João Pedro Vala faz turismo até mesmo na sua própria casa, onde muitas vezes se esquece onde está a torradeira. É esse turismo de quem tenta fugir de Lisboa, sem nunca conseguir escapar. Uma Lisboa à qual chegaram gentes vindas de todos os cantos do país, uma cidade de “pessoas sem casa”, “à procura de um lar”, como ele próprio lhe chama.
“Grande Turismo” foi o livro em discussão na sexta sessão do Clube de Leitura de Lisboa, n’A Brasileira do Chiado – uma iniciativa mensal para juntar leitores e autores à volta de obras relacionadas com a cidade.
O autor debateu-se durante anos com aquela que acreditava ser a sua pequenez perante os grandes autores clássicos, até ao momento em que se resignou e escreveu a sua história. Uma viagem contada em pequenos capítulos, onde autobiografia e ficção se misturam, levando João Pedro Vala até mesmo à guerra do Ultramar.
Um talvez exercício literário, “mas que faz rir”, garante ele, e que, recorrendo ao humor – ele que em pequeno já fazia comédia com “puns” – acaba por falar de coisas bem sérias, inerentes à condição humana.
Nesta conversa, falámos também de coisas bem sérias, como o esquecimento, a nostalgia e, claro, Lisboa. Essa Lisboa onde João Pedro cresceu, e onde lhe irrita aqueles que fazem turismo “como os nativos” (travel like a local). Para esses turistas, o escritor recomenda a verdadeira experiência lisboeta: ficar à espera numa fila da Loja do Cidadão.



Leia aqui um excerto da conversa com o autor:
Este é um livro bastante singular e acho que toda a gente que o leu poderá concordar comigo. Fala-me um bocadinho de como surgiu a ideia para este livro. Começaste a escrever do nada, tiveste uma ideia a priori…?
Boa tarde. Obrigado pelo convite para estar aqui.
Eu sempre quis escrever. Quer dizer, não sempre, mas a partir de certa altura da minha vida, mais ou menos aos 23, 24 anos, comecei muito a querer escrever, mas não conseguia encontrar o tom certo. Estava sempre à procura de um tom certo e deixava de parte coisas como, por exemplo, o sentido do humor, que eu achava que não pertenciam a um livro sério como aquele que eu queria escrever.
Quando estudava literatura, também sentia que nunca conseguiria aproximar-me sequer do valor que eu considerava mínimo para poder escrever um livro. Estava a estudar Dante, Proust, Platão, e pensava “o que é que eu estou aqui a fazer?”, “como é que vou escrever um livro que seja sequer parecido com o nível que está aqui?”.
De repente, a certa altura, percebi que a literatura não era bem sobre isso, não era bem sobre tentar chegar a uma fasquia muito elevada, mas antes sobre fazer o melhor que se pode com o que se tem.
A partir desse momento, eu escrevi quase de rajada o primeiro conto do livro. Percebi que conseguia escrever um livro. Ou seja, percebi que não tinha de tentar ser como o Platão, ou o Proust, ou o Dante, tinha de tentar ser como eu e, aliás, colei-me bastante a quem eu sou no livro. Portanto, se tentasse ser como eu, não podia pôr de parte as coisas que me fazem rir e as coisas que me fazem sentir bem e, portanto, o livro surge disso.
Tu dizes que escreveste a primeira história do livro de rajada. O resto do livro também surge assim ou foi pensado, estruturado? Conta-nos um bocadinho sobre o processo.
O livro foi escrito de uma maneira um bocadinho peculiar. Eu escrevi o início e o fim, e depois fui enchendo o livro com coisas. Via o que é que achava que fazia sentido, o que é que não fazia. Comecei a perceber que, na altura em que escrevia o “Grande Turismo”, ainda não sabia construir uma grande narrativa. E o que eu fiz foi construir pequenos arcos, que são as pequenas histórias que estão no livro.
Essas histórias foram surgindo naturalmente. Eu não pensava no livro, e não penso, no livro como uma unidade. A ideia não foi minha de ter na capa “provavelmente um romance”, mas é uma coisa que fez muito sentido para mim, porque não sei se este livro é um romance. Não tenho a certeza que as unidades de cada conto pertençam completamente a uma unidade total. Acho que pertencem em parte, mas não totalmente.
As histórias foram surgindo à medida que eu pensava numa coisa que para mim era importante, momentos que me marcaram mesmo na minha vida, e que depois transformava em ficção.
Às vezes, durante a noite, lembrava-me de um momento, enquanto tentava adormecer e nem sabia porquê. Não foi um momento completamente revolucionário em que morreu alguém, ou em que percebi que estava completamente apaixonado por alguém, não foi nada disso. Foram momentos muito simples na minha vida que eu não conseguia esquecer e que me envergonhavam. Eu não os largava enquanto não percebesse porque é aquilo me fazia sentir vergonha, ou medo, ou ansiedade, ou o que quer que fosse.
Quando achava que tinha chegado à raiz desse problema, então, metia uma forte camada de ficção por cima disso e surgia uma história. Fui avançando assim, até achar que já não tinha mais histórias para contar.
O protagonista destas histórias é sempre João Pedro Vala. Quem é este João Pedro Vala, como é que ele surge?
Pois, eu não sei como é que ele surgiu. Acho que este livro é sobre uma camada que existe entre nós e nós próprios, ou seja, uma camada que nos impede de olhar para nós a partir de dentro, e eu sempre senti dificuldade em olhar para mim a partir de dentro.
Achei que, para tornar explícito que era este o drama, o de alguém que está a tentar olhar para dentro e não consegue, era importante que eu falasse como se fosse essa personagem, ou seja, como se o escritor assumisse: “eu sou mesmo esta personagem”. E, depois, tornasse evidente que não sou, porque esta personagem, não querendo estragar o livro, passa por muitas coisas por que eu não passei.
Acho que é evidente que eu estive muito pouco tempo ao serviço no Ultramar.

O episódio da guerra no Ultramar é muito marcante. Como é que surgem estas histórias ficcionais, e até mesmo quase de viagem no tempo, no meio de histórias que são também autobiográficas?
Sim, as histórias são autobiográficas, mas isso não é pela circunstância específica de a personagem principal se chamar João Pedro Vala. Isto é autobiográfico como, sei lá, o Hamlet é autobiográfico. Não me estou a comparar ao Shakespeare, digo isto no sentido em que todas as histórias que nós contamos são organizadas por algum motivo. Nós contamos este elemento, e depois este, e depois exprimimos outro, porque de alguma maneira estamos a falar da nossa perspetiva sobre as coisas. Portanto, é uma autobiografia no sentido normal em que a ficção é sempre autobiográfica.
Quando comecei a escrever o livro nunca senti que o fosse publicar, não era uma prioridade para mim, não era minimamente importante. Nos primeiros meses, até preferia não o publicar. Só que, a certa altura, as coisas começam a ganhar uma massa e um corpo, e eu começo a ponderar que, se calhar, de facto, isto um dia poderia ser lido por alguém.
E senti-me exposto, porque apesar de esta personagem não ser eu, há algumas coisas que são fortemente inspiradas por situações que vivi. Senti que era preciso dizer muito claramente ao leitor e a mim próprio que isto não era uma autobiografia linear, e para isso precisava de pôr a personagem em situações que eu não tivesse vivido, como a guerra no Ultramar, que é inspirada fortemente no dia da defesa nacional que foi muito traumático para mim: apontaram uma arma e foi como estar na guerra.
Conta-nos um bocadinho desse dia da defesa nacional.
Foi muito parecido com o episódio do livro.
Primeiro, interessa-me esta ideia de uma certa anonimização perante uma massa, que é o que acontece na guerra por questões de sobrevivência, e acho que isso é importante porque me fez perceber que eu não conseguia, com pena minha, aderir a esse tipo de massas. Não é nada um exercício de “ah, estes burros que se anonimizam perante o mundo”, não é nada disso, era mesmo uma inveja.
Eu não conseguia mesmo pertencer e a violência, para mim, é uma coisa fascinante, no sentido que me causa pavor. E, portanto, só sequer a sugestão de violência que existe no dia da defesa nacional – em que, por exemplo, houve um senhor que me apontou uma arma, de quem não me esqueço e que um dia gostava de o encontrar na rua -, só isso, para mim, foi uma experiência quase tão marcante como estar na guerra.
Eu sou muito vulnerável e, pronto, isso acontece.
Há algum episódio que tu consideres mesmo marcante no livro?
Eu não li o livro, eu escrevi-o, mas depois nunca o li. Mas acho que há vários momentos que são marcantes e que para mim são, evidentemente, momentos muito, muito fortes.
Por exemplo, eu acho que, no final o livro, aquilo é muito intenso. Só que, como eu crio sempre esta camada irritante que faz com que eu não esteja bem a falar a sério, se calhar isso não é compreensível para quem lê o livro. Mas, para mim, o final é uma coisa muito, muito intensa e marcante…
Tal como o capítulo do tio do Miguel, em que eu finjo que estou a falar sobre outra pessoa. Esse capítulo baseou-se muito numa ideia que surgiu quando eu estava a estudar Proust. Proust tem um livro dele muito famoso, o “Em Busca do Tempo Perdido”, uma autobiografia ficcional, e, no início, há 200 páginas em que ele está a falar de uma história que se passou antes de ter nascido com uma pessoa que não era ele, e incluiu isso na sua autobiografia. E eu pensei: “que curioso”.
É verdade. Nós podemos, numa autobiografia, para falarmos de nós mesmos, falar dos outros. É isso que é a literatura, é fazer dos outros nós mesmos, e fazer de nós mesmos os outros, não é? E, portanto, decidi incluir aqui uma história que não tinha acontecido comigo, mas que acho que sou eu, em muitas medidas… exagerado, claro.
O livro acaba por ser quase um exercício literário.
Não digas “exercício literário”, senão as pessoas não vão ler. É ficção, eu prometo.
É divertido, é divertido, eu prometo.
Sim, sim, e dá para rir. Não, é assim: é um exercício literário. Eu tentei que não fosse. Quando estava a escrever o livro, estava ao mesmo tempo a escrever uma tese de doutoramento em teoria da literatura sobre Proust, que é uma coisa um bocadinho maçuda. Eu escrevia durante o dia a tese de doutoramento e à noite ficção, tipo Batman.
E tentava mesmo que não fosse maçudo. Tentava mesmo que fosse uma coisa que eu fazia para não ter, sei lá, coisas que a mim me irritam: como notas de rodapé, questões de etimologia, coisas de que não me apetecia estar a falar à noite. E, então, tentava só que fosse uma espécie de rasgos, que depois eram muito trabalhados, porque eu não consigo ter esses rasgos.
Mas, sim, é um exercício literário no sentido em que estão aí muitas coisas que eu penso sobre literatura e que eu tentei dizer de maneira que não fosse chata.


Eu também acho que é interessante é que isto seja um livro sobre coisas sérias, em que te escudes muito no humor. Tu pensaste esta questão do humor?
O papel do humor aqui tem a ver com uma tentativa de realçar o fracasso de eu não conseguir sequer levar a sério. Estou a tentar explicar a uma outra pessoa, neste caso os leitores, porque é que me estou a sentir angustiado, ou porque é que a personagem principal se está a sentir angustiada, triste, etc. Só que, por outro lado, a própria pessoa que está a contar esta história não consegue levar a história a sério. E isso pareceu-me interessante, porque é um desespero completo, o de sentirmos que às vezes nem a nossa tristeza levamos a sério. Que nem sequer nos sentimos legitimados para sentir o que quer que seja.
Por outro lado, e como eu dizia no início, obviamente que o humor está aqui também porque é uma coisa bastante presente na minha vida, sempre foi para mim uma maneira de lidar com o mundo. É uma maneira de nós lidarmos com o problema.
Não sei se vocês sabem, eu não faço ideia do que é estar vivo, ou o que é isto do mundo. Tenho um amigo que sabe, já me tentou explicar, mas eu não sei. E eu como não sei, acho este problema bastante curioso, mas sinto que por mais que eu nade, não me afasto da costa. Então, a certa altura dá para rir, não é? E eu senti, acho que desde muito novo, que o riso e a incompreensão perante as coisas estão associadas a mim. Normalmente, quando eu era miúdo eram coisas mais, sei lá, tipo, puns…
Lembro-me de alguns episódios do João Pedro Vala criança que se passam em Lisboa. Lisboa é o pano de fundo de toda esta história, fala-me um bocadinho da tua relação com Lisboa.
Eu pus o livro em Lisboa, porque foi onde eu vivi, fazia sentido. Também não ia estar a mentir nessa parte. Eu gosto muito de Lisboa e gosto muito de Lisboa por uma razão que se calhar não é evidente: Lisboa é uma cidade de pessoas sem casa. Agora, bastante literalmente, mas refiro-me a um outro sentido: não há ninguém que vocês conheçam, que seja há duas ou três gerações de Lisboa. Lisboa é um sítio de pessoas à procura de um lar.
Quando vou à terra dos meus avós, que é Monção, no Minho, há uma identificação muito forte com a terra. Todos nós temos uma relação de distância com Lisboa, que é: Lisboa parece uma cidade de pessoas que vieram aqui parar, não há ninguém que se sinta identificado com Lisboa como os meus avós se identificam com Monção.
E isso é muito literal e óbvio, isto de não estarmos aqui há muito tempo em Lisboa, quase ninguém, toda a gente veio cá parar. É um bocado como eu me sinto no livro, vim aqui parar e sei que não sou daqui, mas não faço ideia de onde é que eu sou. Lisboa é uma imagem forte para o grande turismo, que é estar longe de algum sítio que não sabemos qual é. Acho que é isso.
Há uma frase muito engraçada que tu disseste uma vez numa entrevista: “Acho que Lisboa no meu livro é parecida com Ítaca na Odisseia, é uma espécie de casa distante de que tento fugir, mas a que não consigo escapar.” Lembras-te disto?
Sim, não sei onde é que disse isso. É a mesma coisa, mas dita de maneira diferente. Lisboa tem esta coisa que vemos na Odisseia. Com o Ulisses, é um bocado ao contrário, ele é um homem que não quer voltar mas volta, está sempre a arranjar desculpas para ficar longe quando na verdade não quer é voltar. E acho que é um bocadinho assim que nós vivemos. Nesta tentativa de chegar a um sítio conhecido como confortável, há uma mistura, e também é disso que eu falo quando falo na ideia de turismo, que é a ideia de nós queremos estar distantes de nós mesmos e vermo-nos de fora, mas, por outro lado, também queremos o conforto do lar e acabamos por ser turistas na nossa própria casa.

Fala-me um bocadinho do turismo nesta cidade de Lisboa.
Eu faço turismo em casa. Faço mesmo, porque não sei onde é que guardo as coisas. Há uma mania muito irritante nas pessoas hoje em dia de quererem por exemplo, a Praga e não ir aos sítios óbvios de Praga. Chama-se travel like a local, que é viajar como um nativo, em português. E essa ideia é muito absurda porque obviamente os turistas vão de facto aos sítios mais bonitos de Lisboa: vão ao Mosteiro dos Jerónimos, vão à Sé, vão ao miradouro das Portas do Sol, e vão porque é de facto aí que estão os pontos mais atrativos.
Mas o que as pessoas querem fazer agora é imaginar que são de Lisboa. E isso até é ofensivo, porque é um bocadinho apropriação cultural. E eu sinto-me ofendido. Porque primeiro, se essas pessoas querem de facto viver como um lisboeta, deviam ir para a Loja do Cidadão.
Mas mais do que isso, interessa-me a ideia de que eu também sou assim. Eu também tento fingir que sou nativo e que sei perfeitamente onde é que ficam as coisas, mas se me perguntarem onde é que eu tenho a torradeira tenho que pensar dois segundos. Se eu tiver de pensar onde é que de facto estão as coisas importantes da minha vida, tenho de parar dois segundos.
Há aquela frase muito forte do Santo Agostinho que diz que “o tempo é aquela coisa que eu sei o que é se não me perguntarem”. Eu acho que isso é também a vida e tudo o que eu faço. Vocês se me perguntarem “porquê é que tu escreves?”, eu sei se não me perguntarem. Por que é que eu vim cá? Eu sei se não me perguntarem.
Eu sei mais ou menos onde é que está a minha torradeira se não me perguntarem. Sei quem são as pessoas que eu amo se não me perguntarem. É isto do turismo.
Mas há muitos lugares dos quais tu efetivamente falas no livro. Por exemplo, estou a lembrar-me que, logo no início, falas na Cinemateca…
Essa primeira história, para quem não leu, é a história de quando eu… desculpem, quando o João Pedro Vala… foi à Cinemateca e conheceu lá uma personagem que viria a ser muito importante no livro, que é a Inês. E eu quis propositadamente criar essa cena, porque foi uma cena que me veio à cabeça de maneira muito forte. A cena original é momento em que me senti pela primeira vez apaixonado. As pessoas dizem “apaixonado” e que “amam”, mas não sabem o que é que isso quer dizer. Mas acho que foi isso que eu senti, e foi numa circunstância em que eu não conseguia reproduzir, ou seja, que era parecida com eu estar na Cinemateca, mas não era. Essa história é difícil de explicar. A Cinemateca é só um sítio onde eu vou às vezes – desculpem.
Vamos falar um bocadinho de Lisboa, agora a sério. Fala-me a sério desta tua relação com Lisboa.
Essa é uma pergunta à qual não sei responder. Ou seja, eu tenho respostas clichés que não importam. Eu gosto muito da Penha de França, que é onde eu moro, e que é um sítio que conserva uma certa ideia de Lisboa.
Mas o que eu gosto acima de tudo em Lisboa não é um sítio… Eu vou voltar a responder à pergunta de outra maneira: gosto muito quando as pessoas dizem “epá, Lisboa há 20 anos….” e eu sinto sempre que cheguei atrasado a uma festa. E sou obsessivamente pontual. Eu cheguei aqui meia hora antes, porque me incomoda esse sentimento que vem quando as pessoas me dizem: “quando eu comecei a sair à noite no Bairro Alto. Epá, mas o Bairro Alto nos anos 90…” E agora eu oiço pessoas a dizer: “Mas o Bairro Alto em 2010…!”. E eu estava lá em 2010 e, na altura, só sentia a frustração do Bairro Alto não ser o dos anos 90.
É por isso que eu chego sempre a horas, que é para não me apanharem nessa, que é para depois não dizerem: “Epá, isto há meia hora, estava ótimo!”. Mas não está porque eu estava lá desde o início. É essa sensação de uma Lisboa sempre em queda.
Por isso é que também gosto do bairro das Colónias, porque oiço “o Bairro das Colónias há 10 anos, há 20 anos…” e eu consigo lembrar-me como era o Bairro das Colónias nesses anos. Agora, estou obsessivamente a registar a evolução do Bairro das Colónias para garantir que não me dizem isso, mas não consigo porque as pessoas dizem e eu também.
Mas achas que isso é uma questão de nostalgia?
As pessoas tendem a achar, que o melhor tempo coincide com o auge das suas capacidades, quando tinham 30 anos, por dois motivos: porque já não podem lá voltar e porque tendem a achar que o mundo era mesmo melhor quando elas eram mais fortes e mais robustas. Acho que isso é uma maneira engraçada de olhar para a vida, mas não corresponde à verdade. Eu acho improvável que o apogeu do mundo tenha coincidido com a juventude de quem fala. Acho isso improvável, mas se calhar vou chegar a essa idade e dizer as mesmas coisas. Tenho a certeza que sim.
Mas acho que isso acontece também porque nós não podemos voltar atrás. Nós dizemos que o Bairro das Colónias é que era há 15 anos atrás, ou há 10 anos, porque temos a sorte de não poder voltar ao Bairro das Colónias e ver tudo entaipado, ver aquilo cheio de toxicodependentes… e também porque não nos vemos, há 10 anos, no Bairro das Colónias, a chorar porque uma miúda não nos respondeu a uma mensagem ou porque um rapaz nos tinha deixado pendurados. Acho que é muito bom não termos de voltar atrás, porque nos permite criar um paraíso em algum sítio. Eu, enquanto jovem, ainda via esse sítio paradisíaco no futuro.
Sim, mas às vezes também pode acontecer uma outra coisa: que é tu projetares um passado no qual tu não estiveste, e tens uma certa nostalgia por esse passado que nunca foi teu. Acho que isso é uma coisa muito humana.
Sim, sim, é verdade. Mas isso tem a ver, acho eu, com o facto do mundo precisar de uma resposta melhor do que a que nos está a dar. Nós tendemos a pôr-nos nesse mundo porque, sei lá, nos anos 20 só temos os quadros, os filmes… Não temos a Grande Depressão, não temos pessoas na fila para pedir comida…
Eu acho que essa maneira de olhar para o passado é uma maneira de não olhar para este problema, de não estarmos bem e sentirmos falta de qualquer coisa, e de não parece possível encontrar uma resposta. As pessoas encontram-na, por exemplo, na religião. Eu, quando o Benfica ganha, encontro-me aí, mas não é fácil encontrar este sítio que nos faz sentir bem.
Por motivos técnicos, esta sessão não foi gravada. Ouça a sessão anterior no nosso podcast:
A próxima sessão do Clube de Leitura de Lisboa conta com uma presença e uma obra especiais. Fique atentos até ao anúncio.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

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