À esquerda, o Transpraia a 29 de junho de 1960, o dia da viagem inaugural. À direita, o Transpraia à passagem pelo centro da Costa da Caparica, de onde viria a ter de sair em 2007. Fonte: Transpraia

Nem mesmo António sabia que aquele seria o último ano dos comboios da praia. Há quatro anos, em 2019, circulavam sem aviso pela última vez, ao fim de 60 anos. Chamavam-lhe Transpraia ou “o comboiozinho” e percorria os nove quilómetros que separam a praia da Costa da Caparica e a Fonte da Telha.

Em 2019, o Transpraia estava já longe dos tempos em que saíam apinhados e em que as pessoas “passavam umas por cima das outras”, fugindo à Polícia Marítima que tentava impor a ordem na fila. “Quando o comboio chegava, era a loucura”, recorda António Pinto da Silva, o atual administrador.

No pico do verão, trabalhavam aqui cerca de 20 pessoas, quatro das quais maquinistas. E ao fim de semana chegavam a circular quatro comboios em simultâneo, dois por sentido. “Um atrás do outro”.

Embora nada fizesse crer que iam deixar de circular, em 2020 a pandemia de covid-19 veio e, com ela, as carruagens recolheram às oficinas. Desde então, não voltaram a sair.

Hoje, os comboios da praia estão trancados, protegidos por uma fechadura teimosa de uma oficina na praia da Riviera – mas que abriu naquele dia para lá entrarmos.

A oficina onde os velhos comboios Transpraia descansam. Foto: Rita Ansone

Há 63 anos que António tem uma ligação direta ao comboio das praias. É filho do cofundador da empresa, Casimiro Pinto, e trabalha nos comboios da Costa desde 19 de junho de 1960, o dia da viagem inaugural. Tinha 16 anos.

Com o passar do tempo, acabou por fazer de tudo: varria carruagens, “dava ao braço para encher o depósito de água”, mas também era maquinista, transportando largas dezenas em cada viagem.

“Foram muitos anos. No verão, era entrar aqui às sete e meia, oito da manhã e sair às nove e meia, dez da noite”. António lembra-se como, de junho a setembro, os comboios não paravam de transportar veraneantes.

Agora, diz-nos, deseja “sopas e descanso” – como “o comboiozinho” (como era conhecido) precisou. Mas acredita que há futuro à vista para esta memória da Costa da Caparica.

António Pinto da Silva, proprietário da empresa Transpraia, está ligado ao comboiozinho das praias da Costa da Caparica há 63 anos. Diz-se “cansado” e, com ele, os comboios não voltam a circular, mas assume ter esperança que possam voltar com outra liderança. Foto: Rita Ansone

13 anos de azar: a morte lenta do comboiozinho

“Estava exatamente no centro da Costa”. O comboio das praias tirava partido da localização central, era um sucesso na zona e para quem vinha às praia da zona. Até que, em 2007, tudo mudou.

Nesta mesma altura, as obras de requalificação da frente marítima da Costa da Caparica, conhecidas como Polis, levaram a uma mudança importante: o terminal do Transpraia foi obrigado a afastar-se cerca de um quilómetro do centro do município, para a Praia Nova e para junto do parque de campismo.

Foi aqui que as coisas deixaram de correr bem: afastado do centro, a faturação registou uma quebra de 60%, diz. E os últimos 13 anos do Transpraia sofreram com a deslocalização.

Na imagem, um aparelho manual de mudança de via. Foto: Rita Ansone

O distanciamento do centro é apontado por António Pinto da Silva como a grande causa do declínio do Transpraia. “A visibilidade está ali [no centro]. As pessoas chegam e é ali o ponto de entrada na Costa, é ali que [o comboio] deve estar.”

Na fotografia, novas travessas produzidas pelos trabalhadores do Transpraia, antes da pandemia. Foto: Rita Ansone

Na altura, conta que lhe fora prometido pela Câmara Municipal de Almada o regresso a um local mais central, terminadas as obras: propunham instalar o terminal junto à lota, numa aproximação ao centro de cerca de 500 metros, recuperando metade da distância que havia perdido.

Foi com esta expansão em mente que se produziram as últimas travessas, ainda visíveis no exterior do parque de material e oficinas. António acredita que significaria a entrada “numa zona com uma visibilidade que não tinha”. “Melhorava muito”, mas nunca aconteceu.

A pandemia veio colocar um ponto final à operação, sem que haja hoje vontade de retomar a exploração da linha. António está em paz com o desfecho. Os comboios podiam ter voltado a circular, garante. “Fui eu que não quis”.

Hoje, apesar de encerradas dentro do parque, o empresário afirma que as quatro locomotivas e as 20 carruagens estão aptas para retomar funcionamento, assim haja essa vontade. “Não têm problema nenhum”.

Duas das quatro locomotivas da frota. Foto: Rita Ansone

A oficina em que o tempo parou

“Com boa vontade, pode ser que a gente consiga abrir a porta. Não se ria, porque não vai ser fácil”, diz António, à chegada ao parque de material e oficinas, situado na praia da Riviera.

O buraco da fechadura evidencia a idade da porta e os detritos que lá se acumulam e denuncia a frequência das visitas que o espaço tem tido ao longo dos últimos três anos.

António vem aqui “o menos possível”, diz-nos. Nos últimos meses, fez, no máximo, duas ou três visitas. Vem sobretudo para ver se está tudo bem. Sem intenção de retomar a circulação dos comboios, pouco há a tratar.

“Uma volta já deu. Duas”. António remove pequenas pedras da fechadura e quando a chave roda pela primeira vez, o pessimismo que se havia instalado cede o lugar à expectativa. “Quatro”. A porta abre.

“Não me peçam luz”. Excetuando o sistema de alarme, a eletricidade não chega hoje aos restantes equipamentos da oficina. “Está aqui tudo fechado, é o que veem”.

A luz entra por uma secção de placas transparentes no telhado e é suficiente para iluminar a garagem que é parque de comboios e local de manutenção dos mesmos. À esquerda, revela-se uma parede repleta de ferramentas e, em frente, está cada uma das 20 carruagens do Transpraia, acompanhadas das quatro locomotivas, compondo a totalidade da frota.

Junto das ferramentas, está uma máquina que António diz ser nova, comprada “em 2017 ou 2018”, quando ainda não considerava o encerramento da operação. Um desperdício, conta.

O auge da operação aconteceu depois do 25 de Abril, diz, “entre 1974 e 1984”. No período que antecedeu a revolução e ainda durante alguns dos anos que se seguiram, “era chapa ganha, chapa gasta”.

“Eram os preços que o senhor tenente queria, não dava para nada”, António conta que chegou a ser o tenente da Polícia Marítima da Trafaria a definir o preço dos bilhetes. “Tinha três casas na Fonte da Telha e não lhe convinha que os bilhetes fossem muito caros.”

O comboio fazia furor na Costa da Caparica, mas só quando foi possível definir livremente o preço dos bilhetes, anos mais tarde, é que o negócio passou a ser viável.

Nunca houve lugar a modernizações profundas do material circulante, mas ali “o pessoal esteve sempre habituado – quando havia uma avaria, não se arranjava, punha-se material novo”. Isto porque, conta António, as condições assim o exigiam. “A areia dá cabo de tudo, destrói tudo, é feita de lixa”.

Mas, nos últimos anos da operação, a capacidade financeira para garantir a operação começara a ficar em causa, admite.

Para além de toda a manutenção dos comboios, os trabalhadores do Transpraia retiravam a areia que se ia acumulando em vários pontos do traçado, que contava com quatro estações e 15 apeadeiros, mas também colocavam os carris e produziam as travessas.

Quando a operação foi suspensa, em 2020, havia nas oficinas carris e travessas (produzidas nos últimos anos) suficientes para assegurar a manutenção do traçado, mas também para expandir.

Uma nova vida para o Transpraia?

Com António, os comboios não voltam a circular. O filho, que também esteve na empresa nos últimos anos, trabalha hoje noutra área. Mas isso não significa que o proprietário do “comboiozinho” dê o assunto por terminado.

Questionado sobre se acredita que volta a ver o comboio da praia a circular, responde: “Por que é que não hei de acreditar? Daquilo que oiço, estou perto de acreditar que ainda se vai fazer [negócio]”.

Têm surgido interessados no Transpraia e, segundo o administrador, entre estes conta-se a Câmara Municipal de Almada. Segundo António Pinto da Silva, a autarquia terá apresentado propostas, mas os valores terão sido inferiores aos desejados, pelo que o negócio não chegou a concretizar-se.

Perante linhas enterradas na areia, António Pinto da Silva diz-se confiante no regresso do comboio às praias da Costa da Caparica. Foto: Rita Ansone

No seu discurso de tomada de posse, após a vitória eleições autárquicas de 2021, a presidente Inês de Medeiros apresentava o compromisso de “modernizar e ampliar o Transpraia”, numa expansão prevista do traçado até à Trafaria, onde chega o barco que vem de Lisboa, da Estação Fluvial de Belém. Também o presidente da Junta de Freguesia da Costa de Caparica, José Ricardo Martins, defendia em 2020 a expansão pela mão da Câmara Municipal de Almada.

A Mensagem enviou um conjunto de questões à Câmara Municipal de Almada, não tendo obtido resposta até à data de publicação deste texto.

Agora, cansado, António já não volta a colocar os comboios nos carris, garante. Mas acredita que ainda vai assistir a alguém que o faça.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt

Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

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12 Comentários

  1. É um crime o que se fez ao acabar com os comboio. Dizem ser forças de esquerda ou de direita. Isto nunca podia acontecer. Eu que em criança fui de comboio para as praias, só espero que volte acontecer para as crianças de hoje.

  2. Só conheci e fiz estes 9 kms no comboiozinho, uma vez na vida, mas chegou para hoje falar dele com grande nostalgia e tristeza pelo seu fim! Espero voltar a vê -lo a circular, a alegrar as crianças de hoje que merecem conhecer esta preciosidade, tal como eu conheci. Haja esperança!

  3. Tão lindo, espetacular os comboios passarem na praia, desde bebé k me lembro dele. Apanhavamos o comboio para ir as compras n costa….Bons tempos, nunca deveria ter acabado, e espero sinceramente que volte k mais rápido possível 😀🥰💜

  4. O Transpraia, enquanto o percurso da Costa da Caparica até à Fonte da Telha, tinha muita freguesia. Fiz algumas viagens, ia a pé da Fonte da Telha à costa e regressava no comboio. Também ia as compras à costa. A linha está muito danificada.

  5. É urgente voltar a colocar o Comboio da Praia a circular, com a responsabilidade da Câmara e da Junta da Costa de Caparica e com preços acessíveis e assim dar uma alternativa ambiental a este percurso Costa-Fonte da Telha
    Mais transparência na negociação q esteve em aberto com a CMA.
    O proprietário do Transpraia ficará para a história, mas ao desistir de voltar a circular, não exercendo a função, deverá deixar de ter a concessão do areal e nesse sentido deveria ser mais flexível na cedência à Camara.
    Obrigado

  6. Olá o meu nome é jose lopes e represento a Happy Trails Portugal .A Happy Trails Portugal é uma empresa de Turismo e atividades na natureza registada no turismo de Portugal . A Happy Trails Portugal está a inovar no turismo sustentável , já tem um espaço em Belém junto ã estação fluvial de Belém o que transformou este espaço que era um antigo cais de embarque num quiosque de Turismo sustentável onde tem ãs bicicletas elétricas e faz alugueres e tours para a ligação de Lisboa Belém á trafaria através do ferry-Boat -a Happy Trails Portugal tem um projeto de turismo sustentável para a ligação mesmo de Lisboa á Transpraia para desenvolver uma dinâmica turística sustentável com os comboios . Já Tivemos uma reunião com a câmara municipal de Almada nesse sentido . Caso queira falar e conhecer o que pretendemos fazer e visitar o nosso Quiosque em Belém estou ao dispor
    Cumprimentos jose lopes sócio gerente da Happytrailsportugal
    Temos site visite http://www.Happytrailsportugal.com

  7. A Câmara Municipal de Almada pode e deve de apoiar esta pequena empresa, a Transpraia, tem dinheiro para isso e muito mais. A expansão do comboio devia ser da praia da Cova do Vapor até há Fonte da Telha, quem ganha com isto é a hotelaria, comerciantes e outros da área, além dos veraneantes. Gasta-se tanto dinheiro aqui e ali, mais um apoio não fazia mal a ninguém. Mais comboio menos carros e menos poluição, penso eu. Obrigado

  8. A Câmara promete fazer pela metade do quadruplo do preço. Por outro lado, para vender, o dono pede o preço vezes doís.

    Em toda a situação, quem deixou de ter a estrutura a disposição foi o pagador, que nem era a Câmara e nem era o dono.

  9. Era um ponto de referência da Costa da Caparica, quem não gosta de confusão da praia era óptimo para fugir ao trânsito e estar numa praia mais sossegada. É de lamentar terem acabado com o comboio, o ponto de partida Tem que Ser Central, voltar a ser o que era, pela Costa e por quem fez este maravilhoso trabalho toda uma vida.

  10. Não sei porque a CM Almada não activou e expandiu este combóio, ou uma versão melhorada que ligue aos barcos da trafaria. A única explicação que encontro é que, como habitualmente, o transporte público nunca é uma prioridade.
    Já para promover a circulação automóvel, nunca faltam meios: https://almadense.sapo.pt/mobilidade/moradores-lancam-peticao-contra-o-alargamento-do-ic20-medida-obsoleta-num-contexto-de-emergencia-climatica/

  11. Achava maravilhoso poder voltar a viajar nesse comboiozinho! Era muito mais fácil chegar às praias longe do centro da Costa.
    Apanhava a camioneta na Praça de Espanha e saia na Costa da Caparica. Depois era só apanhar o comboiozinho até à praia que me apetecesse! Sem filas, sem carro… Sem nada!
    Mesmo mais velhota, espero que possa voltar a acontecer!

  12. Eu acho que andei nesse comboio mas ja nao me lembro…lembro-me apenas de o ver a passar mas a Caparica nunca foi praia de eleição para nós…o problema de todos os negócios (sim, porque isto é um negócio), é que quem fica à frente daquilo ou herda, pensa que tem ali uma mina de ouro mas apenas rende ao inicio pela graça de viver as memorias…o meu mesmo irá acontecer se abrirem a Feira Popular ou o Ondaparque outra vez…mata-se a nostalgia e depois acabou. este ultimo talvez se safe melhor porque parques aquaticos só no Algarve.

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