“A luz ainda era fraca, mas as silhuetas das casas e dos prédios eram já bastante nítidas quando, na madrugada de um dia de julho de 1985, nos aproximávamos de Lisboa”.
Assim começa “Luz de Lisboa”, o livro que conta a cidade através do olhar do tradutor holandês Harrie Lemmens, e das fotografias da mulher, a fotógrafa e tradutora Ana Carvalho. Os dois viveram aqui, na cidade, entre 1985 e 1988.

Harrie Lemmens tornar-se-ia tradutor de autores portugueses como António Lobo Antunes, Dulce Maria Cardoso, Gonçalo M. Tavares, José Eduardo Agualusa, José Saramago. E desse amor por Lisboa e pela literatura portuguesa nasceu “Luz de Lisboa”.
Uma viagem em oito capítulos, traçados na planta da cidade: do Campo Mártires da Pátria ao Campo das Cebolas, da Praça Martim Moniz à Alameda, do Parque Eduardo VII à Baixa, da rua Alexandre Herculano ao Alto de Santo Amaro, do Cemitério dos Prazeres ao Teatro São Carlos, das Amoreiras ao Chiado, do museu Gulbenkian ao Campo Grande e do Cabo Ruivo a Belém.
Um percurso que se cruza com cartas, conversas, memórias. E com as fotografias de Ana Carvalho, claro.
Foi a partir da sua casa, agora na Holanda, que Harrie Lemmens nos deu esta entrevista, recordando a luz da cidade onde em tempos viveu, e os livros que o fazem regressar.

A luz de Lisboa. Por que é que é diferente da luz de outras cidades?
A imensidão do Tejo, o céu azul, as cores da cidade, a combinação de tudo isto. Citando o livro: “o jogo entre o rio e o mar, os dias mais longos, ondulação e refração”. Ao fundo do corredor do Ministério fica o Torreão Poente, o baluarte do antigo palácio onde, desde 2005, o Museu de Lisboa organiza exposições temporárias. A primeira exposição foi sobre a luz de Lisboa, explicada pela ciência (anticiclones, o jogo entre o rio e o mar, os dias mais longos, ondulação e refração) e cantada e ilustrada em pinturas e textos literários.
Vamos ao livro, então, que começa com a sua chegada a Lisboa, nos anos 80. O que é que se recorda desse dia?
Eu lembro-me do sossego. Chegámos de madrugada, de camioneta do Porto, e parámos no Campo das Cebolas. Fomos a pé para o centro, ouviam-se os nossos próprios passos. Havia um silêncio total e isso impressionou-me muito. Foi como entrar numa casa onde estão todos a dormir: ninguém sabe, ninguém ouve. Foi como assaltar uma cidade, mas a cidade não estava com medo, estava a dizer “bem-vindo”. “Bem-vindo aqui a Lisboa”. Depois, a luz começou a nascer. Essa luz forte de Lisboa.

O que o trazia a Lisboa nessa altura?
Conheci a minha mulher, Ana, em Berlim Oriental. Vivemos lá dois anos, mas depois começámos a procurar um sítio onde continuar a nossa vida. Ela não queria voltar ao Porto, de onde era, Preferia Lisboa e, por isso, entrámos em contacto com editoras portuguesas para perceber se havia um futuro aqui.
Quando chegou, começou logo a pensar na hipótese de escrever um livro sobre esta cidade?
Só muito mais tarde. Eu nem falava português quando cheguei. Mas queria continuar a fazer o que fazia na RDA: procurar literatura para publicar na Holanda.
Foi assim que comecei a aprender português e a tentar ler livros. Nessa época, já tinha falado muito sobre Fernando Pessoa com a Ana, mas não conhecia outros autores. Lembro-me de entrar numa livraria e de ver um livro grosso, o “Fado Alexandrino”, de António Lobo Antunes. Fui aprendendo português a lê-lo e a traduzi-lo.
A ideia do livro só surgiu há cinco ou seis anos. Eu tinha acabado de escrever um livro sobre o Brasil, “Deus é Brasileiro”, e entretanto já tinha traduzido muitos autores brasileiros. Pensei que queria escrever mais um livro, e porque não escrever sobre Lisboa? Uma mistura de história, literatura, encontros…

O livro chama-se “Luz de Lisboa”. Porquê este título?
O livro começa e acaba com luz. Essa luz de Lisboa tão especial. O nascer do dia à chegada e o crepúsculo à partida. Como se o livro fosse a história de um só dia. O dia eterno que Lisboa é, de facto, para mim. E é com essa luz que olho e sinto a cidade. Daí o subtítulo: a cidade aos olhos de um holandês.
São oito capítulos, traçados sobre a cidade. Como é que chegou a esta estrutura?
Foi na sequência do livro sobre o Brasil. Eu queria escrever um livro sobre Lisboa, um livro sobre a luz. Queria escrever uma história circular. Tinha até a ideia de o escrever como um filme de um só shot, em que a câmara faz um só movimento, como o filme “A Arca Russa”, de Aleksandr Sokurov. Mas percebi que não seria possível, havia demasiado para contar.
Foi mais difícil escrever sobre uma cidade do que sobre as oito cidades do Brasil. Também porque conheço melhor Lisboa, e há tanta história na cidade: cada rua, cada prédio, há sempre algo a chamar a nossa atenção. Tive de inventar outro modelo: e lembrei-me d’“O Livro do Desassossego”. Pensei: “porque não juntar vários fragmentos?”.
Para ter um todo de oito capítulos, inventei esses traçados, esses passeios, para se seguir uma linha pela cidade e falar dos encontros com os escritores… sugerir movimento.
Uma cidade em primeiro lugar é movimento.
Revisitou a cidade para a escrita do livro?
Nós vivemos três anos em Lisboa e fomos tantas vezes a Lisboa… E eu tenho o hábito de fazer anotações. Além disso, eu e a Ana temos uma revista que é a Zuca-Magazine, onde há uma crónica em que falo de literatura, de escritores, de cidades. Por isso não visitei a cidade só para a escrita do livro, fui juntando vários fragmentos, conversas de escritores que fui anotando…
Algo que vem do passado são as cartas que estão inseridas no livro, e que nos fazem regressar aos anos 80, às ideias, aos encontros com Saramago, Lobo Antunes… Mas a parte principal são os passeios não situados no tempo. É um painel de azulejos, encontros de várias épocas.

Lisboa mudou muito desde a primeira vez em que cá veio?
Lisboa melhorou numa grande parte quando penso nos anos 80. Eu acho que o turismo ajuda e mata ao mesmo tempo. Quando as pessoas veem interesse em melhorar as casas, os apartamentos, isso é bom para a cidade. Mas claro que o número de casas para habitantes, para lisboetas, diminuiu. Há sempre paradoxos e contradições quando se trata do turismo.
O Bairro Alto, eu quase nunca mais lá fui, mudou mesmo muito. Havia lá uma vida normal de bairro que mudou muito. Mas uma cidade tem de mudar. Bruges, na Bélgica, parece um museu, parece exatamente como era na Idade Média. Uma cidade tem de viver. É um corpo que respira.
E Lisboa respira?
Eu acho que sim. Há pessoas que não estão felizes com as mudanças mas eu acho que o turismo não é algo eterno, é algo que muda. Esses apartamentos renovados vão ficar livres para lisboetas, isso é uma espécie de respiração… de movimento…
No início do livro, fala em como Lisboa tem tudo que ver com a literatura portuguesa. A literatura é uma porta para as cidades?
A literatura é a entrada para um país, para uma cidade. Pode centrar-se em várias partes da vida, pode centrar-se na economia, na história, na cultura.
Para si, há algum livro que melhor capte Lisboa?
É difícil dizer. Lobo Antunes mostra Lisboa não como uma cidade onde só brilha o sol, mas onde também chove. Eça de Queirós descreve a burguesia do século XIX. Há tantas maneiras diferentes de escrever sobre uma cidade… Para mim, o melhor livro são os livros todos juntos. Não existe um livro que mostre uma cidade completamente como ela é, são sempre fragmentos, impressões, e por isso é que este livro reúne vários autores. Tentei pôr uma estante de livros num livro.
Qual é a sua Lisboa?
Quando penso em Lisboa, vejo uma cidade belíssima. Há um momento quando se atravessa o Tejo, a cidade começa a afastar-se, é um momento fantástico. Quando se volta para a cidade, a cidade surge. O que primeiro é um traço branco começa a ter formas.
Lisboa é uma combinação do rio, do movimento em direção à cidade, da luz sobre a cidade, o céu azul… Outra beleza são as sete colinas, que têm essas diferenças de altura: a vista está a mudar a cada instante, o que se vê em cada rua, quando se vira para a direita, para a esquerda… E há a diferença entre as zonas: Alfama, Avenidas Novas, os prédios, as casas típicas de Lisboa… há tanta coisa.

Tem saudades?
Não tenho tempo, volto regularmente a Lisboa com os livros, com os meus autores. Estou a escrever sobre Berlim e estou lá, mesmo estando na Holanda. A literatura tem essa riqueza. Viva a literatura!
Qual a sensação de ver o seu livro traduzido?
Já tinha vivido essa experiência com a tradução de “Deus é brasileiro” no Brasil. A tradução é um livro em si, e não pode ser exatamente o mesmo que o original. O tradutor tem de tomar distância do original, para chegar a algo parecido. Costumo dizer que traduzir é “inventar o que já lá está”. O livro já existe, mas têm de se inventar as palavras certas que exprimam o mesmo que o original. É ver o ritmo das frases, as palavras que se escolhem…
Eu estou contente, agora os leitores é que decidem e os sinais que têm chegado dos portugueses são positivos. O livro é um bom livro em português, e agora vamos à procura de mais leitores.
Há alguma coisa que distinga língua portuguesa das outras línguas?
É o próprio carácter, cada língua tem o seu próprio caráter. Eu falava bem francês e espanhol, e isso ajudou-me a aprender o português. A língua é como o ar que se inspira, é tudo no fundo, é o ambiente em que se vive.
Eu e a Ana começámos por falar sempre alemão entre nós, e isso tem um motivo: quando duas pessoas de línguas diferentes se encontram numa terceira língua, falam na terceira língua. Agora, geralmente falamos português, às vezes voltamos ao alemão, outras vezes falamos em holandês…
Vai continuar a escrever sobre cidades?
Eu escrevo sobre cidades e escrevo sobre outras coisas. Mas agora tenho duas ideias concretas: um livro sobre o Porto, e um romance histórico que tem tudo que ver com Portugal. O livro do Porto é uma espécie de biografia da Ana, que vai servir como mecanismo para mostrar o crescimento e o desenvolvimento da cidade.
Eu gosto de cidades, gosto de história. Gosto de juntar a literatura às cidades e comecei a fazer isso quando estudava na Holanda. Escrevi uma tese sobre literatura africana, apoiando-me em citações literárias para mostrar diferentes realidades. Sempre gostei de fazer isso: é a grande riqueza da literatura. Não se pode usar como prova, mas mostra realidades no plural, e isso ajuda a entender situações económicas, políticas, sociais…
As cidades juntam mais pessoas, mais movimento, mais vida do que a província ou uma aldeia, onde a vida está geralmente muito mais parada. É esse movimento que me agrada, uma certa velocidade mas onde se encontram momentos de descanso e de sossego.
Considera-se holandês? Ou um cidadão do mundo?
Sou de várias nacionalidades e culturas ao mesmo tempo. É claro que, tal como os portugueses, querendo ou não, quando vejo algo holandês, chama-me a atenção…
Mas gosto de tantas culturas, principalmente da cultura portuguesa e holandesa. Não gosto de me limitar a uma relação só, é muito melhor quando se vê o mundo e a realidade de vários ângulos. Gosto de olhar para as relações entre vários povos, várias culturas… eu consigo tomar distância, olhar para todas as culturas de fora.
Qual o seu lugar preferido de Lisboa?
Gosto do bairro de Santo Amaro, onde eu e a Ana vivemos. É um mundo típico, especial. Gosto das Avenidas Novas. Zonas como Alfama, Mouraria, já não me agradam assim tanto. A Baixa, o Rossio, a Avenida da Liberdade… lembro-me de ter andado a passear com um escritor da RDA na Avenida em 1986, e ele estava impressionado com a Avenida, as palmeiras! A admiração dele ajudou-me a gostar ainda mais da Avenida…
E o que distingue Lisboa de outras cidades europeias?
É difícil. A luz, o movimento pacífico, as casas, a diversidade na cidade… as sete colinas, o rio. Todas as cidades têm coisas em comum: a quantidade de carros, os transportes públicos. O metro em Lisboa é muito importante, uma cidade com metro tem muitas vantagens e o metro de Lisboa é muito bom. Há elementos de Lisboa noutras cidades, mas Lisboa junta vários elementos, e esse conjunto de elementos é que distingue Lisboa.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição: