Quatro paredes, um teto, um colchão, uma secretária, uma banheira. Uma casa, feita a partir de materiais encontrados numa velha fábrica anexa ao Armazém 56 – Arte Sx, no Seixal. Assim se apresenta um apertadíssimo T0 para habitação e a bom preço: 1800 euros, conta o agente imobiliário da Rottenstein Real Estate.

Com o mercado da habitação em crise, até podia ser verdade.

Mas esta não é uma casa realmente para habitar: é uma instalação artística que do Seixal vai viajar até à Alameda para uma manifestação estudantil que decorre esta sexta-feira, dia 29 de setembro, e até ao Rossio, para a manifestação Casa Para Viver, que acontece este sábado, dia 30, das 11h às 19h.

O agente imobiliário, esse nada mais é do que um performer, o artista por trás desta instalação: o brasileiro Ticiano Rottenstein, que começou a vida profissional como gestor desportivo mas que descobriu na arte uma forma de “extravasar os seus sentimentos.”

A Europa que inspirou a arte de Ticiano

O abandono e a decadência. Esta instalação nasceu da vontade de protestar e enquadra-se naqueles que são os dois temas sempre presentes nas obras de Ticiano – e que não escapam à paisagem de Lisboa, onde já morou.

“Quis tratar uma questão mais literal, que é a questão da habitação, mas que é também um reflexo da decadência da nossa sociedade contemporânea.”

TICIANO, O ARTISTA

Ele, que nasceu na Floresta Amazónica, filho de mãe francesa e pai brasileiro, ambos artistas, demorou anos a despertar para a arte.

Esse despertar acabaria por acontecer em Alicante, Espanha, quando lá passava um período de ERASMUS, a estudar desporto. Foi lá que cobriu as paredes de graffitis e descobriu esse fascínio pelos lugares abandonados das cidades. “Fui entrando cada vez mais nesse universo de arte, e eu comecei a perceber que toda a minha energia, todo o meu foco, estava voltado para isso”, conta.

Ticiano tem vindo a trabalhar sobre a questão do abandono. Foto: Carlos Menezes

Mas foi em Berlim que soou o espanto. Ele, que ali chegara à boleia de uma paixão, cedo se viu contagiado pela atmosfera do bairro Friedrichshain, onde passou a viver. Descobriu ali um mundo de fábricas abandonadas – algumas delas transformadas em bares e discotecas, como a Berghain, ligada à música elétrónica que inspira também o seu trabalho.

“Berlim era o paraíso nesse sentido. Foi lá que comecei a fazer as primeiras peças, os primeiros trabalhos.”

A vida passou a reger-se por essa busca artística que respondesse às grandes questões em torno do abandono, da decadência, da ruína. Tudo isso ainda feito um pouco em segredo, enquanto trabalhava como gestor desportivo.

A esses anos de descoberta, seguiram-se uns quantos anos a viver na Gâmbia, a fazer trabalho humanitário, até o regresso ao Brasil, finalmente para estudar Belas Artes.

Depois, veio o mestrado em escultura, e a cidade escolhida para tal foi Lisboa. Essa Lisboa “charmosa” à qual chegou em 2019, mas também cheia de espaços devolutos, como aqueles que encontrou em Marvila, mote de inspiração para o seu trabalho. Ao mestrado, seguiu-se o doutoramento, que ainda frequenta, mas sempre sobre isso mesmo: o abandono.

O artista que viveu a crise antes de a contar

O tema desta nova instalação toca-o também pessoalmente. Afinal, ele já viveu na pele o drama da habitação quando a mulher engravidou e se viu obrigado a abandonar o bairro da Graça, onde vivia, pela Amora, no Seixal.

“Não tínhamos condições para conseguir um T2 em Lisboa, por isso optámos pela Margem Sul.” Ao chegar ao Seixal, essa terra que lhe era desconhecida, Ticiano candidatou-se a uma residência artística, no Armazém 56 – Arte Sx, onde foi aceite e onde continua a trabalhar.

O atelier de Ticiano. Foto: Carlos Menezes

Ao entrar pela primeira vez naquele espaço, surpreendeu-se ao descobrir uma fábrica mesmo ao seu lado. Pareceu-lhe que estava predestinado: esse encontro levá-lo-ia ao protesto que hoje se prepara para levar a Lisboa com um T0.

Nas imediações, existe também a Fábrica Mundet, sobre a qual Ticiano trabalhou, expondo peças sobre a memória desse lugar. E, mais recentemente, teve em exposição a obra “Cromeleque Pós-Industrial” na Baía do Seixal, que cruzava os monumentos megalíticos, os cromoleques, com restos de materiais do pós-industrial:

Como protestar em tempos de crise: um manual de arte

“A indústria é a representação maior da nossa sociedade contemporânea e capitalista”, resume o artista sobre essa ideia que move o trabalho que faz. A sociedade contemporânea, onde faltam também soluções de habitação.

Hoje, conseguir casa na Margem Sul também é difícil, reconhece ele. “Se eu e a minha mulher tivermos de sair de nossa casa por alguma razão, já não vamos encontrar uma casa ao valor que pagamos. É muito difícil.”

Ticiano decidiu imprimir esse sentimento de revolta nesta instalação-performance. Procurou ajuda junto da Câmara Municipal de Lisboa para expor a instalação, que acabaria por aceitar o projeto através do GAU (Galeria de Arte Urbana). Mas nunca mais se avançou com uma data. “Já estava meio cansado de esperar, porque o timing era agora”, conta ele.

Por sorte, acabaria por se cruzar com pessoas ligadas às manifestações, que se interessaram pelo trabalho e o convidaram a participar.

Ticiano reconhece que mesmo agora é difícil encontrar casa na Margem Sul. Foto: Carlos Menezes

Lá fora, está o T0 a aguardar a viagem do Seixal para Lisboa, pronto para esses dois momentos que não serão só de protesto e contestação contra a situação atual da habitação, como diz Ticiano, mas também de “solidariedade para com as pessoas que têm sofrido o mesmo que eu.”


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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2 Comentários

  1. Eu vivi 30 anos numa casa alugada em campo ourique em que o w.c. tinha o tamanho de uma simples porta. .. retrete no lado esq. Lavatorio em frt. e chuveiro à dirt….Apesar disso era uma boa casa de traça antiga como a maioria das do Bairro
    ( soalho e tetos altos e sem elevador) Foi a casa dos meus pais durante mais de 55 anos! Foi alugada nos anos 60 por 1.100 escudos… o meu pai trabalhava numa empresa farmacêutica e ganhava 900 escudos !!! A minha mãe trabalhava a dias !!! Fizeram carreira e vida, criaram-me, deram-me estudos , e eu como tantos, vivi uma boa infância, sem excessos. Na minha juventude (anos 90 e 2000) ninguém queria alugar aquele tipo de casa, nem ali e muito menos na zona histórica de lisboa, porque eram construções velhas e o pessoal não queria se sujeitar aqueles “hambientes”…. parece que agora se tornou moda e todos querem viver lá e por pouco dinheiro!!!
    Façam o mesmo sacrifício que os meus e outros tantos pais fizeram e talvez consigam lá chegar , mas para isso tem que pôr de lado o tanto que tem de superfulo e de realmente desnecessário para se viver honestamente e feliz!!!

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