Através da dinâmica do fluxo de águas residuais de uma cidade, a que chamamos esgoto, é possível vislumbrar toda uma série de hábitos e características de uma população, até detetar doenças ou monitorizar a presença de drogas e fármacos. É uma espécie de sociologia do esgoto.

Por exemplo, é possível saber se os lisboetas são mais madrugadores ou mais noctívagos. Sabemos que, durante a semana, o fluxo de água residuais numa cidade ocorre mais cedo, entre as 7:00 e 8:30, e também nos horários de almoço e jantar. “Já nos fins de semana, este fluxo acontece mais tarde”, explica Marcos Batista, diretor de comunicação da Águas do Tejo Atlântico.

É também aos fins de semana que há uma diminuição do fluxo nos centros urbanos e um aumento nos municípios adjacentes – o que mostra que os centros urbanos como Lisboa ainda servem mais para trabalhar e menos para viver, fazendo da periferia um dormitório.

O que o fluxo do esgoto também nos conta é quando há um grande evento em algum ponto na cidade.

“Um concerto musical ou até mesmo uma grande almoçarada realizada por um grupo de pessoas é detetável pela variação do fluxo das águas residuais. Isto permite saber quando e quanta água foi consumida.”

Estes dados existem desde que a Fábricas de Águas de Beirolas entrou em funcionamento, há alguns anos, para servir os municípios de Lisboa e Loures a afinar os processos de tratamento das diversas fábricas.

A fábrica de Beirolas serve os concelhos de Lisboa e Loures. Foto: Rita Ansone

E, este ano, permitiu-nos saber que Lisboa é uma das cidades onde mais se consome cetamina, um anestésico, e que, ao lado do Porto e Almada, é uma das três cidades europeias onde se deteta um crescimento de uso de drogas como a cocaína e o ecstasy.

Um estudo realizado entre março e abril de 2022 em 104 cidades europeias de 21 países, Portugal inclusive, abrangendo 54 milhões de pessoas, permitiu fazer uma radiografia à presença de drogas nas águas residuais. O “Wastewater analysis and drugs – an European multi-city study foi divulgado pelo Observatório Europeu da Droga e Toxicodependência (OEDT) e é o maior projeto europeu na área de análise de águas residuais e drogas.

Todos os dados da Fábrica de Águas de Beirolas “são partilhados com a Agência Portuguesa do Ambiente, entidade licenciadora e, em alguns casos, com parceiros de projetos de investigação e de desenvolvimento”, refere Jorge Gomes, responsável de Comunicação da Direção de Comunicação e Desenvolvimento da Águas do Tejo Atlântico. “E convém realçar que estes dados não têm associação a identificação de pessoas, perfis, etc. São apenas dados de caracterização do efluente que chega às nossas Fábricas de Água”, assegura.

A Fábrica de Águas de Beirolas foi criada em 2017 e beneficiada em 2020 com um investimento de 5,3 milhões de euros. Serve os municípios de Lisboa e Loures e está dimensionada para tratar um equivalente populacional de 213.510 habitantes, o que corresponde um caudal médio de 54.500 m3/dia.
A empresa Águas do Tejo Atlântico, sob cuja tutela está a Fábrica de Beirolas, é responsável pela recolha, o tratamento e a rejeição de efluentes domésticos e urbanos proveniente de cerca de 2,4 milhões de habitantes, abarcando os municípios de Alcobaça, Alenquer, Amadora, Arruda dos Vinhos, Azambuja, Bombarral, Cadaval, Caldas da Rainha, Cascais, Lisboa, Loures, Lourinhã, Mafra, Nazaré, Óbidos, Odivelas, Oeiras, Peniche, Rio Maior, Sintra, Sobral de Monte Agraço, Torres Vedras e Vila Franca de Xira. 

Como pode o esgoto tornar uma cidade mais sustentável

Sabemos como o fluxo das águas residuais nos pode dar informação relevante sobre uma comunidade. Mas como poderá tornar-se algo mais ativo na vida da cidade?

Esta tem sido uma das preocupações da Fábrica de Águas de Beirolas, que hoje produz água para a rega dos jardins e a lavagem das ruas dos municípios de Lisboa e Loures, disponibiliza biolama para a agricultura e ainda produz energia verde (biogás) que abastece 40% do consumo energético da fábrica.

Esta água tratada, mas não potável, é também disponibilizada às empresas e indústrias que a utilizam na climatização dos edifícios.

Por exemplo, a extensa relva que cobre o novo espaço que albergou a Jornada Mundial da Juventude, na semana passada, o chamado Parque Tejo, é regada com as águas produzidas na Fábrica de Águas de Beirolas.

Jornada Mundial Juventude
O Parque Tejo, onde decorreram cerimónias para a Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, em agosto de 2023. Foto: Júlia Silva/JMJ

Também o substrato de todas as casas de banho instaladas no local do evento será tratado nesta complexa fábrica, onde águas residuais são transformadas em águas limpas para uso em regas de parques e jardins de Lisboa, Mafra e Loures.

“É a valorização da água, num sistema verdadeiramente circular. No aproveitamento das águas residuais é produzida água não potável que é usada para diversos fins”, explica Marcos Batista.

O complexo ciclo da água

O ciclo urbano da água é muito complexo e inicia-se com a captação junto ao meio hídrico na Natureza (rios e albufeiras, lençóis de água ou através de furos e poços),  seguindo para as ETAR – Estações de Tratamento de Água Residuais. 

São mais de 100 estações de tratamento de águas residuais que estão a ser transformadas em Fábricas de Água pelo Grupo AdP-Águas de Portugal, responsável pelo abastecimento de água e saneamento de águas residuais. A partir daí, a água captada é entregue ao município que irá abastecer as casas das pessoas. 

É também o município lisboeta que recolhe as águas usadas e as entrega no depósito da Águas do Tejo Atlântico que, então, as transporta para a Fábrica de Águas de Beirolas (uma das 100 fábricas de água no país). É nestas fábricas que serão tratadas estas águas residuais e devolvidas ao rio e ao mar, em condições ambientalmente seguras. 

E há até inquilinos frequentes nestas bandas: aves migratórias. Nadam nos grandes tanques de água e já se tornaram residentes, como um casal de patos do Egito.

Jorge Gomes, responsável de Comunicação da Direção de Comunicação e Desenvolvimento da Águas do Tejo Atlântico, explica que todas as Fábricas de Água têm uma licença de descarga emitida pela APA – Agência Portuguesa do Ambiente, onde estão definidos os limites máximos de descarga para o meio recetor (rio, mar, lagoa), nomeadamente, CBO5 (carência bioquímica de Oxigénio) CQO, carência química de Oxigénio e SST (sólidos suspensos totais).”, continua a explicar o responsável de comunicação.
“Os limites de descarga emitidos pela APA variam de Fábrica para Fábrica e, por esse facto, é necessário analisar e conhecer as características do efluente, numa primeira fase para adequar os processos de tratamento e, na fase de operação, para ajuste do desempenho e eficiência da operação.”

Águas afinadas e… a criação de uma cerveja artesanal

É possível afinar o tipo de água produzida a partir de águas residuais para cada tipo de uso. Por exemplo, se se destina à rega de eucaliptos ou de morangos. E a Fábrica de Águas de Beirolas produz água desenvolvendo tratamentos específicos para cada tipo de utilização.

A fábrica conta com um laboratório, um edifício de operação e uma extensa zona de processo, na qual se destaca o grande tanque circular onde é realizada a decantação. 

“É aqui que o processo inicia com a gradagem, isto é a passagem das águas residuais por diversos filtros, e a tamisação (remoção de partículas até 6mm). Depois disto as fases seguintes incluem o desengorduramento, a decantação primária e secundária – a partir da qual são produzidas as biolamas para a agricultura”, diz Jorge Gomes, da comunicação da Fábrica.

Parece estranha a ideia, mas na fábrica de Beirolas foi possível criar uma cerveja a partir das águas residuais. Foto: Rita Ansone

Seguem-se a desinfeção, a desodorização (na qual o ar é lavado e tratado em torres fechadas em duas vertentes – ácida e alcalina), a equalização e filtração. “A digestão anaeróbica processada em grandes silos permite a produção de biogás que proporciona 40% da eletricidade necessária para o funcionamento da fábrica”, detalha Jorge Gomes.

A fase final é a devolução da água ao rio Tejo, a entrega ao município. Numa ação inovadora, foi criada a VIRA, uma cerveja artesanal fabricada a partir de água residual com tratamento complementar através de ozonização e osmose inversa, 100% segura, que foi galardoada com o Water Reuse Europe Innovation Prize em 2021.

O produto final da cerveja produzida a partir de águas residuais. Fonte: Águas do Tejo Atlântico

Ajudar a combater uma pandemia através do esgoto

A recolha de amostras é um processo interno das fábricas de água e as análises são processadas nos três laboratórios da Águas do Tejo Atlântico.

Isto, sem prejuízo de projetos e parceiras como aconteceu com o Covidetect e o Eco2Covid, para saber como a monitorização do fluxo do esgoto poderia ajudar a combater a pandemia de covid-19. Uma iniciativa organizada pelo Grupo AdP-Águas de Portugal.

Durante um período, procedeu-se à “deteção da carga viral, a qualificação e monitorização da presença de SARS-CoV-2 (covid-19) nas águas residuais do país”, diz Marcos Batista.

Um Centro de Educação Ambiental 

Nos finais de 2020, foi criado um Centro de Educação Ambiental da Tejo Atlântico na Fábrica de Beirolas, um espaço dedicado à sensibilização ambiental da população servida pela fábrica, estabelecendo uma rede de proximidade e de conhecimento partilhado sobre questões ambientais e de sustentabilidade.

“Queremos contribuir para uma cidadania mais ativa no domínio do Desenvolvimento Sustentável, promovendo a eficiência hídrica e o uso racional e eficiente da água, alinhado no Plano de Educação Ambiental da Tejo Atlântico”, diz Marcos Batista. Para isso, criaram a campanha de comunicação batizada “Lado B da Água“, cujo objetivo é mudar a perspetiva das pessoas em relação à água, com uma visão sustentável.

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Para reforçar a comunicação aos mais pequenos, foi lançado também o livro educativo “A incrível viagem do cocó“, que detalha o que acontece quando se carrega no autoclismo, o percurso pouco conhecido do esgoto passando pelo tratamento da água residual nas Fábricas de Água até chegar aos rios e mares. 

A história é contada por dois irmãos e mostra como situações do dia-a-dia tem impacto no ambiente. Os irmãos vão descobrir que por baixo das tampas de esgoto nas ruas passa a água utilizada nos banhos, na cozinha e na sanita, e ainda perceber por que é que para a sanita só devem ir certos resíduos.

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*Nysse Arruda é jornalista especializada em náutica, autora de diversos livros sobre regatas oceânicas internacionais, fundadora e curadora do Centro de Comunicação dos Oceanos-CCOceanos – uma série de palestras livestream e presenciais a abordar os mais diversos temas relacionados com os oceanos, conectando os países de Língua Portuguesa e tornando Portugal um polo de partilha de informação atualizada sobre os oceanos.


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2 Comentários

  1. Estou francamente surpreendido positivamente com o longo caminho percorrido pelas entidades que avançaram com este projecto. Tenho 75 anos, brinquei quando rapaz nas f´wrias de Verão junto de dois rios, o Alenquer e o Ota, tinha dez anos, os meus companheiros convidaram-me para tomar banho neles e apanhar peixes com as mãos. Mais tarde, já com quinze anos manifestei o meu desagrado por os esgotos de um prédio de familia enviar os esgotos para o Ota. Decorridos sessenta anos temos um dos rios mais poluídos com as águas recuperadas. Muito obrigado aos meus compatriotas que pensaram projectaram e construíram esta infraestrutura.

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