Não havia nenhum aviso que explicasse o que ali se ia passar: é essa a história que Adriana Almeida, moradora em Alcântara, e Barend Janssens, a viver no Beco da Bolacha, na Lapa, contam em relação às obras que de repente começaram nos bairros onde vivem. Com algum esforço, acabariam por aceder aos projetos, já aprovados: uma residência de estudantes em Alcântara e uma ampliação do Beco.

Diz o artigo 12º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – RJUE que é obrigatório colocar um aviso no local da obra que indique para o que é que se destina o aquele projeto:

“O pedido de licenciamento ou a comunicação prévia de operação urbanística devem ser publicitados sob forma de aviso, segundo o modelo aprovado por portaria do membro do Governo responsável pelo ordenamento do território, a colocar no local de execução da operação de forma visível da via pública, no prazo de 10 dias a contar da apresentação do requerimento inicial ou comunicação.” 

Mas, nestes dois casos, não foi isso que aconteceu. Nenhum aviso fazia adivinhar o que se passava no bairro destes dois moradores. A divulgação dos projetos em fase de licenciamento na cidade de Lisboa nem sempre é feita de forma transparente, dizem ambos.

Por que razão parece ser tão difícil saber o que está a ser construído no nosso bairro, na nossa cidade?

Foto: Inês Leote

Decreto 1: “A Câmara só comunica se quiser comunicar”

Sobre isto, a vereadora com o pelouro da transparência e prevenção da corrupção Joana Almeida não respondeu, recusando o pedido de entrevista devido a compromissos prévios de agenda.

Luís de Sousa, investigador do ICS na área da corrupção e da regulação da ética política.

Mas Luís de Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa) na área da corrupção e da regulação da ética política, diz que acontece mais frequentemente do que se pensa.

“Quando a Câmara quer comunicar, comunica. Quando quer fazer pela calada porque sabe que o equipamento é indesejável ou sensível, não comunica.” 

Também ele assistiu à aprovação de um projeto para a criação de uma sala de consumo assistido no Lumiar, próxima de escolas, creches e habitações, sem que a população participasse num debate informado, diz. Muito embora o projeto tenha estado em consulta pública desde 2018, como explicava o Público em 2021.

O projeto acabaria por ser travado por uma providência cautelar graças à contestação da comunidade.

Decreto 2: quem pode aceder a um projeto de licenciamento?

Quando Adriana e Barend tiveram acesso aos projetos, já eles estavam aprovados. Mas o que é preciso para que um munícipe possa aceder a um projeto em fase de licenciamento, antes de ser aprovado?

Segundo a Câmara Municipal de Lisboa, os munícipes a residir num bairro não são avisados quando um projeto é submetido para aprovação, a não ser que sejam “considerados interessados no procedimento e se constituam como tal, nos termos dos artigos 65.º n.º 2 e 68.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) ou caso provem ter interesse legítimo no conhecimento dos elementos”.

Vamos, então, por partes:

a) Por mais ambígua que a palavra “interesse” e “legítimo” possa ser no contexto legal, é o que a lei prevê para que alguém tenha uma resposta favorável ao pedido de informação, no qual devem submeter “documentos probatórios do interesse legítimo invocado”.

b) Depois de acederem ao projeto, os munícipes podem pronunciar-se acerca do mesmo. Para isso, devem apresentar uma reclamação, um requerimento ao processo ou fazê-lo “por via de impugnação contenciosa junto dos tribunais administrativos.”

c) Mas com o projeto já aprovado o caso muda de figura: Todo e qualquer cidadão poderá consultar ou obter cópia do procedimento, sendo obrigação da entidade administrativa garantir a observação das regras de proteção dos dados pessoais nos termos legais aplicáveis, explica a CML.

Na bacia da ribeira de Algés, estão em construção centenas de fogos habitacionais. Foto: Inês Leote

Decreto 3: como lutar contra uma residência de estudantes em Alcântara

Adriana Almeida e alguns moradores de Alcântara só foram a tempo de aceder ao projeto depois de aprovado, ao aperceberem-se dos trabalhos de prospeção num terreno entre a rua Pinto Ferreira e a rua Artur Lamas, um terreno geralmente usado para estacionamento. Nos papéis, o que descobriram era que ali ia construir-se uma residência universitária, da empresa Xior.

As obras entre a rua Pinto Ferreira e a rua Artur Lama. Foto: Adriana Almeida

Naquele quarteirão, nasceriam 124 apartamentos com capacidade para 166 estudantes. Um edifício com mais de 4000 m2, com quatro pisos à superfície e um em cave com uma cobertura plana, onde seriam instalados equipamentos técnicos como ares condicionados.

O licenciamento da obra fora aprovado em julho de 2020 em reunião de Câmara com os votos favoráveis do PS, PSD e BE e as abstenções de CDS e PCP. Mas só bem mais tarde – em abril de 2021 – é que a comunidade se apercebeu disso.

E aquilo que mais chocou os moradores foi a volumetria do projeto, que, ao ser realizado, representaria um aumento populacional de 20% num bairro que dizem já não ter estacionamento para os residentes nem espaços verdes (os lugares de estacionamento seriam reduzidos a 17).

Mas também a ventilação artificial causou desagrado. “Não há nada que garanta barreiras sonoras e visuais para nos salvaguardar”, denuncia Adriana Almeida. A medição do ruído na cidade não é ciência fácil e, tantas vezes, está no centro de polémica.

Quando descobriram o que estava em causa, estes vizinhos uniram-se e lançaram uma petição, que seria levada à Assembleia Municipal, onde argumentavam:

“Num bairro em que a densidade de construção já é extremamente elevada, em que o estacionamento é escassíssimo pela acumulação de moradores, alunos da Universidade Lusíada, trabalhadores de fora que vão para o centro de Lisboa e ali deixam as suas viaturas e comércio, somos absolutamente contra a construção da prevista residência de estudantes na Travessa Artur Lamas, nos moldes em que o projeto se apresenta atualmente.” 

Luís de Sousa, o investigador do ICS, diz que, muitas vezes, perante a falta de transparência, “o que tem mais força é a voz junto da comunicação social, na comunidade, sair à rua, armar barulho e pressionar os atores políticos e fazê-los entender”.

Mas, neste caso, a petição e a contestação popular não foram suficientes para se impedir a obra. O relatório sobre a petição, realizado pela Assembleia Municipal, mostrava que se procedera a uma reapreciação do projeto de arquitetura, apresentando-se um parecer técnico que concluía que o projeto estava em conformidade com o PDM.

No entanto, o relatório não terminava sem deixar uma recomendação à Câmara Municipal de Lisboa: 

“(…) em situações futuras [que] reforce os mecanismos de divulgação e participação junto da população diretamente e indiretamente afetadas e avalie a possibilidade de realização de sessões públicas.”

Era um aviso para que a transparência mudasse finalmente na cidade.

O projeto avançou há cerca de um ano. 

Decreto 4: cuidar de uma Zona de Proteção Especial

Barend Janssens diz que o caso dele é diferente. Defende que houve violação da legislação, ao não receber uma carta de aviso, visto ser afetado pelas obras.

Mas houve uma carta a chegar à caixa do correio: o proprietário da nova obra, Vasco José Luís de Melo, terá informado os moradores da Rua Arriaga nº31 a 37. Segundo Barend, os verdadeiros afetados seriam os das casas nº39-45, aqueles que geograficamente estarão mais próximos da obra. “Houve tentativas claras de ocultar o impacto que o projeto vai ter nas casas vizinhas”, acredita.

O Beco da Bolacha, no bairro da Lapa, está em transformação.

A antiga fábrica de bolachas Pampulha.

Este beco, assim batizado pois ali em tempos se encontrava a fábrica de bolachas da Pampulha (onde trabalhou Amália Rodrigues, antes de ascender ao estrelato), tem vindo a ser totalmente reabilitado, tornando-se num bairro residencial de luxo.

Agora, em causa está a ampliação do edifício 16A-16D, aprovada a 20 de janeiro de 2022, que levanta dúvidas nos moradores.

Quem aqui vive defende que estas novas casas, de grande dimensão, trarão um grande impacto visual ao beco, localizado numa área abrangida pela Zona de Proteção Especial, que engloba o Museu Nacional de Arte Antiga e edifícios classificados na área.

As transformações neste beco levarão a que o mesmo triplique.

Mas nenhum dos projetos apresentados inclua estacionamento nos seus planos, retirando assim espaço para que camiões de bombeiros passem pelo beco em caso de incêndio e dificultando a locomoção dos portadores de deficiência física, argumenta o morador.

Os moradores lamentam não se ter aproveitado esta oportunidade para construir a preços acessíveis, em vez de apostar em mais um projeto de habitação de luxo.

“Que desperdício ver um local histórico tão especial transformado em mais um projeto habitacional acessível apenas aos ricos e aos estrangeiros”, diz Barend. 

Barend Janssens escreveu uma carta à Câmara Municipal de Lisboa que, por sua vez, considerou que o projeto obedecia ao regulamento do PDM, sendo de “entendimento desta Divisão que os argumentos aprovados na presente exposição não são suscetíveis de alterar os pressupostos da apreciação do processo 1706/EDI/2019.”

A obra, entretanto, já arrancou.

Decreto 5: um outro modelo de governação

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Mas se em Lisboa tudo é envolto em algum secretismo, com a burocracia a dificultar o acesso aos projetos, há cidades onde os processos se desenrolam com mais transparência.

É o caso do bairro de Hammersmith & Fulham, em Londres, que disponibiliza uma plataforma através da qual é possível comentar em propostas e até receber alertas de e-mail de novos projetos a serem submetidos na área de residência dos seus utilizadores.

Também a plataforma do município sul de Dublin permite que, mediante o pagamento de uma taxa, os munícipes submetam observações referentes a projetos em licenciamento.

Tudo à distância de um clique.

Foto: Unsplash

Funcionaria este modelo para Lisboa?

Para o investigador Luís de Sousa, Lisboa tem um problema que se verifica também em cidades como Londres e Dublin: a sua dimensão. Só a freguesia do Lumiar tem 46 mil habitantes, diz Luís, e é por isso que defende que a CML devia seguir um outro modelo de governação: uma cidade com um governo metropolitano, com várias câmaras dentro de Lisboa. Aí, seria mais fácil gerir os assuntos das várias freguesias. 

Neste novo cenário, as novas tecnologias teriam um papel fundamental na tomada de decisões com as comunidades.

No entanto, a solução não pode passar só por aí. “Temos uma série de pessoas que são infoexcluídas, pessoas com níveis baixos de literacia e, por isso, é importante envolver as comunidades, as associações locais, as associações de moradores, criar um diálogo mais permanente, fazer inquéritos…”


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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