Sim, já houve um tempo em que as ostras não eram raras na zona metropolitana de Lisboa. Foi nesse tempo em que Fernanda Pedro comia o mesmo pequeno-almoço todos os dias: ostras cruas. “Era maravilhoso”, recorda ela.
Fernanda cresceu numa casa singular: no antigo posto de depuração das ostras do Tejo. Um tesouro escondido na União das Freguesias de Gaio-Rosário e Sarilhos Pequenos, na Moita. Entretanto, as ostras foram desaparecendo do Tejo a partir dos anos 1970, pondo-se fim àquele que era o trabalho do pai de Fernanda, José Soares Pedro, também conhecido como José Bandeira.
Mas o cheiro a rio e a peixe ainda se faz anunciar no complexo que Fernanda e o marido José transformaram num espaço de eventos. O passado não se esquece.
“O meu pai tem saudades. A vida dele foi toda feita aqui”, desabafa Fernanda. “Eu e o meu irmão trazíamos para aqui os amigos, andávamos de bicicleta, de patins… Eu aprendi a nadar no tanque das ostras!”.

A construção de um posto de depuração
Fernanda desbloqueia o telemóvel e procura pelo pai na Internet. Não é difícil encontrá-lo: ali está ele, o senhor de boina numa reportagem a preto e branco de 1968 da RTP. Uma reportagem que conta um pouco da história deste lugar e da ostra portuguesa.
A ostra portuguesa (C. Angulata), “la portugaise”, como é conhecida pelos franceses que tanto a apreciam, terá na verdade origem asiática e foi provavelmente introduzida pelos navios mercantes que regressavam, no tempor dos Descobrimentos.
“Para o cientista, uma ostra é um molusco bivalve. A sua concha calcária é formada por duas partes: uma delas de forma côncava, onde o animal se encontra aconchegado, e outra de forma mais direita, que é por assim dizer, a tampa da primeira.”
Reportagem RTP, 1968
No século XX, a poluição dos estuários levaria a mudanças na produção e consumo de ostras: o volume de esgotos domésticos no Tejo levou à proibição da apanha das ostras em grande extensão na margem do rio. Em 1951, eram tomadas as disposições legais para a criação do Posto de Depuração das Ostras do Tejo, tornando-se obrigatória a depuração das ostras dos bancos do Tejo e do Sado considerados insalubres.
Esse espaço passaria a ser guardado pelo homem da boina que surge na reportagem: o pai de Fernanda Pedro, hoje com 90 anos.


Como se depuram ostras?
Ao entrar-se no posto, ainda hoje se veem os três depósitos onde se esterilizava a água vinda do rio: os depósitos laterais guardavam água salgada, o do meio água doce.
A depuração era feita numa sala hoje ocupada por cadeiras e sofás, onde se dança e celebra em casamentos e batizados. Era lá que os empregados, depois de passarem por um pequeno tanque para desinfetarem as botas, iniciavam o processo de depuração.
Primeiro, lavando as ostras com água de alta pressão. Depois, submergindo-as em água bacteriologicamente pura durante 20 horas, seguindo-se a água esterilizada durante 5 horas e só então a água esterilizada, com o cloro ativo, durante mais uma hora.

Finalmente, vinha a parte de que Fernanda gostava: juntar as ostras num cesto de vime, que era cosido e atado com um fio.
“A cesta levava carimbo com um selo em metal, e tinha a etiqueta com a data de entrada e de saída. Eu passava horas a fazer isso com o meu pai”, conta.
O desaparecimento da “la portugaise”
A partir de 1970, a ostra portuguesa entrou em declínio, até desaparecer do Tejo. Com isto, o posto de depuração foi perdendo a sua atividade, sendo desativado nos anos 1990.
Houve várias causas para este fenómeno, como explica José Lino Costa, investigador do MARE (Centro de Ciências do Mar e do Ambiente).
A poluição, claro, mas também a sobre-exploração do recurso e uma doença que terá surgido nas brânquias da ostra que levou à redução da população.
Outra causa muitas vezes apontada é o tributil de estanho das tintas usadas nas embarcações da Lisnave. João Gomes Ferreira, antigo investigador do MARE, acredita que essa questão terá também contribuído para o desaparecimento:
“O tributil de estanho era utilizado para evitar que os animais se fixassem nas embarcações, e essa tinta tinha uma toxicidade aguda. Na altura, verifiquei que as ostras começaram a ter uma casca muito grossa.”
Mas não serve para explicar o seu desaparecimento por completo, pois a ostra começou também a desaparecer noutros pontos da Europa.
José Lino Costa tem até uma outra teoria, puramente especulativa: “O desaparecimento também se pode ter dado com o desaparecimento de espécies predadoras de caranguejos, que comem ostras.” O xarroco (peixe predador de caranguejo) desapareceu no Tejo também nas décadas de 70 e 80, levando à proliferação do caranguejo-verde, que come ostras pequenas. “Isto poderia ajudar a explicar porque razão o colapso no Tejo foi total e no Sado não, uma vez que o xarroco nunca desapareceu do Sado”, esclarece o investigador.
Desativado, o posto continuou a ser guardado pelo pai de Fernanda, mas não por muito tempo. Anos mais tarde, quando a mãe de Fernanda adoeceu, a família mudou-se.
Do abandono a um espaço de eventos
Durante alguns anos, este complexo esteve abandonado.
Em 2005, o Público noticiava: “Antigo equipamento do Ipimar na Moita em degradação acelerada”. Nessa altura, a Câmara Municipal da Moita discutia ali instalar, em parceria com a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, um centro de investigação científica dedicado à ecologia estuarina e um centro de educação ambiental.
Mas nada foi feito. Até que o edifício foi posto em hasta pública duas vezes.
Da primeira vez, ninguém apareceu. Da segunda, foram muitos aqueles que marcaram presença, entre eles Fernanda Pedro. “Havia imensa gente a fazer solicitações, mas não sei porquê acabou por me vir parar às mãos, às vezes são coisas do destino.”
A ideia de Fernanda era construir um condomínio fechado naquele terreno, mas a Câmara Municipal da Moita acabaria por não lho permitir. Entretanto, um amigo perguntou-lhe se não o deixava casar-se lá, nesse espaço que era amplo, e tão característico. Fernanda acedeu ao pedido, e ali se fez o casamento. Assim nascia o negócio, que continua por estes dias, mesmo depois de Fernanda ter vendido a propriedade a um investidor.

O reaparecimento da ostra portuguesa?
Neste espaço agora festivo, há um pormenor do qual nem Fernanda nem o marido quiseram abdicar: o tanque das ostras.
“Não quis abdicar porque isto é histórico, entende? Quem não tem história, não tem cultura”, diz José Costa, marido de Fernanda.

O tanque que ali se mantém lança a questão: poderia a ostra voltar ao Tejo? A verdade é que ela tem vindo a reaparecer no Sado, como concluiu um estudo de 2016.
“(…) Nos últimos quinze anos tem-se assistido a uma recuperação assinalável das antigas ostreiras do Sado, verificando-se a sua expansão para as zonas da baía. A melhoria significativa das condições ambientais do meio terá sido a causa próxima daquela recuperação.”
Projeto “Estado atual da ostra portuguesa (Crassostrea angulata) no estuário do Sado, ameaças e oportunidades para a sua exploração como recurso – CRASSOSADO”
Poderia o mesmo acontecer no estuário do Tejo?
“Se se melhorasse a qualidade das águas e do sistema”, começa por dizer José Lino. “A verdade é que a qualidade da água no estuário do Tejo e do Sado melhorou muito ao longo dos anos graças à construção das ETARs.”
De facto, já haverá algumas ostras tímidas a reaparecer no nosso estuário, como indica Fernanda Costa e confirma José Lino Costa: “Terão voltado alguns exemplares de ostra selvagem ao Tejo. Mas vão proliferar durante mais algum tempo? Não sabemos.”
Em 2012, a Câmara Municipal da Moita anunciava a implementação de um projeto-piloto para se estudar a viabilidade da produção de ostras no Tejo, em parceria com Administração da Região Hidrográfica do Tejo, I.P., o Instituto Nacional de Investigação das Pescas e do Mar e o promotor local Samuel Pacheco.
Mas o projeto não terá avançado.
Porquê?
“Não há nenhuma razão para não se tentar voltar a cultivar”, diz João Gomes Ferreira. “Costumo dizer que Portugal é o país do fado, nunca se chega a fazer nada em termo de experiências…”.
Segundo o investigador, está-se a tempo de recuperar este projeto: “Um programa experimental, no local certo, com a devida distância das instalações portuárias, assegurando-se a qualidade da água e a questão das bactérias…”.

Se o resultado fosse positivo, a questão que se colocaria a seguir seria uma questão de mercado. “Afinal, que restaurantes servem ostras? O problema é esse.” Em Portugal, grande parte da produção ostreira destina-se ao mercado francês. Como a lei comunitária determina que a origem do produto corresponde ao país em que a ostra é depurada, as ostras portuguesas passam, assim, a ostras francesas.
Uma pena para Fernanda Pedro. Ela, que tem visto as ostras portuguesas crescer nos últimos tempos, garante. “Foram feitas ETARs e a partir desse momento, o rio mudou de cenário. É sinónimo de saúde do rio”, diz. “As ostras estão a sobreviver e a crescer…”. Pode ser que alguma vez voltem.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

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Parabéns pelo seu texto que escreveu, são estes textos que eu gosto muito de ler pelo seu interesse histórico, tenho 82 anos e desconhecia que o Tejo tinha tido Ostras, bem haja
Boa tarde ,é verdade as ostras estão a voltar ao Tejo estive com uma na mão e vi outra mais pequena ,isto no rio em frente à antiga fil, isto em Agosto .
Boa tarde, António
Obrigada pela partilha! Tens fotografias dessa descoberta? Se tiver e não se importar, partilhe connosco através do geral@amensagem.pt
Boas tenho a dizer que conheço o espaço por vários motivos todos eles ligados a casamentos, como o meu que também se realizou neste espaço maravilhoso conheci a Fernanda e o marido antes através de amigos são pessoas maravilhosas e espero que consigam realizar esse sonho de voltar a ostras