Um pedaço de terreno no bairro das Portelas, em Cascais. Tudo começou por aí. E numa altura em que as portas das casas estavam fechadas com o anúncio de uma pandemia.
Nesse tempo, a moradora Maria do Rosário Dias debruçava-se sobre as velhas grades daquele terreno seco e vazio. Foi com ela que a jovem Jessica Castro, a estudar Serviço Social, se cruzou. E foi este encontro que motivou uma ideia em Jessica que prometia transformar aquele bairro: “por que é não trago as minhas aprendizagens para o bairro?”.
Uma ideia que leva até aos dias de hoje, a este pedaço de terreno esquecido durante anos que agora, sim, serve os velhos vizinhos. Ali, nascem conversas que avivam memórias do passado, mas sobretudo projeta-se um futuro: um futuro com árvores, bancos, uma horta.
Estamos no “Quintal da Esperança”, como lhe chamaram: um terreno comunitário e um dos projetos vencedores do programa “Reinvente o seu Bairro” da Câmara Municipal de Cascais.


A iniciativa tem como objetivos “cultivar com esperança”, promovendo-se workshops e oficinas artísticas, neste bairro erguido em 1978 no âmbito da Comissão de Apoio a Refugiados (CAR), para acolher os retornados das ex-colónias – com a ajuda de vários países europeus.
Passados 45 anos, estes vizinhos voltam a pôr mãos à obra pelo seu bairro.
Combater o isolamento com um quintal
Jessica Castro, de 25 anos, chegou ao bairro das Portelas em 2018, para onde veio morar para casa da avó. Um bairro que se transformara com os anos. “A minha avó contava que antes havia mais entreajuda, que eram todos padrinhos e madrinhas de casamento uns dos outros!”, conta ela.
Mas já não era isso que se sentia nas ruas. E, com a pandemia, o isolamento e a solidão das pessoas tornara-se ainda mais evidente.
Nessa altura, Jessica começou por fazer compras de supermercado para uma das residentes mais idosas: a dona Esperança, que viria a dar nome a este projeto, porque foi ela o elo de ligação ao dia em que Jessica sonhou este quintal. O dia em que a jovem encontrou a vizinha Maria do Rosário debruçada sobre um velho terreno a tentar livrar-se das grades degradadas. “Falei com a Rosário em reabilitar o quintal…”. E o entusiasmo perante essa possibilidade começou a crescer entre os moradores, uma comunidade que, agora mais afastada, continuava unida pelas mesmas memórias.


A comunidade que ajudou a erguer o seu próprio bairro
Novas empreitadas não é tema que afugente este vizinhos, que ajudaram a erguer o bairro onde hoje moram.
Tantos anos depois, eles recordam o dia em que aqui chegaram. “Quando chegámos, não havia água, não havia luz”, conta Manuela Cardoso. “Eu para levar os meus filhos para a escola tinha de passar um mar de água”, continua Maria do Rosário Dias.
Segundo Morgane Delaunay, esta foi uma realidade que foi sentida noutros bairros criados pelo CAR, e até mesmo em centros de acolhimento onde muitos portugueses vindos de África ainda viviam, em 1981, quando o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais foi extinto.

“Isto não tem nada a ver com o bairro que recebemos”, diz Jorge Cardoso. Cedo uniram esforços para melhorar aquele que era o novo bairro deles, tapando com brita e saibro as ruas por asfaltar. E, lentamente, o bairro foi-se transformando, criando-se uma associação de moradores que lutou para que as casas, precárias, ficassem em seu nome.
Uma luta ganha.
Entretanto, aqui nasceram os filhos dos primeiros moradores e depois os netos. “Eu fui o primeiro a nascer no bairro!”, gaba-se mesmo Paulo Tiopista, que já aqui não vive, mas que continua a regressar ao lugar que o viu nascer.

Com o envelhecimento desta população e o isolamento forçado pela pandemia de covid-19, o bairro esvaziou-se de espírito de vizinhança, enquanto lá fora o terreno ia crescendo cada vez mais seco, à espera de cuidadores.
Um quintal comunitário que leva o nome da moradora Esperança
Agora, a comunidade vê-se reunida, como há tantos anos, graças a uma ideia: a de um quintal, um lugar de todos, naquele mesmo terreno. Para se levar esta ideia a bom porto, o primeiro passo foi enviar uma mensagem de Facebook ao vereador Nuno Lopes, que rapidamente acedeu ao pedido de Jessica de reabilitar aquele lugar e pediu à arquiteta Ana Feu para fazer uma visita ao bairro.
Mas surgiu um entrave: para se avançar com um projeto, seria preciso que a comunidade se organizasse numa associação de moradores – o problema é que nem todos tinham boas memórias dos tempos em que se formara a associação.
A ideia acabou por cair. Mas não por muito tempo.
Em deambulações, Jessica deparou-se com uma placa que anunciava o projeto “Reinvente o seu bairro”. “É isto!”, pensou ela. A comunidade juntou-se para apresentar uma candidatura para transformar aquele espaço. E assim nasceu a ideia de um “Quintal da Esperança”, esse nome inspirado na vizinha do bairro, a dona Esperança – demasiado debilitada para hoje dar a cara pela história, mas que motivou o início dela.

O projeto seria aprovado e o bairro dinamizado com a chegada dos arquitetos da Locals Approach, que desenharam o projeto com a comunidade. A ideia contou ainda com a parceria da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Alcabideche (AHBVA), da SAPANA (Associação de apoio no desenvolvimento de competências pessoais e sociais) e da Junta de Freguesia de Alcabideche.
Entretanto, a comunidade já partiu à procura de plantas e árvores para o quintal em viveiros da Câmara Municipal de Cascais, e aguardam uma reunião com o presidente da Junta para dar início às obras em outubro. Mas é a Jéssica que os fregueses estão mais gratos. “A Jessica é que manda nisto tudo!”, dizem eles. Ela, que entretanto já aqui não vive, mas que continua a dedicar-se aos amigos mais velhos, os vizinhos, deste bairro que é também dela.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
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