Sempre que digo a alguém que os meus filhos vão nascer em Lisboa, a resposta é uma pergunta, o mesmo pasmo: “Meu Deus. Como é que eles vão falar?” Na minha vida, ninguém se preocupa com problemas corriqueiros: ninguém quer saber das obras do Santa Maria, da capacidade do S. Francisco Xavier, das costuras da MAC, dos fechos rotativos das urgências, dos turnos de sete meses seguidos das equipas médicas, dos esgotamentos dos directores clínicos; ninguém quer saber se a Saúde24 se entope, se há macas, obstetras, cesarianas. Ninguém liga ao caos do SNS nem à falta de confiança nos privados para assuntos com riscos. Ninguém passa cartão ao número de assoalhadas da minha casa que todos os dias se aguenta, toureando a Euribor. Assume-se que tudo isto são meros obstáculos e depois, claro, começa a vida a sério – e com a vida a sério vêm as questões que importam.

Lá os ouço, com a paciência de quem, no ringue, se prepara para a luta. Ainda sem a ter começado, dou a mesma resposta aguerrida: “Vão falar com sotaque do Minho, como eu. Vão falar como ouvem em casa.” Claro que tantos anos aqui já me puseram a gravata à língua, e que já não há vogais que esvoacem livremente pela boca, mas gosto de manter a ilusão de que uma cidade não pode a sós vencer uma fonética, de que Pedrosa nenhum abdica do betacismo, de que não há um único de nós, guerreiro, que ceda às fricativas na hora da verdade, de que nos lembramos todos da sigla de um acidente vascular cerebral porque sabemos que são três letras seguidas. Pedrosas que nascem fora da fronteira ouvirão a Gisela João a falar mas nunca a cantar, que até quem canta fado à lisboeta sabe falar sem pó. Pedrosas que nascem a 350 quilómetros de casa não podem chamar casa a mais nada, e por isso abdicaremos de Carlos do Carmo, Fernando Pessoa e televisão.

Explico os meus planos e a preocupação mantém-se: “Sabes que eles vão ser lisboetas, certo?” Mas é impensável. Sangue que sai de sangue vizelense não pode ser mais nada. “Nem pensar. Vão ser vizelenses como a mãe.” Ainda me perguntam como raio vou fazê-lo; como é que, morando aqui, eles vão achar que são de outro lugar. E depois perguntam-me assim: “Vão ser daqueles lisboetas irritantes que dizem que nasceram aqui, mas a mãe nasceu não sei onde, como se alguém quisesse saber da mãe?” Mas claro que não. Aliás, era o que faltava – vão é ser vizelenses a espalhar Vizela pela pátria. Lisboa, sendo tão múltipla, tem de ter espaço para nós. O que mais me espantou ao chegar foi mesmo isso: as cores, os temperos, os sotaques, as roupas. Uma capital europeia, entrado o ano 2024, pode ser tudo menos monocromática, monossotáquica, monorroupática.

Para conseguir meter a patranha em casa, a estratégia será a mesma que foi espetada a um primo meu: o desgraçado nunca teve morada em Vizela e sempre acreditou que era de lá. Até agora, a bater nos 30 anos. Quem o conhece vê-lhe o brilho nos olhos, sabe que ele se julga um de nós – e não é a crença que lhe indica o futuro? O caminho foi sempre fazê-lo fanático do Futebol Clube de Vizela, até que ele se pusesse a sonhar com altos voos, com a braçadeira de capitão em pleno estádio. Nunca chegou a essas alturas, a vida nunca lhe foi vertigem, o máximo que vimos dele foi meia dúzia de jogos no Rebordosa, que lhe ficava mais perto do quarto em que dormia, e esse pragmatismo venceu. Mas ninguém se iluda: quando o Vizela vai ao estádio, ele sofre tanto como nós.

Ser vizelense é amar Vizela e isso basta. Já quanto a Lisboa, a coisa é mais difícil. Mil heróis tentaram, mil jagunços também e, no fundo, ninguém sabe bem o que é um lisboeta. Fernando Pessoa tentou – e deu por si tão desgraçado que teve de ser mais quatro ou cinco, e de repente já era um gajo qualquer à procura de um rio numa aldeia. Cesário Verde também tentou, e pouco mais teve para dar ao mundo do que a luz a pingar de um candeeiro de óleo na noite do século XIX às portas do Rossio. João Pedro Vala também tentou – e, como pode ler-se na Mensagem, o desgraçado descreveu gente desgraçada ainda à procura de uma casa.

Aqui, andamos todos ao mesmo: todos de GPS à procura de uma paz. Quando os meus filhos nascerem, serão enganados pela certidão de nascimento, que lhes dirá que são daqui, que lhes dirá que o chão é deles, este chão que já não consegue ser de ninguém. Em casa, eu continuarei a remar contra a cidade – é uma espécie de vingança pelas vezes em que a cidade rema contra mim, e ainda por cima é uma vingança que não serve para nada nem me vinga.

Deve haver mais gente como eu, gente a quem não pese andar a arrastar raízes. Eu arrasto-as e até dou cabo dos sapatos, e volta e meia também dou cabo da língua, e admito que sim, há um ditongo ou outro mais estranho a arranhar-me a garganta, mas é só de vez em quando e nada que me ponha em causa o sangue azul. Mas já deu para ver que isto vai ser uma luta, ainda que os lisboetas até devessem dar-me a mão, ainda que eles saibam que vivem à nora numa terra que cada vez parece menos pertencer a alguém. É que, aos poucos, o alfacinha de gema é um fundo imobiliário angolano ou um inglês reformado a querer pescar vista para o Tejo.

Contra os cépticos, continuarei nesta luta, ainda que a sós, a única Pedrosa de Vizela registada na Loja do Cidadão das Laranjeiras. E sei que as raízes, como o sangue, são coisas que não cabem num argumento só. O que nos safa, no meio disto, é a família – gente que nasceu connosco e sabe para onde vamos, gente que sabe o que nos vai aos calos, o que nos importa para sermos felizes. Ou seja, o que me safa é o meu primo Pedro, que quer à força toda saber a data de parto, ainda que eu não tenha uma data de parto para lhe dar. Lá lhe digo que tal e tal, quem sabe se, gémeos, imprevisível, etc., vamos vendo. E ele insiste: “Mas quando souberes diz.” Eu chego a achar estranho tanto interesse vindo de alguém que me atormenta desde que nasci, mas que não haja lugar para mariquices: “Diz-me quando estiveres a ir para o hospital, que é para eu ir logo a casa fazê-los sócios do Vizela.”

“Casa”, para mim e para ele, que já não moramos lá há quase quinze anos, continua a ser aquela fenda longa num vale em vários tons de verde. Que estes dois, que nascerão não se sabe bem onde, que isto de ir para a maternidade em Lisboa é como jogar ao Totoloto, se mantenham como nós. E que não se enganem: casa não é onde moramos, casa é onde a nossa mãe nos diz que é.

A autora escreve com o antigo Acordo Ortográfico


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.


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