É do domínio público que poetas como Pedro Homem de Mello ou David Mourão-Ferreira escreveram algumas das mais emblemáticas letras de fado, como Povo Que Lavas no Rio ou Abandono (mais conhecido por Fado Peniche, um poema “perigoso” que Amália cantou corajosamente nos tempos da ditadura).

Porém, os poetas ditos eruditos (por oposição aos populares) chegaram ao fado já ele era um senhor de idade, a meio do século passado, e por causa de uma história bem curiosa.

Amália Rodrigues estava desejosa de imprimir mudanças no fado e de cantar letras mais sofisticadas, tendo encontrado num jornal um poema chamado As Penas (bem bonito, por sinal), erradamente atribuído a Guerra Junqueiro.

Se ela soubesse que o dito poema era de um senhor chamado Fernando Caldeira, talvez nunca o tivesse chegado a cantar; mas pouco importa, esse é decididamente o momento em que a diva começa a procurar poemas entre os textos de autores com obra publicada para encaixar em melodias do fado tradicional.

Não o faz completamente sozinha, é bom que se diga, pois, a partir de certa altura, conta com o conselho avisado de Alain Oulman, o músico francês residente em Lisboa que conhece pessoalmente bastantes autores e que acaba por compor expressamente para alguns deles e para outros poetas, vivos ou mortos.

Chegam assim naturalmente aos contemporâneos Pedro Homem de Mello, José Régio, Alexandre O’Neill, David Mourão-Ferreira, Manuel Alegre ou mesmo Ary dos Santos, mas também desenterram dos livros poetas clássicos, como João Roiz de Castelo Branco ou Bernardim Ribeiro.

E, como não podia deixar de ser, um dia começam a dedicar-se ao poeta maior da pátria (com Erros Meus, Dura Memória, Perdigão…) e arriscam tudo nesse sublime fado de Camões que é Com Que Voz, alcançando uma das composições e interpretações mais belas de sempre.

No entanto, em vez do aplauso que seria óbvio, cai o Carmo e a Trindade! Camões metido no fado?! É preciso descaramento! (Há até quem diga que agora Amália “canta fados à Picasso”…)

E nem se pense que quem está contra a ousadia é o povo que vê o fado como canção popular e acha que não é à toa que o Dia de Portugal é também o de Camões. Não, as vozes que se levantam contra o abuso são as de intelectuais entre os quais se contam, por exemplo, o romancista José Cardoso Pires e o poeta José Gomes Ferreira.

Preconceito? É provável. O Diário Popular até fez um inquérito a várias figuras públicas para saber quem achava bem e mal que se cantassem fados com poemas de Camões.

Amália e Oulman saem, porém, vencedores; até o camonista Hernâni Cidade declara: “Amália tem todas as capacidades indispensáveis para ampliar o renome de Camões, e para o fazer sentir mais vivamente.”

Falou, e com que voz.


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.


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