Nem sou de grandes sequelas, mas esta crónica segue a anterior. Lisboa é uma epopeia. Lisboa, às vezes, cansa a sério.

Numa terra tão grande, vamos percebendo com a experiência, a palavra vale pouco. Notei isso assim que cheguei. Os amigos que fiz eram desconfiados, viviam em stress constante. Era o gajo que pedia dinheiro para o comboio que o queria para drogas, era a senhora que pedia dinheiro para insulina que o queria para alimentar a veia. Aos poucos, esta soldada una em prol da verdade foi percebendo que, perante a vida de todos os dias, tinha pouca razão. Quem cá vivia é que sabia.

Num sítio onde ninguém se conhece e a Internet grassa, contratar alguém para coisa urgente é um totoloto. O senhor Alfredo, de Vizela, já está morto. No ombro dele é que eu podia chorar a minha sorte. Aqui toda a vida é um improviso: há o panfleto de um canalizador na caixa do correio, há um contacto urgente colado num ecoponto, há o Fixando para dar uma ajudinha. E há a ideia ingénua de que o mundo merece confiança. Depois do desastre da última crónica, estando a casa cheia de pó e eu com dois bebés na barriga, veio mais um. Precisava mesmo de que, num dia, mãos profissionais tratassem da saúde à cal desfeita para eu voltar para casa.

O primeiro ponto foi o expectável. Bem se sabe como é com os leitores: antes de contratarmos um serviço de limpeza, temos de confessar tudo. E tudo confessei: o número de estantes e os livros com pó em cima. Pedi, por isso, orçamento adequado a esta mania que eu tenho de meter os olhos em papel. E lá veio um, que consistia em mais de um terço de salário mínimo por uma limpeza de alto ao chão. Contra outros orçamentos à hora, porque há muito papel e as mãos têm de ter minúcia, fui por esse. A garantia dava confiança: se não ficasse tudo feito num dia, as senhoras voltariam no outro.

Lá combinámos para um dia a seguir ao fim das obras. A Jéssica chegou e achei-a muito simpática. A minha senhora achou o mesmo. Incautas, não pudemos perceber que a pele de cordeiro esconde um lobo. Demos a volta à casa, não tiveram nada a dizer. Perguntámos se achavam que ficaria tudo feito num dia, disseram que achavam que sim. Contávamos na boa com oito horas de trabalho a dividir por quatro mãos – pelo menos. Como não temos perfis de capatazes, tratámos com confiança quem vinha trabalhar. Deixámos-lhes a chave e pusemo-nos a andar para a casa onde estávamos a dormir. Só me esqueci de dizer que eram nove e pico da manhã.

À uma em ponto, a Jéssica disse que o serviço estava feito. Tinham sido menos de quatro horas para limpar de fio a pavio um T2 de uma escritora e uma socióloga, com janelas em todas as divisões e o pó que a obra deixa. O orçamento, deve dizer-se, já contemplava o pó: era mesmo orçamento de pós-obra. Ainda comentei com ela, “Tão rápido!”, e a seguir liguei à minha mãe a perguntar se achava que quatro horas eram suficientes para aquilo. Filha conhece bem a mãe: eu já sabia que ela ia dizer que não. E ela, sábia, bem me dizia: “Não pagues antes de verificares o serviço.” Mas eu já estava em Almada (e quem cá vive sabe bem o que é passar aquela ponte quando os carros se enfileiram), a minha senhora também – e com febre –, estes dois na barriga sugam-me a energia dos Magnuns que ando a aviar noite e dia e, caraças, há que ter fé na humanidade. Há que dar a mão ao próximo, acreditar no que o outro diz. Como é possível viver a desconfiar das frases? Esse não é o papel de alguém que romanceia. Ainda por cima, vejam bem, a Jéssica disse que, caso alguma coisa não estivesse bem, ela viria rectificar o serviço. Ora, era óbvio que, sem recorrer a sete anos de educação em Hogwarts, aquilo não tinha como estar bem. Mas voltaríamos para casa dois ou três dias depois. Seria só ver e avisar. E quem sabe ela teria uma técnica digna de Mrs. Weasley. É lindo ser crente, pois não?

Assim que chegámos a casa, foi um pé de vento. Bastou abrir a porta. Comparado ao pó que estava em casa, o Sahara parecia um plácido jardim. O meu pobre piano – usado para tocar o Für Elise em noites de tempestade perante olhares mansos, apaixonados – ainda estava soterrado. O frigorífico, que tantas alegrias nos deu no Verão passado, nem um afago tinha tido. O nicho sob o sofá fora ignorado desde o primeiro instante. Num ou outro sítio, notava-se que tinha sido passado um pano à pressa, o que fazia do gesto uma mancha. A carpete, que tinha sido enrolada para que se evitasse o máximo de pó possível, nem desenrolada tinha sido.

Mas enfim, a Jéssica tinha dito que voltaria caso alguma coisa não estivesse bem. Como estava tudo mal, contactei-a. E como não sabia bem que raio lhe dizer depois daquilo, mandei-lhe só as fotos. Mandei-lhe, entre outras, esta do pianinho (e aqui só dou um exemplo para não fazer mal à garganta de quem lê):

O piano que serviu de prova para esta discussão. Foto: DR

A Jéssica conseguiu olhar para isto e dizer, peremptória, que não havia nada para limpar. Lá discuti, isto a um domingo, e ela garantiu-me que voltaria cá na terça-feira. Desmarquei a agenda. A febre continuava ao lado. Os bebés continuavam a dar-me cambalhotas na barriga. O teclado continuava a colar-me as mãos ao trabalho. Lá esperámos pela hora marcada. Previsível: nada. Corrijo: previsível por outros, que eu não consigo pensar sempre o pior de alguém. Tentei telefonar: nada. Enviei mensagens: nada. Ameacei atirar-lhe a minha advogada para cima: lá respondeu.

Desgraçada, há azares que acontecem. Naquele dia, o carro da Jéssica tinha avariado e ela, coitadinha, tinha andado de loja em loja à procura da peça que faltava. É coisa que, admito, nunca fiz: não por não ter carro, mas porque, em geral, o reboque e o mecânico é que tratam dessas coisas. Longe de mim descobrir por magia qual é a peça que falta, e ainda mais longe andar a saltar entre a mercearia e o talho a ver se alguém tem uma bronzina de mancal ou outra coisa qualquer que ninguém normal sabe o que é.

Furiosa por eu reclamar por um serviço pago sem o ter, a Jéssica mandou de volta: eu é que seria contactada pela advogada dela. O meu lado curioso, romancista, quis explorar esta vertente – juro que adoraria saber para me dizer o quê, mas imagino que pudesse ser para me convidar para champagne e lavagante, eu que nem sequer bebo álcool e ando a evitar a ingestão de crustáceos decápodes. Sem paciência para mensagens, telefonei-lhe. O tom subiu. Ela fizera tudo bem, não tinha culpa de eu ter tantos livros. Expliquei que os livros tinham sido condição sine qua non, mas para quê? Ela sabia-o. E sabia o que tinha feito e, mais ainda, o que não tinha feito: tirado o pó. Quatro horas a fingir que se trabalha não fazem um milagre. Não havia uma única coisa limpa cá em casa.

A dúvida lá foi nascendo em mim. Como é que esta gente conseguia dormir à noite? Com etanol e desespero ou com duas doses de anti-histamínico, marijuana e Valdispert? A vida nesta cidade não dá um minutinho simples de descanso.

Em Lisboa, é fácil enganar os outros, principalmente se os outros não forem lisboetas. Dez anos nesta cidade não fizeram de mim um de vocês. Ou um de nós, sei lá. É uma década aqui, já não sei de que chão sou. Sei que, por muito que me enquadre, não sou igual aos outros, da mesma forma que um forasteiro terá dificuldade em perceber que, em Vizela, não precisamos de trancar a porta a menos que um vimaranense seja avistado a menos de dez quilómetros. É difícil, claro, porque Guimarães fica apenas a sete.

Enfim, a Jéssica desligou-me o telefone na cara. Ainda guinchou a dizer que o carro tinha avariado mesmo. Perguntei se não podia ter ligado, mas claro que ela tinha deixado o telefone em casa – que não deve ser dos móveis. E eu lá disse: “Pronto, tudo bem. O carro avariou. Aceito o seu pedido de desculpa por me ter atado a casa sem uma justificação até meio da tarde.” Não confirmo nem desminto se isto foi a ironia como coisa linda a dar-me a volta à língua. Contra as evidências, garantiu-nos – a nós, que aqui vivemos – que a casa ficou num brinco e, antes do clique final, mandou-nos para um sítio que não fica bem dizer aqui, não vá eu ser despedida da Mensagem por utilização de vernáculo. Enviei-lhe uma mensagem com uma avaliação moral.

A seguir – juro –, ligou-me o marido. Voz de tasqueiro que metia bagaço em cima. Ao telefone não deu para vir, mas imaginei-o logo de manga cava, pêlo no peito e palito entre os dentes. Começou logo assim: “Olhe, já acho demais, isto que estão a dizer à minha mulher.” Eu, que só queria uma casa limpa, de repente estava teletransportada para a Idade Média ou o Afeganistão, em que os homens assumem que as mulheres são umas vassouras inaptas com cabelos. Homem que vem defender a mulher, já se sabe, só vem empolar a crista para dizer que quem manda nela é ele. E que ela é uma inocentezinha tonta que não se sabe defender. No caso, defender-se de ter lixado os outros. Estudos recentes, antigos e de meia-idade feitos por investigadores em ciências sociais e humanas de Harvard apontam para a correlação directa e inequívoca entre este tipo de comportamentos e falta de pedalada entre os lençóis. Isto está escrito num volume pousado na terceira estante da sala a contar da janela, segunda prateleira a contar de baixo, e só não se consegue ler porque está cheio de pó.

E o gajo lá continuou:

– Vamos ter de ir para tribunal com isto?

E eu:

– Claro, vamos a isso. Dê-me lá o nome da sua advogada, que a minha contacta-a.

Nem lhe perguntei qual seria o meu crime. Talvez o de ver pó. E o palhaço do meu oftalmologista sempre a acusar-me de não conseguir ver nada.

– Ah, vamos lá ver. Isto não é maneira de tratar a minha mulher.

Nesta altura, perguntei-me: será que eu devia chamar a minha mamãzinha ou a minha sogrinha para defender a menina? É truque que não me tenho lembrado de usar com ninguém.

A seguir, o gajo ainda atirou:

– Se a casa não está bem limpa, é porque tinha lá demasiado pó.

Já vi macacos mais espertos. Mas como explicar que, se a casa estivesse limpa a priori depois da obra, para além de termos de assumir que a vinda do papa a Portugal operara mesmo um milagre, não seria preciso limpá-la?

Lisboa é um cansaço, Lisboa é uma luta. Claro que, dias passados, assente a poeira, é fácil dizer: “Não devias ter pago.” E eu já disse em casa: “Não devíamos ter pago.” Depois pensei que isso era o mesmo que não dever andar de mini-saia: pôr o ónus em qualquer lado que não o do aldrabão. Mas a verdade é que, depois disto, perdi a ingenuidade toda, e levarei o conselho da minha mãe para os meus filhos. Gente tão amada não merece ser enganada por uma qualquer Jéssica a tentar sacar uns trocos à custa da bondade alheia.

Enfim, não há outra forma de o dizer: Lisboa venceu-me. Farta de aldrabões, rendo-me ao cinismo.


A autora escreve com o antigo Acordo Ortográfico


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.


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