Monumental, o Aqueduto das Águas Livres corta Lisboa, serpenteando os arcos desde a vila de Belas, em Sintra, até a Mãe d’Água, nas Amoreiras, no coração da cidade. Um silencioso gigante de pedra que há quase três séculos compõe o cenário lisboeta, testemunha das mudanças sofridas pela capital portuguesa ao longo dos anos, das décadas, da história.

Detalhe trecho final do Aqueduto das Águas Livres, na Mãe d’Água, nas Amoreiras: testemunha da história. Foto: Artur Pastor/Arquivo Municipal de Lisboa.

Uma história que o aqueduto também ajudou a construir. É que a estrutura erguida entre 1731 e 1799 alterou, através do curso de água que escorria no seu ventre, o curso da história lisboeta.

As águas que brotavam de 60 nascentes na bacia das Águas Livres viajavam por cerca de 58 quilómetros para abastecer os 30 chafarizes em largos e praças da cidade, que se expandiam da antiga Lisboa Moura para o lado ocidental. 

“A relação de Lisboa com a água desde sempre foi regulada por períodos de chuvas torrenciais e secas prolongadas, e não havia como armazená-la. Para a cidade crescer, era preciso trazer água de fora dos seus limites”, explica Bárbara Sofia Bruno, historiadora.

O que muitos desconhecem é que esta história ainda caminha debaixo dos nossos pés.

A historiadora tem guiado lisboetas e turistas interessados nos rumos das águas e desta viagem histórica – literalmente, por baixo do chão dos chafarizes de Lisboa. Uma tour diferente das outras que se costuma ver pela cidade, justamente porque não é possível… vê-la.

A historiadora Bárbara Sofia Bruno: passeios pelos caminhos das águas de uma Lisboa histórica. Foto: Líbia Florentino.

Se parte do histórico percurso das águas por Lisboa é mais do que visível, principalmente em Alcântara e Campolide, onde os arcos em forma de ogiva do aqueduto alcançam até 65 metros de altura, a partir da Mãe d’Água das Amoreiras podemos ficar a conhecer um outro lado da história: quilómetros e quilómetros subterrâneos, numa teia de túneis que liga os principais chafarizes de Lisboa.

Um caminho invisível, escavado centenas de anos atrás sob os nossos pés, por baixo de prédios, ruas, passeios, praças e jardins, visando a manutenção do sistema. Um conjunto de cinco galerias, com doze quilómetros de extensão, que tornava possível entrar num chafariz no Largo do Rato e sair ao pé de outro, na Praça das Flores ou no Largo de São Paulo.

Foto: Líbia Florentino

Uma pequena parte desse trajeto está aberto a visitas. A chamada Galeria do Loreto liga o Jardim das Amoreiras ao Miradouro de São Pedro de Alcântara em quase três quilómetros de túneis, onde é possível viajar pela história de Lisboa, embalado pela companhia do som de um curso d’água e, mais ao longe, das buzinas dos carros e do peso dos elétricos sobre o carris.

Para saber mais sobre as visitas, contacte diretamente este e-mail: mda.epal@adp.pt

Um passeio histórico num cenário de filme

O passeio pelos caminhos subterrâneos das Águas Livres em Lisboa começa onde o aqueduto termina, no Reservatório da Mãe d’Água, no Jardim das Amoreiras. É um dos quatro núcleos que compõem o Museu da Água gerido pela Empresa Portuguesa das Águas Livres (EPAL), ao lado do próprio Aqueduto, do Reservatório da Patriarcal e da Estação dos Barbadinhos.

E é através de uma pequena porta na traseira do prédio que a historiadora Bárbara nos conduz numa descida em espiral por uma escadaria que finda num amplo espaço, onde antes operava a Casa do Registo – uma estrutura concebida para armazenar a água proveniente do aqueduto e distribuí-la por entre as cinco galerias que abasteciam Lisboa.

A ampla sala da Casa do Registo sob o prédio da EPAL, no Jardim das Amoreiras, afunila-se até que o primeiro longo corredor subterrâneo surja. A partir dali, o percurso dá-se em média a três metros abaixo do solo, através de um túnel com cerca de um metro e meio de largura por um metro e oitenta de altura, iluminado o suficiente para que não se tropece.

O cenário cinematográfico relembra as histórias de mascarados e corcundas movimentando-se agilmente nos esgotos de uma velha metrópole.

É por ali que a historiadora Bárbara costuma conduzir até duas dezenas de visitantes, que num passeio regular, caminham entre cinco e sete quilómetros por baixo e por cima da terra, num trajeto que pode levar duas horas e meia.

À entrada da Galeria do Loreto, Bárbara costuma perguntar mais uma vez se há entre os presentes alguém que sofre de claustrofobia. A próxima saída fica a menos de um quilómetro, no Largo do Rato, mas nunca se sabe. Experiente, a historiadora conta que apressa o passo, enquanto distrai os visitantes com histórias sobre o caminho das águas até aos chafarizes.

Entre essas, a que D. João V, seduzido pelo então barroco Italiano, trouxe plantas e maquetas de Roma para inspirar os arquitetos e engenheiros que ergueram o Aqueduto das Águas Livres. Segundo a historiadora, uma fração da parte externa da obra poderia ser tão subterrânea quanto as galerias, mas a intenção do monarca era justamente o contrário.

Foto: Líbia Florentino

“O sistema de galerias protege melhor a água das ações do calor e do vento, mas não podemos esquecer que D. João V queria mostrar que Lisboa estava se transformando numa cidade moderna, uma característica que precisava de saltar aos olhos dos lisboetas e de quem entrava na cidade”, explica.

Para financiar a obra, um novo imposto foi somado ao já existente real da água, taxado sobre itens como a carne e o vinho para custear o uso da água. Na sua fase mais avançada, a obra chegou a exigir o trabalho de 1300 operários, comandados por 22 mestres pedreiros.

Como estas águas ajudaram Lisboa a crescer

Diante do diagrama do caminho percorrido pela água desde as nascentes, forjado numa placa de metal, a historiadora contextualiza a Lisboa nos tempos em que D. João V decidiu construir o aqueduto, inspirado na experiência romana de reativação das antigas estruturas que faziam as águas jorrarem abundantes nas fontanas nas piazzas da Cidade Eterna.

A captação para além dos limites lisboetas era a única forma de garantir o abastecimento de uma cidade fundamentada em solo calcário, poroso por natureza, incapaz de reter as águas provenientes das chuvas, que se perdiam no Tejo.

A exceção eram as nascentes que brotavam de Alfama – não por acaso, onde Lisboa nasceu.

Foto: Líbia Florentino

Nascentes que deram origem ao nome Alfama – do árabe al-hamma, algo como “fonte de água quente” – e também ao antigo chafariz de São João dos Canos, posteriormente chamado de Chafariz de El-Rei, após as melhorias patrocinadas por D. Dinis, e ainda ao Chafariz dos Cavalos, hoje conhecido como o Chafariz de Dentro.

De “Dentro” justamente porque D. Fernando, em 1375, ao erguer a muralha que sucedeu à antiga Cerca Moura, estrategicamente decidiu não incorrer no erro que acabou por decidir o destino de antigos cercos à Lisboa: a falta de água.

“A Lisboa Moura não dispunha de água suficiente no interior das muralhas para garantir o abastecimento da população em períodos prolongados. Quando os mouros foram cercados pelos cristãos em 1147, a principal causa de rendição teria sido a falta de água”, conta Bárbara. 

Na época dos mouros, tanto o chafariz – termo que deriva do árabe s’ahríj – de El-Rei como o dos Cavalos situavam-se fora dos limites da cerca.

A Muralha Fernandina, portanto, tratou de incluir as duas importantes fontes de água da Lisboa Medieval e o Chafariz dos Cavalos que, antes fora dos portões, acabaria conhecido como o chafariz “de dentro” da nova cerca. 

A medida que matou a sede da Lisboa medieval, mas que provaria ser insuficiente para a cidade que crescia no período da expansão marítima. Mais adiante, pressionada pelos padrões de higiene e salubridade como sinais de modernidade e para se evitar pandemias, exigiria um sistema de abastecimento mais complexo.

A primeira gota de um chafariz em Lisboa

Entre idas e vindas no cronograma, atrasos e trocas de responsáveis pela engenharia, em 1744 brotava pela primeira vez na torneira de um chafariz de Lisboa água trazida de fora da cidade. No mesmo ano em que o magistral Arco Grande, o maior do mundo em pedra no formato de ogiva, era finalizado.

Um chafariz, o do Rato, que nada lembraria as monumentais construções por vir.

“O primeiro chafariz foi uma peça provisória, construída em madeira, aqui, no Largo do Rato”, conta Bárbara. A estrutura seria substituída em 1754 pelo atual chafariz, feito em pedra, possível de ser ver ao se subir por um lance de escada na primeira saída dos túneis da Galeria do Loreto.

Planeado pelo arquiteto húngaro Carlos Mardel, o Chafariz do Largo do Rato foi erguido junto à parede, integrado na balaustrada do Palácio dos Duques de Palmela. “Um chafariz construído em dois níveis, um mais elevado com duas bicas e outro mais baixo, utilizado para bebedouros de animais”, explica.

Bárbara lembra que os chafarizes, para além de abastecer a cidade, tinham uma vocação estética e social. “Eram equipamentos que ornamentavam largos, jardins e praças, mas que também serviam para unir as pessoas, garantindo uma centralidade na cidade. Por isso, estavam geralmente no centro ou em pontos de destaque desses espaços”, explica.

O reservatório onde hoje se fazem concertos

A manutenção dos novos chafarizes de Lisboa ficava a cargo de homens que percorriam essa teia de galerias subterrâneas, zelosos em garantir que a água escoasse livremente pelos canos, pois, “estagnada, ficaria imprópria ao consumo”, explica Bárbara.

Durante o percurso, é possível ver as saídas por onde os funcionários monitorizavam o fluxo de água ocultos nas paredes, como imensos rodapés de pedras.

Para orientar os visitantes, placas e mapas no interior da galeria situam em que trecho da cidade a galeria está a percorrer naquele ponto. Para além da informação visual, os ouvidos mais familiarizados com o vai e vem do tráfego em Lisboa podem perceber o trânsito intenso no Rato ou os elétricos a fazerem vibrar os carris na rua da Escola Politécnica.

Durante o trajeto, setas orientam os visitantes embaixo da terra em relação aos caminhos da superfície. Foto: Líbia Florentino.

A placa indica o desvio até o Reservatório da Patriarcal, por baixo do Jardim do Príncipe Real. Abastecido pelo Aqueduto das Águas Livres via Galeria do Loreto, a imensa cisterna dividia-se em outras galerias que abasteciam o sistema do próprio jardim, o chafariz da Praça da Alegria e a zona poente de Lisboa. 

Desativado nos fins dos anos 1940, o reservatório hoje recebe concertos de fado onde antes circulavam milhares de metros cúbicos de água. Ali há também uma escada que leva à superfície, numa portinhola que se abre ao lado de espelhos de água nos limites do Jardim Botânico de Lisboa. 

O desvio para o Reservatório da Patriarcal marca também o único trecho de galeria danificado pelo Grande Terramoto de 1755.

Dali em diante, até a saída do percurso da tour, no Miradouro de São Pedro de Alcântara, a caminhada é mais sombria e estreita, limitada pelas calhas nos dois lados do chão, por onde a água escorria.

O passeio termina numa porta de ferro, que se abre em frente ao quiosque do miradouro, onde a forte luz lisboeta invade a escuridão da galeria e ofusca os olhos. Ao mesmo tempo em que se ouve o carrilhão dos sinos da igreja de São Roque e uma turista desavisada, e visivelmente aflita, que pergunta em inglês à historiadora se ali ficava uma casa de banho. 

Como a água chegou às casas dos lisboetas

A historiadora Bárbara conta que Lisboa deixou de ser abastecida pelo Aqueduto das Águas Livre e os sistemas de galerias subterrâneas em 1967.

Bem antes, em 1880, um então moderno sistema de bombas a vapor, instalado no antigo convento franciscano dos Barbadinhos, começou a puxar água das nascentes do rio Alviela, a 114 quilómetros de Lisboa. 

Águas que passaram a jorrar também em centenas de bicas espalhadas por Lisboa, a fim de se evitar as filas em frente aos chafarizes, obedecendo as recomendações de salubridade e higiene no século XIX para resguardar o risco de pandemias.

Parte do troço da Galeria do Loreto, mais próximo ao Chiado, não resistiu ao Grande Terramoto e foi restaurada. Foto: Líbia Florentino.

Pouco tempo depois, as bombas da Estação de Barbadinhos levariam água às torneiras, primeiro das fábricas e dos palácios e palacetes, depois aos domicílios dos demais lisboetas, dando origem ao sistema de cobrança sobre o consumo.  

Atualmente, o abastecimento de Lisboa é maioritariamente oriundo do subsistema do Castelo do Bode, responsável por 80% da água dos lisboetas, complementado pela captação no Tejo. 

O gigante aqueduto e seu engenhoso sistema de galerias subterrâneas, porém, segue a contar a história de Lisboa, agora através dos passeios em grupo realizados pela EPAL. 

Em fase final de museologização, o trecho visível dos arcos em Alcântara até o reservatório da Mãe d’Água futuramente passará a receber visitas e turistas e lisboetas poderão seguir os caminhos das águas que mataram a sede dos antigos moradores e ajudaram a construir a Lisboa sob os nossos pés.

Ou, no caso de quem faz o passeio, sobre as nossas cabeças.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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5 Comentários

  1. Gostaria de saber se há alguma visita guiada programada.

  2. Bom dia, Maria
    Para saber mais sobre as visitas, pode contactar diretamente através deste e-mail: mda.epal@adp.pt
    Obrigada por nos ler!

  3. Eu já visitei o museu da água , penso que se entrar em contato com o museu podem marcar uma uma visita para ir ver o interior do aqueduto

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