, saiu-lhe assim:
– Nunca ninguém me disse que não podia ter ali as ossadas, mas já se sabe que hoje em dia não se pode fazer nada. Sempre tive aqui o meu marido e nunca ninguém me chateou a cabeça. E sempre o limpei bem, e os meus filhos também. Na altura, já sabe como é, não era como agora. Não havia tanta fartura. E eu não ia despejar dinheiro que não tinha numa campa. Hoje vivo bem, a minha filha ajuda-me muito, mas você sabe lá o que eu passei. Mantive o Jacinto aqui e sempre o tratei como devia. E agora vem-me a polícia a casa dizer como é que eu devo tratar o meu marido, que Deus tem?
Talvez eu tivesse ficado temporariamente surda e inventado? Ossadas? No prédio? No meu prédio? Na porta à frente da minha?
Um dos polícias, o mais gordo, respondia-lhe assim:
– Minha senhora. Por favor.
Mas a mulher continuava desvairada. E eu, claro, já me encostara à soleira, sem disfarçar que metia o nariz. Nem sou de me meter na vida alheia, mas preciso de material para as crónicas. E, com coisas destas, é mesmo só voltar para dentro e chapar a vida no Word.
– Mas isto são medidas do governo? Não é à toa que eu já não voto no PS. Gostei mais do outro do que deste Costa, mas nunca me passou pela cabeça que ele agora viesse dizer às pessoas que não podem ter em casa as ossadas dos maridos.
Então meti-me eu na conversa. Aquilo era bom demais. Política de bairro à séria, à antiga, à ficção.
– Quem, o Costa?
Ela virou-se para mim pela primeira vez. Preocupada com as ossadas roubadas pela polícia, nem deu pelo meu pasmo ali a olhar para ela.
– Pois. Ele está lá e quer o dele, e para mandarem na nossa vida e nos roubarem os impostos não se ensaiam um minuto.
– Minha senhora – eu estava em choque, e não sou fácil de chocar –, não é o António Costa que a proíbe de ter… ossadas.
O polícia, agora o mais magro, fazia-me um deixe-para-lá com a cabeça. Será que estava habituado a remover ossadas de maridos e já sabia que não valia a pena? Quantas teorias da conspiração surgiriam por prédios de Lisboa? Aquilo aconteceria por dá cá aquela palha?
– Se é ele ou outro, quero lá saber. Aquele Marcelo Rebelo do Souto também não é flor que se cheire. Muito simpático, admito, e até o acho bom rapaz, mas parece que não há preocupações com as viúvas.
Ela estaria a falar de pensões ou ainda de… ossos de cadáveres? Não pude confirmar. Embalada, a mulher continuou.
– O meu marido morreu tinha eu 23 anos. Entretanto, sou a velha que se vê. – E eu bem via. – E casei pela igreja, casei para sempre, e nunca estive com outro homem. Você que julga? – Apontava-me o queixo, acusando-me de a julgar o que não era: – Eu não sou uma qualquer.
Nem eu julguei que fosse. De uma mulher já com idade para ser cadáver que guarda em casa os ossos do marido já cadáver poderá dizer-se muito, mas não que é igual às outras.
O que a incomodava era o que incomoda todos. É julgar que não importamos a ninguém. Nisto, independentemente do que somos, somos tábua igual enquanto humanos. Não falha um.
– Mas eles na política querem lá saber. São todos uns aldrabões.
– Mas todos, minha senhora? – dizia eu. Seriam todos uns malandros que não queriam saber da vida a sério, que se estavam a lixar para a duração do luto?
– Todos, sem excepção. O primeiro-ministro é o pior de todos, nunca o vi a querer ajudar os pobres a tomar conta dos mortos. Aquela que tem uma prima igual a ela é mais do mesmo. O outro bem-vestido também é a mesma coisa.
– Quem, o Cotrim? – As primas deviam ser as irmãs gémeas.
– Deve ser. Quero lá saber. Não sei os nomes, mas vejo-os às vezes a falar na televisão. Mudo logo de canal. Aquilo é gente que não interessa a ninguém e a quem não interessam as viúvas.
Eu, por um lado, dava-lhe razão. Também nunca vi o primeiro-ministro a querer ajudar os pobres a tomar conta de ossadas. Nem os pobres nem os ricos, claro, mas esses hão-de ter outros esquemas. E os outros partidos também eram iguais. “Todos iguais”, garantia ela. Que isto agora era “creches e creches e dos velhos ninguém quer saber” e “hoje em dia não se pode mesmo fazer nada”. E então lá se virou para o gordo:
– E que raio vos deu na cabeça para virem cá hoje, ainda por cima em cima da hora do almoço?
– Recebemos uma denúncia anónima, minha senhora. Já devia saber que não pode guardar em casa os ossos do seu marido.
– Raios partam. Deve ter sido a Ludovina. Não se pode mesmo fazer nada. Eu já vivi em ditadura e este António Costa consegue ser pior. O meu Jacinto ia estar na casa de quem, de uma lambisgóia qualquer? Só por cima do meu cadáver. Ainda por cima, eu bem me lembro de como elas olhavam para ele, e a Ludovina nunca disfarçou que lhe achava graça. Sempre foi muito bonito, sabe. Mas eu em nova era outra loiça e ele só tinha olhos para mim. Foram três anos bem passados, e graças a ele tive os meus filhinhos, que são o orgulho desta mãe. Você tem filhos? Nem sei o que seria de mim sem eles.
– Minha senhora, as ossadas têm de estar no cemitério.
– Quero lá saber do cemitério. Eu não casei para me livrar do homem três anos depois.
– Pois não, minha senhora. Mas de certeza que casou até que a morte vos separasse.
Eu nunca tinha visto um polícia tão sensato. Até me senti mal. E admito também que gostei daquele momento de cavaqueira. Tenho passado estes últimos meses fechada em casa, um rasgo de vida – ou de morte – é sempre uma alegria. Os dois que tinham pegado na caixa estavam lá encostadíssimos, refasteladíssimos, também com uma história para contar aos netos. Cronistas e outros – vamos todos ao mesmo; farinha do mesmo saco, mergulhamos no mesmo pote.
Nem tive ocasião de perguntar à polícia – e como raio o faria? – se teria sido mesmo a Ludovina, fosse quem fosse, a dar com a língua nos dentes. Também não me passou pela cabeça vir a mencionar o assunto a sós à dona Glória, que ela quando me apanha manda logo meia hora de conversa. Entretanto, olhei para a caixa e ainda dei por mim com o pensamento inaugural: “Oh, meu Deus, tenho uma caixa com ossos de cadáver à porta de casa!”. Quis logo pôr-me a andar e tomar um banho com lixívia.
A polícia lá encaminhou tudo e disse à dona Glória que ela também tinha de ir.
– O quê? Eu? Ir onde? – dizia ela, escandalizada, desprevenida.
– Tem de vir à esquadra prestar declarações.
– Eu? Era o que mais faltava. Não tenho explicação nenhuma a dar, que, que eu saiba, o marido ainda é meu.
– Minha senhora, tem mesmo de ser. Se não vier de forma voluntária, virá coercivamente.
– Olhe, não me venha com essa conversa de esperto, que eu nem sei o que é isso.
– Se não vier, vamos ter de pegar em si ao colo.
– Tenha mas é vergonha. Você sabe que idade tenho? Podia ser sua avó. Ia fazer isso a uma velha? O meu filho que saiba, ele que o apanhe. – E abanava a cabeça perante o sacrilégio.
Entretanto, já o polícia mais magro se punha à porta de casa, impedindo a senhora de entrar de volta. Ela, já bem se via, continuava a reclamar:
– Ainda por cima, mesmo na hora do almoço! Eu ainda nem sequer almocei, homem.
– Traga umas bolachinhas e vamos lá.
– Tenho o arroz ao lume. Não pense nisso. Eu não me alimento a bolachas. Você que julga?
– O meu colega entra consigo e a senhora desliga o lume.
– E vou assim, de estômago vazio, a ver se me dá uma fraqueza?
– Não tem um pacote de bolachas?
– Isso era o que você queria, tirar-me de casa, que eu levasse a porcaria de umas bolachas, e quando eu desse por ela já você tinha entrado para me comer o arroz.
– Não se preocupe, que eu vou almoçar na esquadra.
Bem, aquilo não deu em nada. A mulher não pegou nas bolachas, mas lá se fechou o gás. Pelo caminho, um deles entregou-lhe a carteira.
– Tem aqui os documentos, não tem?
– Tenho, tenho, mas que tem você que ver com isso? Meta-se mas é na sua vida. Raio da polícia… Raio de homem. Raio do António Costa.
Fecharam a porta. Ela bem viu que não havia nada a fazer, mas não dei por ela resignada. Ainda me fez um olhar quase cúmplice, como se eu fosse a testemunha da injustiça que o governo, o parlamento e a presidência da república cometiam sobre uma mulher que, coitada, mais não tinha feito do que puxar lustro a ossos ao longo de quase toda a vida. E depois virou-me as costas, mas não sem antes me garantir que, da próxima vez, ia votar no Chega a ver se isto mudava.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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