Quando vejo que é ele que está na portagem, antecipo o momento, sei as palavras, mais entusiasmadas quando o tempo sem nos vermos o pede, mas quando as oiço é o mesmo espanto da primeira vez. Parece que qualquer coisa se desmancha em mim, talvez a armadura dos dias, levanto os olhos e abro o sorriso que dura uma eternidade, que é o tempo que leva a atravessar a ponte. Às vezes, um bocadinho mais.

O rapaz da portagem da Ponte 25 de Abril é um tratado de psicologia positiva. É a prova de que os postulados de quem tantos desconfiam e reputam de banha da cobra e pseudociência estão todos certos. O afeto com que dá os bons dias, o toque demorado na mão quando recebe o cartão e dá o recibo, o elogio rasgado…

“Ai, está tão linda hoje!”

“Tinha tantas saudades suas!”

“Deus existe!”

… estimulam de certeza a produção de oxitocina, dopamina, serotonina, ou seja lá o que for, que trazem bem-estar, boa vontade, alegria, boa disposição e fazem de nós potenciais papas Francisco, dispostos a espalhar o bem e o amor ao próximo e a despojar-nos dos bens materiais. Nomeadamente dos dois euros que pagamos de cada vez que atravessamos a ponte.

Tenho a certeza de que o rapaz da portagem – que dizem que se chama Samuel, não sei, nunca tive tempo de lhe perguntar – me diz aquelas coisas só a mim, embora saiba que o faz com toda a gente. Tanto que já lhe dedicaram uma página de Facebook e são muitos os tributos que lhe são feitos por essa internet e blogosfera (quando existiam blogues) fora. Naquele momento diz-me só a mim e é isso que ele tem de especial, faz cada uma das pessoas a quem diz o que diz a todos, todos, todos, sentir-se única. E isso transforma-lhes o dia. É uma espécie de antidepressivo natural.

E talvez seja contagiante.

Passo nas portagens da Ponte 25 de Abril muitas vezes – isso e a subida das taxas de juro hão de guiar-me à ruína -, mas não tenho a veleidade de pensar que os portageiros já me conhecem. São milhares as pessoas que passam ali todos os dias. No entanto, outro dia, uma senhora, magra, cabelo curto grisalho, por quem já passei milhares de vezes, abriu o rosto circunspeto e com um sorriso maravilhoso, disse-me:

“Já não a via há tanto tempo. Está muito bonita. Está tudo bem? Bom dia!”.

O espanto mais uma vez, o sorriso que dura uma eternidade e a gratidão ao rapaz, à senhora e a quase todos os portageiros da Ponte 25 de Abril, que fazem esquecer os dois euros, as horas no trânsito e os quilómetros de fila.

Ah, e ao responsável pelos recursos humanos da Lusoponte, que também merece uma palavra de apreço. Não é fácil criar uma equipa com tantas boas pessoas.


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.


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12 Comentários

  1. Em familia chamamos-lhe “Jonas”… nunca soube o nome dele porque somos arrebatados pela simpatia e simplicidade.
    A via verde é uma mais-valia, exceto na ponte 25 de Abril porque nos coíbe de ouvir o ‘Jonas”.
    Recordo-me especialmente de um dia em que regressava completamente exausta duma reunião. Calhou-me o “Jonas” na portagem e, juro, até hoje as suas palavras ecoam em mim: “Olaaaaaaa! Há quanto tempo não a via… que saudades!”
    De sorriso rasgado, memoria apagada, segui em frente.
    O “Jonas” é realmente especial….

  2. Verdade, verdadinha! A 1a vez que este Sr. me atendeu conseguiu arrancar me um sorriso o dia inteiro, contei o sucedido a todas as pessoas com que estive. E ainda hoje quando vou pagar a portagem vem me à cabeça… “Deus queira que apanhe de novo o” meu amigo””. 💓

  3. Adorei, adorei!!
    Sim, também eu já ouvi estes elogios do “Samuel”. Agora menos, pois tenho Via Card, mas quando me esqueço de carregar o cartão e vou para uma portagem com portageiro, encontro, algumas vezes, o “Samuel”.
    Sorriso sempre presente, uma frase que me encanta e um olhar maravilhoso… como se nos conhecessemos há décadas.
    E fica sempre a vontade de nos voltarmos a encontrar…
    Parabéns à Catarina Pires!!
    Pelo post.
    Por um jornalismo feliz.
    Por esta partilha.
    Por me fazer recordar que ainda há pessoas que tentam fazer do nosso dia, um dia melhor.

  4. Esperem até ao dia que, toda esta simpatia, seja transformada em “assédio”, por uma qualquer “boneca” que, vinda de uma noite mal dormida, lhe pede a identificação, e o nosso amigo “Samuel”, terá de se apresentar nos RH, para ser inquirido no que dará, o respectivo processo disciplinar. Aguardem…

  5. E uma vez , disse nos ” bom dia … já ganhei o dia ” foi uma alegria essa passagem , ainda hoje é tema de conversa 😉

  6. Passava a ponte quase todos os dias e fazia questão de ir para a cabine onde costumava estar (10). É muito bom ser recebido com aquele sorriso e com aqueles elogios.
    Este senhor é maravilhoso 🙏🏼

  7. Muito obrigada por mencionar o bom trato desse rapaz. É uma alegria pagar lhe os 2€, parece que nos apazigua a alma e faz nos esquecer todo o mal á nossa volta, nem seja por breves minutos. Faz nos crer que vivemos num mundo bom. Um bem aja para ele.

  8. Não conheci o Samuel na portagem da ponte 25 de Abril mas sim na escola secundária do Monte de Caparica que frquenrava regularmente nas suas tarefas.Sempre bem disposto com as suas palavras amaveis k nos deixavam sensibilizadad e bem dispostas logo pela manhã. Tomara k houvesse mais Samueis no mundo.k Deus te proteja sempre.

  9. Obrigada Catarina!
    O ‘”Ai, está tão linda hoje!” e
    “Tinha tantas saudades suas!” cai quase no esquecimento, tropedado pela Via Verde…
    E que falta nos faz à alma pelo bem que nos faz ao ego!

  10. Ainda no domingo passado encontrei o Samuel numa das grandes superfícies aqui na margem sul, ia eu com a minha irmã e claro comentei “olha o Sr da ponte!” Olhou para nós, sorriu e respondeu nos: “Olá! Estão tão lindas! Há tanto tempo que não as via! Que saudades! “
    Como não ficar indiferente? Há lá melhor elogio do este…
    Tão querido que é receber um elogio destes.

  11. Maravilhoso ler isto tudo!
    E que tal fazermos todos o mesmo?
    Eu pratico todos os dias, é facílimo e deixa me bem.
    Um belo sorriso, umas palavras simpáticas, e sinto que as pessoas ficam melhor.
    Gosto particularmente de falar com pessoas idosas.
    Experimentem!

  12. Realmente, é um acalento para alma ouvir e ver pessoas como o rapaz da portagem. Há também uma senhora muito querida, usa os cabelo curtos e toda vez que falamos alegra meu dia.
    Pessoas como essas fazem nos perceber que a vida vale a pena, que gestos simples transformam vidas. ❤️

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