Escreveu o grande António Machado, num poema que haveria de ser musicado e cantado por Joan Manuel Serrat (e assim tornado mundialmente conhecido), que «o caminho se faz ao caminhar»; e o escritor norte-americano Stephen King afirmou, num livro que redigiu enquanto convalescia de um acidente que quase lhe tirou a vida, que não há outra forma de aprender a escrever senão escrevendo.
Para qualquer que seja a actividade, o trabalho e a experiência contam muito – e, em matéria de escrita, quanto mais nos exercitarmos, melhores resultados, sem dúvida, obteremos.
Se o assunto, porém, for uma letra de fado, nem sempre é verdade que um poeta com larga obra publicada se saia melhor do que um poeta popular ou um mero amador.
Isso mesmo provam o inesquecível «Não Venhas Tarde», popularizado por Carlos Ramos, e o divertido despique feminino de «Foi na Travessa da Palha», ambos com letras de génio de autores populares; mas não esqueçamos acima de tudo o poema do Fado Cravo de um Marceneiro pouco mais do que analfabeto, nem, bem entendido, «Estranha Forma de
Vida», de uma senhora – Amália Rodrigues – que, quase sem ter ido à escola, resolveu um
dia pegar na caneta e deu lições a todos os eruditos que se atreveram a escrever para fado.
É bem certo que toda esta gente tinha o fado na alma e nos ouvidos; e, se falo de ouvidos, é porque, na canção de Lisboa, o som das palavras é absolutamente determinante: quando
escrevi certa vez umas quadras para Aldina Duarte gravar num CD, incluí num verso a
expressão «a rota mais bela» e fiquei muito admirada com a afirmação da fadista de que «a
rota», quando fosse cantada, soaria lamentavelmente a «arrota»… e ela não podia arrotar
num fado.
Como o caminho se faz ao caminhar, aprendi desde então, com a experiência mas sobretudo com os intérpretes, a errar cada vez melhor, como dizia Beckett; e, para evitar ouvir do fadista que esta ou aquela palavra não encaixa ali bem, além de me ter posto a estudar o lugar certo das sílabas tónicas, escrevo sempre alternativas a versos e estrofe numa folha à parte, para grande surpresa dos artistas, que não estão habituados a que quem escreve livros de poesia se preocupe com tais minúcias.
Mas a maior lição sobre a sonoridade das palavras foi-me dada pelo grande músico francês Alain Oulman, o homem que mudou o fado de Amália – e, logo, o nosso fado.
Num documentário assinado pelo filho, Nicholas Oulman, explica-se que o compositor, depois de ter saído de Portugal, onde tinha nascido, e de se ter radicado em França nos anos sessenta, foi trabalhar para a editora fundada pela família – a Calmann-Lévy – onde publicava, entre outros, o escritor israelita Amos Oz.
E é este quem, no documentário, relata que uma vez Oulman lhe telefonou com um estranho pedido: que lesse na sua própria língua parte de um parágrafo do romance que iria ser publicado em França uns meses depois.
Pelos vistos, Oulman estava a ler a tradução e, com o seu ouvido treinado de músico, não lhe soou bem aquela passagem, pelo que decidiu substituí-la por outra que fosse, em termos de sonoridade, o mais próxima possível da original.

Maria do Rosário Pedreira
Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.