Por infortúnio matrimonial, lá dei por mim num veterinário. Depois das tantas vezes  que arrastei a cônjuge comigo para as urgências, era o mínimo fingir que um gato doente era o apocalipse. Logo à cabeça, tudo bizarro: na sala de espera, as pessoas inquietavam-se como se estivessem num pediatra, com afagos e miminhos e beijinhos e “Calma, meu amor”, “Já vamos, querida”, “Que foi, pequerrucha?”. Já vi casamentos com menos romantismo. Estávamos numa sala em Campolide e perguntei-me se toda a gente era freelancer ou ama de felinos. Eram onze da manhã.

Lá entrámos para o consultório. Sentei-me a um canto, mesmo à voyeur, e a primeira frase da veterinária deu-me logo vontade de telefonar ao Fernando Medina, só para lhe perguntar se podíamos obrigá-la a dupla tributação por tempo indefinido. Sem vergonha na cara, ela dissera isto a um gato:

– Olá, Zuquinha Querida. Como é que está a menina?

Vinte segundos depois, a Zuquinha Querida já fora promovida a Dona Zuca. E depois foi uma mariquice de diminutivos, como nem num talho se vê. Era o bracinho, era se ela deixava tirar o sangue benzinho, era como estava o pelinho, era se andava bem das patinhas. A minha senhora, muito preocupada com o gato, respondia-lhe, e não pude deixar de me espantar com o desplante da veterinária: tratava a humana por tu e a gata por você. Talvez a única coisa mais parola do que fazê-lo com uma criança.

Há uns anos, quase no tempo em que os animais falavam, também tive uma namorada que não tratava a irmã por tu, irmã a que, ainda por cima, chamava Xuxu. “A Xuxu deseja pão?” Escusado será dizer que a paixão morreu naquele dia – a minha paciência para o ridículo só aguenta dois minutos. Anos depois, via-me ali numa situação que parecia bem pior, mas desta vez não havia como mandar tudo ao charco. Era revirar os olhos e ver no que é que a vida dava. E pasmar com a veterinária, claro. Quando aleijava a gata, dizia “Desculpe, querida” e depois fingia um diálogo, simulando voz de gato e tudo:

– Mas também me fizeste mal!

– Oh, oh, dona Zuca, tem de ser, já sabe.

– Mas doeu muito!

– Ooooh!!! Coitadinha.

A sério, era com três pontos de exclamação e tudo. E ainda por cima fazia beicinho a olhar para a gata. Talvez um amigo pudesse dar-lhe um toque para ela parar com aquilo ou, melhor ainda, um psiquiatra? Enquanto cogitava se a gata seria operada, eu perguntava-me que raio de médico lhe teria feito uma lobotomia.

Lá se descobriu que a gatinha tinha um cancrinho, uma linfomazinho que já só lhe ia dar um aninho de vida, no máximo. Falando de um cãozinho com um problema semelhante, dizia: “aquele menino”. Aquele menino também tinha tido um cancrinho. Puxando-lhe a pata, disse-lhe assim: “Desculpe, bebé.” E depois, virando a direcção dos olhos, acrescentou: “Ah, não, dona, há aqui outro linfoma”. Reduzindo uma humana à posse de um gato – a identidade, o nome, à posse de um gato –, conseguia dar 2-0 às creches que tratam os adultos por pai e mãe. 

O novo diagnóstico trouxe nova data de termo. Depois disto, não passaria de umas semaninhas, uns mesinhos. Entrou a assistente e, de repente, três adultas discutiam a situação renal de um gato como se fosse a invasão da Ucrânia. Para facilitar a vida ao animal, a veterinária sugeriu laxante, e o meu estômago revoltou-se ao ver a limpeza da minha casa a andar para trás.

A convivência entre mim e bichos é difícil. Nada contra eles – desde que estejam in a galaxy far, far away. Partilhar a vida, o espaço e o sofá com eles é que não me entra na cabeça. Mexe-me com os nervos, põe-me em xeque as narinas, revolta-me as entranhas. Também acho graça a nadar ao lado de tartarugas em mar aberto, mas já me ia custar ter duas na banheira a dividir o gel comigo.

Enfim, a gata tinha cancro. Até tive pena dela. Mas tenho mais pena de mim por ter de lidar com ela. Na minha cabeça, a solução para o nosso problema era que alguém a levasse de casa e pronto, e ela fosse feliz num sítio qualquer longe de mim. Eu também seria feliz por estar muito longe dela. Desde que chegou, em vez de paz conjugal, a vida é um tormento. Vou dormir, a gata mete-se a fazer sprints pela casa. Vou ao banho, ela resolve entrar de mansinho e ficar a olhar para mim, que sou do mais púdico que há. Cubro-me com a toalha, tento enxotá-la. Nem um banho em paz posso tomar. E, claro, os pêlos do bicho juntam-se à humidade, ou então juntam-se na sala às carpetes, ao sofá. É três quilos de gente e está em todo o lado e ainda espalha pedras pelo chão inteiro e a minha vida consiste em andar atrás dela para ela não fazer asneiras. Enfim, fora a pena, que o cancro fizesse o que eu não tive coragem de fazer.

Cogitei tudo isto e voltei a ouvir a veterinária. Lá estava ela, como se dissesse coisas válidas. Tinha sete filhinhos em casa, dizia. Eu nem cheguei a pensar “Que maravilha, uma família tão grande, um Natal com tanto amor, dias voltados para o essencial da vida”, porque percebi logo que ela estava a falar de bicharada a encher-lhe de pêlos o sofá.

Enquanto continuava a medir linfomas, a senhora louca contava a história de um sobrinho (humano, supus). Tinha um cão que adorava e uma namorada que odiava cães. Na casa dele, era impossível estar: pêlo de cão por todo o lado, quatro patas a correrem-lhe em cima da cara. A miúda aguentava lá trinta minutos e a seguir punha-se a andar. Dizia-lhe que ele podia passar a noite na casa dela, mas ele recusava-se a estar tanto tempo longe do bichinho. E a veterinária, escandalizada com o funcionamento de uma cabeça normal, dizia:

– Já viste? E ele só estava a provar que era um bom dono de cão.

Ninguém me dirigia a palavra, toda a gente percebia que eu não tinha lágrimas para gato, gato que nem sequer ensina gaivotas a voar. Pensei em surdina: e um péssimo namorado. Sabia que não valia a pena dizê-lo a uma fanática, que continuava a falar com a gata como se ela percebesse português:

– A mãe toma conta de si? A mãe é muito linda.

Talvez achasse que um gato podia nascer do útero de uma mulher, sei lá.

– Ah, tão fofinha que a menina é. Pois é? Que linda, que fofinha.

Pá, a mulher guinchava, incapaz de se conter com a alegria de estar perante… um gato. Ainda por cima, de tanto lhe mexer, ganhou confiança. A Dona Zuca passou a Zuca Cristina. 

Eu só pensava: esta mulher vota. E provavelmente no PAN. Continuava a dizer coisas:

– Apegamo-nos aos bichos e depois não há nada a fazer. Chorei mais pelo meu Lulu do que pela morte do meu pai.

Ora, eu aqui quis empalá-la. Sem essa hipótese, agarrei no telemóvel, perguntei ao Google onde é que podia encontrar antrax, só para lhe deixar lá um saquinho. Há males que só lá vão pela raiz. O Google nada me disse, pensei em arsénico, numa overdose de anti-coagulante, que vi ser usada numa série, em seguir os passos de Diogo Alves e atirá-la do Aqueduto das Águas Livres, mas sabia que seria difícil atraí-la até lá, excepto se lhe garantisse que estava lá prostrado um gafanhoto com gripe. Do desprezo, fui à revolta: aquela tendência lamechinhas de sentimentozinho e de boazinha intençãozinha só me provocou asco. Em causa, estava o cadáver de um pai a valer menos do que o de um gato. E aposto que na cabeça dela, passe o trocadilho, o animal ainda era eu.

A mulher continuava:

– E digo sempre às minhas filhas: vocês aqui são todos iguais. São todos meus filhos.

Alô, Ana Mendes Godinho? A Segurança Social anda a dormir? Alguém que mande a CPCJ àquela casa.

Depois disto, dado o diagnóstico (cancrinho terminal, vida curta), a veterinária deu o orçamento para os comprimidos novos, a comida cara, os paliativos, os estimulantes de apetite para a gatinha tão querida, para uma delícia de gatinha. E acrescentou “Temos de dar a vida por eles, não é?”, como se não estivesse a cuspir uma alarvidade.

Tudo aquilo me fez lembrar do Joel, que os tontos julgaram um herói. Vinte e cinco anos depois do acto de heroísmo, a mãe do Joel ainda parece um fantasma movido a anti-depressivos. Quem a vê pela rua – osso vestido com pele – adivinha logo que aquilo é mulher que viu um filho morto. Não tem é como adivinhar que a vida do rapaz foi trocada pela de um gato: atirou-se ao rio Ave para o salvar, ficou lá ele. Já só apanharam o corpo quando ia meio decomposto. O gato safou-se e morreu seis meses depois sem direito a cerimónias fúnebres.

A vida andava ao contrário. E as pessoas metiam-na a dar saltos para trás enquanto comiam… frango. É que a veterinária, disse-me a minha senhora, era filha do dono de uma churrasqueira do Beato, e adorava ir lá aos sábados sacar umas coxinhas com batatas.

Virei as costas àquilo sabendo que, por ser a Cônjuge do Ano, teria de lá voltar na semana seguinte. Mas a gata, felizmente, já morreu. E eu, já se estava mesmo a ver, tive de me vestir de preto para ir à cremação.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Entre na conversa

3 Comentários

  1. Mais uma vez formidável crónica ! Sem um momento de descanso entre tiradas tão bem alinhavadas de humor frontal…Que delícia !

  2. Texto bem escrito mas sem ponta de graça. Por mim…já foste (ou já foi?).

  3. Pensei que a Mensagem tivesse como objetivo falar sobre Lisboa e dos seus problemas, bem como dos lisboetas e da sua relação com a cidade. Pergunto em que é que a aversão da cronista a animais está relacionada com a cidadania em Lisboa. Se os únicos critérios para escrever para a Mensagem é viver em Lisboa e ter algo que a inquiete, temo que este espaço seja
    inundado por futilidades. Querida Mensagem, por favor peçam aos vossos cronistas que partilhem as suas visões sobre a habitação, a cultura, o urbanismo e todas as outras questões que importam aos lisboetas enquanto tal. É esse o vosso propósito.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *